"Eu era como um pobre que mistura menos lágrimas a seu pão seco se diz a si mesmo que dali a pouco um estranho vai lhe deixar toda sua fortuna. Para tornar a realidade suportável, somos todos obrigados a alimentar algumas pequenas loucuras dentro de nós" (Marcel Proust, À Sombra das Moças em Flor).
Moses Herzog está em crise. Seu segundo casamento acaba de fracassar. Sua esposa Madeleine o trocou por seu melhor amigo, Valentine. Sua filha está a centenas de quilômetros de distância. Seu filho do primeiro casamento o vê como uma figura excêntrica, distante, ridícula. Longe dos dias de acadêmico brilhante, ele agora dá aulas para adultos em uma escola noturna. Seu aguardado pós-doutorado sobre o Romantismo resultou em "oitocentas páginas de argumentação caótica". Todas as pessoas ao redor - amigos, irmãos, colegas de trabalho, a ex-sogra, o médico, o advogado -, todos vinham tratando-no como a um louco, "e por algum tempo ele mesmo duvidara que estivesse são". Será? "Se estou louco, tudo bem", pensa. A única pessoa que parece compreendê-lo é sua jovem namorada argentina Ramona.
Ele precisa de alguma forma dar a volta por cima. Herzog começa a se sentir "confiante, alegre, lúcido e forte" e passa a escrever cartas para "todas as pessoas do mundo". Afinal, "tinha sido tomado pela necessidade de tudo explicar, contar, justificar, pôr em perspectiva, esclarecer, corrigir". As cartas são a forma que o protagonista do sexto romance de Saul Bellow, Herzog, de 1964, encontra para exorcizar os demônios internos que o vêm acometendo depois das tragédias pessoais. Ele nunca envia as cartas - o simples fato de escrevê-las ou imaginá-las o alivia. Entre os destinatários, as duas ex-esposas, o psiquiatra, o monsenhor que converteu Madeleine ao catolicismo; e também gente mais ilustre: Nietzsche. Adlai Stevenson. Heidegger. Deus. Ele mesmo.
Herzog inteiro se passa em poucos dias (fisicamente, ao menos; grande parte se passa na cabeça de Moses): Saul Bellow não precisa de mais do que isso para traçar um dos mais profundos perfis psicológicos de uma personagem que as últimas décadas viram. Herzog é um poço de contradições que, em conflito, confundem-se e deságuam em sua personalidade. É um intelectual brilhante, mas sua erudição não impede que cometa atitudes inacreditavelmente juvenis. É lúcido e consciente do quão patéticas são essas situações, e mesmo assim não consegue conter os impulsos e torna a cometê-las. "Herzog era um pouco débil mental, nada prático, embora intelectualmente ambicioso e de certa forma também arrogante".
Saul Bellow era um romancista à moda antiga. No discurso que fez ao receber o Prêmio Nobel, em 1976, atacou Alain Robbe-Grillet e o pessoal do nouveau roman por decretarem o fim do romance de personagens. Orgulhava-se por centrar seus livros nos indivíduos e, através deles, tentar entender um pouco mais o seu tempo, seu país e a condição humana. Não à toa, Bellow, falecido em 2005, era tido como o mais russo dos autores norte-americanos. Por certo, como nos grandes romances de Dostoiévski, seus protagonistas erram em busca de um sentido para a existência, alternando lucidez e filosofia com tormentos da alma, amor pelo sofrimento e falta de senso de ridículo. O próprio Herzog já foi comparado ao príncipe Míchkin, de O Idiota, e também aos protagonistas de Tchekhov. Bellow, como leitor, rejeitava as novidades passageiras. Recorria sempre aos seus favoritos: franceses e russos do final do século 19, Conrad, Shakespeare, o Antigo Testamento.
O embate entre o arcaico e o moderno norteia Herzog. O romance é um grito de desespero humanista - um pedido de socorro, um aviso do que está por vir, um libelo desencantado em defesa do indivíduo. Com o instinto dos gênios, Saul Bellow anteviu os efeitos que a contracultura e as mudanças sociais dos anos sessenta trariam: "Estavam demolindo e levantando edifícios. A avenida estava repleta de caminhões que faziam concreto, trescalando cheiro de areia molhada e cimento. Embaixo, os bate-estacas batiam e golpeavam (...) na rua, os ônibus exalavam fumaça venenosa de combustível barato e os carros se amontoavam. Era sufocante, triturante, a horrível confusão das máquinas e da multidão desesperadamente resoluta".
Em meio ao concreto, pessoas. As formigas humanas das recém-formadas massas são enquadradas num cotidiano mecânico, cada vez mais apressado e menos reflexivo - o início de um processo cujos efeitos sentimos hoje mais do que nunca. Bellow levaria os contrastes urbanos ainda mais a fundo em O Planeta do Sr. Sammler, na famosa cena em que um negro persegue Arthur Sammler pelos becos de Nova York, encurrala-o e mostra-lhe seu membro. Por trás de tudo, afinal, estão as relações, e elas estão se deteriorando. Há um trecho de Proust que sintetiza o comportamento de Moses Herzog:
"No solitário, a reclusão, mesmo sendo absoluta e durando até o fim da vida, tem muitas vezes por princípio um amor desordenado da multidão que o avassala tanto, acima de qualquer outro sentimento, que, não podendo obter, ao sair, a admiração do porteiro, dos transeuntes, do cocheiro ali parado, prefere nunca ser visto por eles e, por isso, renuncia a toda a atividade que o obrigasse a sair de casa".
Dá para não fazer referência a Proust (outro autor estimado por Bellow), quando a segunda esposa de Herzog se chama Madeleine? Como o biscoitinho de Marcel, a visão da ex-mulher traz ao nosso herói muitas recordações; diferentemente do francês, as recordações não são lá muito positivas. Por ela, Herzog abandonou um bom cargo numa universidade e se mudou para uma casa de campo caindo aos pedaços, nos cafundós da Nova Inglaterra. Lá eles conhecem Valentine Gerbach, que logo se torna o melhor amigo de Moses e depois amante de Madeleine. Ela, aliás, é um show à parte: inteligentíssima e manipuladora, abandona o marido quando sua situação intelectual já não depende mais dele. Em um mundo onde o humanismo está em decadência, compaixão é um valor falido. Bellow, venenoso, usa seu interlocutor para alfinetar as feministas que costumam tachá-lo de misógino: "Nunca entenderei as mulheres. O que elas querem? Comem salada e bebem sangue humano".
Mesmo com toda a vontade de fazer as coisas direito, Herzog não acerta. Seus impulsos sempre o levam a flertar perigosamente com o patético. Ele viaja de trem para visitar uma velha amiga na praia e relaxar do caos de Nova York. Chega na casa dela, sobe para se trocar e percebe que não deveria estar ali. Escreve um bilhete, sai escondido e volta para NY de avião, poucas horas depois de ter saído de lá. Em outra cena, ele vê sua filha depois de uma longa ausência e a leva para passear. No seu bolso está uma arma de seu finado pai, que antes de pegar a criança ele havia tirado da gaveta de sua ex-madrasta moribunda. Herzog, claro, bate o carro, a polícia descobre a arma carregada e sem registro e ele é detido. Madeleine tem mais uma chance de provar seu desequilíbrio mental: outro gol para ela.
Em suas frenéticas cartas mentais, Herzog tenta entender o caos que o cerca. Sim, ele "diz" a Nietzsche, a patuléia vive seus dias finais, aquela "ralé comum, prática, ladra, fedorenta, estúpida, sem luzes"; só que as pessoas cultas serão levadas junto com elas: "a humanidade", avisa ao pensador alemão, "vive, principalmente, de acordo com idéias pervertidas. Pervertidas, suas idéias não são melhores que aquela do Cristianismo, que você condena". A Heidegger, pergunta: "gostaria de saber a que o senhor se refere quando usa a expressão 'a queda no cotidiano'. Quando ocorreu esta queda? Onde estávamos, quando isso aconteceu?".
Com "tenta entender o caos" eu quero dizer "tenta entender a si mesmo". Herzog nunca consegue descobrir se está louco, como afirmam Madeleine e Valentine, ou se é o mundo que está errado. Ao assistir o julgamento de uma mãe que assassinara o próprio filho, só consegue exclamar: "Não posso entender!". Seus sentimentos quanto à humanidade são, como tudo em Moses, paradoxais. Embora às vezes a rejeite ("Será que amo a humanidade? O suficiente para salvá-la se tivesse poder para mandá-la ao inferno?"), no caso do menino assassinado pela mãe, sofre com sinceridade: "não conhecia nada a não ser seus próprios sentimentos humanos, nos quais não achava nada útil. E se chorasse? Ou orasse? (...) e pelo que podia rezar na moderna, pós... pós-cristã América? Justiça? Justiça e mercê? E afastar com preces a monstruosidade da vida, o sonho mau que ela é?". Em seu sentimento de impotência, Moses Herzog é um niilista do niilismo. Não é que Deus esteja morto; Ele só é a morte. E não há humanismo que resista a uma certeza dessas.
Apesar de toda a reflexão, Herzog é, em essência, um romance cômico, daquela comicidade típica dos judeus. Não faz apenas rir; faz gargalhar, nos momentos mais inspirados. É um dos livros que mais se aproximaram daquilo que Brás Cubas queria dizer com algo escrito "com a pena da galhofa e a tinta da melancolia". O próprio Herzog, no fim do livro, consegue rir de si mesmo e se conformar. "Posso ter a pretensão de muita escolha? Olho para mim mesmo e vejo pernas, coxas, pés, uma cabeça. Esta estranha organização, sei que morrerá (...) O que você quer, Herzog? Só isto - e não ser uma coisa solitária. Estou muito satisfeito em ser, ser somente como desejo, e permanecer na posse disto tanto tempo quanto puder".
Ele agora está pronto para finalmente se entregar à adorável Ramona - seu amor pelo sofrimento será colocado em banho-maria. E já pode abandonar as cartas. "Naquele momento, não tinha mensagens para ninguém. Nada. Nem uma palavra".
O humanismo é a busca de quem tem mais de outros animais e que seguem a cabeça e o corpo como monstros. Hoje temos eleições, os monstros têm tempo de televisão, estão nos partidos que têm poder, que fizeram sacanagens, há, nos envolvidos, nomes de Partidos como Psdb, PT, PTB, PMDB, PL, PP e outros, são tantos que apoiaram a desgraça, a fome, estabeleceram um dos piores salários do mundo... na nação que tem um dos melhores saldos econômicos do mundo. E assim criticam ou tentam falar quando pensamos no humanismo social. Penso que este País é a maior beleza, mas tem uma sina, em que o povo sempre elege pessoas que parecem ou indentificam com ele, se temos um congresso de monstros é porque a maioria do povo brasileiro usa sete cabeças, ou nenhuma, são monstruosidades culturais... Pois ninguem cai do céu no congresso ou no poder executivo. Os humanistas serão taxados de comunistas, de ecologistas, de socialistas científicos, de anarquistas, e continuarão fora do poder. Que memória de Herzog?