1.
O amigo e editor Julio Daio Borges já disse uma vez: ainda é cedo pra analisar o YouTube. Realmente, um portal surgido há um ano não pode ser pensado e pesado quanto ao seu verdadeiro impacto neste exato momento. Estamos vivenciando-o, sentindo-o, participando de seu processo de desenvolvimento. Mas isso não impede que pequenos (e grandes) fenômenos do site sejam comentados. Talvez um dos mais notórios seja o caso Tapa na Pantera. Trata-se de um vídeo em que a atriz teatral Maria Alice Vergueiro aparece num único ângulo descrevendo sua relação com a maconha. Muito engraçado e estranho, o vídeo virou febre virtual, já teve mais de dois milhões de acessos e tornou Vergueiro, conhecida quase apenas em São Paulo, em ídolo.
O que poucos sabem é que, por trás de Tapa na Pantera, está um rapazinho muito talentoso. O vídeo, que é ficcional a partir de uma criação de personagem da própria Maria Alice, tem três autores: Esmir Filho, Mariana Bastos e Rafael Gomes. Eles são sócios na produtora Ioiô Filmes. É Esmir o mais prolífico e "atuante" deles. O ano de 2006, por exemplo, está sendo um ótimo período para o rapaz de 23 anos. Em maio, ele estreou seu terceiro curta-metragem, Alguma Coisa Assim, no Festival de Cannes, na França. Saiu de lá com um prêmio para o roteiro. Em agosto, levou o filme ao Festival de Gramado (RS). Venceu os Kikitos de melhor curta em 35 mm, direção e atriz (Carolaine Abras). No mesmo mês, veio o Tapa na Pantera.
"Um dia decidimos ir até à casa da Maria Alice Vergueiro fazer algumas gravações sem compromisso. Apenas telefonamos e marcamos. Quando ela abriu a porta, já estava com a roupa meio largada, o cachimbo na mão e falando daquele jeito chapado. A gente ligou a câmera e deixou rolar, enquanto íamos sugerindo algumas piadas", disse Esmir numa entrevista que fiz com ele recentemente. A idéia não era exatamente transformar o vídeo num trabalho a ser exibido. Porém, dias depois das gravações, ele recebeu um e-mail contendo um endereço no YouTube. E para onde o link levava? Justamente a Tapa na Pantera. Esmir jura que não faz idéia de como a gravação foi parar na rede. Nem de que forma ela ficou tão popularizada - só na primeira semana, foram 600 mil visualizações.
Interessante que Esmir não é um cara deslumbrado por esse sucesso absolutamente espontâneo. Tem plena consciência de que a Internet é, por definição, um meio efêmero. E mais: tem noção de que trata-se de um espaço em que tudo pode circular, mas nem tudo deveria circular. "É preciso muita responsabilidade para se colocar algum trabalho na Internet. Eu nunca lançaria, por exemplo, um curta-metragem meu diretamente na rede. Algumas produções são feitas para serem vistas na tela do cinema. Até acho que devam passar na web depois de rodar pelos festivais, mas tem que ter um certo cuidado". Palavras de quem teve (tem) no YouTube um espaço de rei.
2.
Bom quebrar a cara no cinema. Mesmo quando se tem como atividade escrever sobre filmes, alguns trabalhos desanimam o crítico. Foi o que aconteceu comigo recentemente, quando do lançamento de A Casa do Lago. Romance aparentemente água-com-açúcar protagonizado por Sandra Bullock e Keanu Reeves e direção do argentino Alejandro Agresti. A dobradinha Reeves-Bullock me parecia, desde o começo, forçada - tentativa de simplesmente reunir os queridinhos protagonistas de Velocidade Máxima e dar ao público nova oportunidade de vê-los lado a lado. O diretor Agresti realizou Valentin, filminho simpático que não me agrada tanto, em especial por "abusar" do garoto protagonista e seu talento de parecer adulto. E o fato de A Casa do Lago ser uma refilmagem de um longa coreano também não era fator motivador - não pela Coréia do Sul, berço de muito do que de melhor se faz em cinema hoje, mas sim por Hollywood e sua mania de buscar idéias em terras alheias.
Porém, eis que, ao final de A Casa do Lago, tudo isso se dissipou. Bullock e Reeves estão perfeitos e emanam melancolia e paixão; Agresti dirige com elegância invejável, constrói cenas a partir de elementos do cenário, poucas palavras e movimentação dos atores; e a história, apesar de mastigada, tem desenvolvimento suficiente para não deixar perder a atenção. Todos estes elementos aliados uns aos outros tornaram A Casa do Lago um belíssimo filme aos meus olhos, um trabalho feito com ardor e sinceridade por todos os envolvidos, um projeto de respeito e qualidade como poucas vezes se vê no cinema romântico.
O filme trata do amor impossível de duas pessoas moradoras da mesma casa. Eles vivem em épocas diferentes (ela está dois anos à frente dele), mas conseguem se comunicar através de cartas enfiadas numa caixa postal de frente à tal casa do lago. Há duas coisas muito bonitas nessa premissa que, nas mãos de um cineasta menor, seriam mal trabalhadas, mas ficam sublimes sob o olhar de Agresti. Uma é o uso de cartas escritas à mão numa época virtual. O roteiro mantém o poder da palavra registrada em papel, da emoção de se esperar a correspondência, do valor de se guardar a carta como um documento a registrar momentos do passado. A outra coisa a se destacar é a não-preocupação em revelar a mágica que é estopim do filme.
Pouco importa como as cartas vão de uma época a outra. O que interessa é o efeito delas na vida de duas pessoas solitárias, com conflitos muito particulares e que encontram alento nas palavras de uma alma gêmea que não está apenas distante, mas simplesmente ausente do seu universo. Não ausente fisicamente (o rapaz chega a se encontrar com a moça em sua própria época, mas não pode revelar o segredo), mas espiritualmente. Ambos sentem a presença do outro e não podem se ver nem se tocar. Se esse conflito foi mastigado à exaustão pelas artes em geral, aqui é trabalhado de forma diferenciada, em especial por conta dessa crença na palavra.
Aliás, nesse sentido, é oportuno relacionar A Casa do Lago a outro filme recente, A Dama na Água, do indiano M. Night Shyamalan. Ambos acreditam intensamente no poder da palavra - escrita, no caso do primeiro; falada, no caso do segundo. Em ambos, a idéia de que o registro é fundamental à salvação e redenção está ligado à própria encenação de seus filmes. Shyamalan coloca seus personagens a falar e falar sem parar para que desvendem o mistério que vai proteger toda a humanidade, num processo que, dentro da tela, enfoca a necessidade de ser criativo e, fora da tela, questiona a crença dos espectadores na fabulação; Agresti mostra os protagonistas a escrever e escrever um ao outro, retratando isso em narrações off que conjugam a fala e a escrita. Dois diretores estrangeiros (o que é emblemático) que conseguem ousadias na realização ao se apoderarem das formas devidamente consagradas e reutilizadas sem parar pela máquina de Hollywood.
Queimei a língua e faço aqui o mea culpa: A Casa do Lago é um grande (e belo) filme.
Muito interessante ter lido esta crítica da casa do lago porque não estava colocando nenhuma fé no filme. Agora me animou. Bom ter lido isso.
Vou aproveitar!