Você vai ficar deprimido, mas ainda assim o documentário Vocação do Poder, de Eduardo Escorel, é uma boa pedida.
A gente aprende na escola que a democracia foi uma conquista. O povo passou a escolher seus governantes e legisladores, e com isso as leis ficaram mais justas, mais favoráveis à igualdade. Há maior controle da população sobre os detentores do poder. O sistema de mandatos faz com que a câmara se renove ou se conserve, segundo o desempenho e a aprovação social dos políticos. Tudo muito lindo na teoria. Mas e na prática, como a coisa funciona? É isso que o filme procura mostrar. A equipe acompanhou seis candidatos a vereador na cidade do Rio. O diretor foi muito feliz na montagem, alternando momentos do dia da eleição, quando a adrenalina dos candidatos era máxima, com cenas das campanhas que vinham ocorrendo meses antes.
Aos poucos você vai percebendo - quando não percebe logo de cara - que a maioria, mesmo que quisesse, nada poderia fazer pela população que a elegeu, a não ser pequenos favores como doar cadeiras de rodas e caixões. Os candidatos parecem nem saber a diferença entre executivo e legislativo. Acreditam que o vereador possa exercer funções como controle da polícia ou do sistema de saúde. É até difícil de acreditar, mas nenhum dos candidatos revela sequer uma proposta, nem nas reuniões internas dos partidos. Tudo que sabem fazer é recorrer a termos vagos, como "justiça social", "debate", "democracia", que eles mesmos não saberiam definir. Aliás, estou fazendo uma injustiça. Um dos candidatos tem uma proposta concreta. A construção de uma grande danceteria com palco para shows e desfiles. E é justamente o candidato do setor mais pobre da população. É claro que ele não fala em saúde e educação, todo mundo sabe que pobre precisa é de sexo e música ruim. Os candidatos de nível social melhor, que poderiam apresentar propostas mais concretas, sabem apenas abordar as pessoas na rua e dizer "Posso contar com você?", ou coisa pior. E é isso que é mais deprimente: Justamente os mais instruídos, que têm um curso de Direito ou coisa parecida, que poderiam expor propostas sérias e viáveis, ficam só naquele papo de "a gente precisa de alguém do Leblon lá em cima". O filme só não deprime mais porque é bem feito. Pelo menos nossos documentaristas são bons.
Mas quando vi o documentário, me ocorreu outra questão, também ligada à vocação do poder, que não é abordada no filme talvez por não caber naquele formato. A questão é a seguinte: quando você conversa com um sujeito de 18 anos, e pergunta sobre seus sonhos, ele normalmente responde que quer ser compositor popular, poeta, escritor, atleta, bombeiro, militar, médico, engenheiro de computadores, artista plástico, desenhista de quadrinhos e por aí vai. A minha pergunta é simples: por que ninguém quer ser político? Por que ninguém sonha desde cedo com a carreira de administrador público?
Na minha modesta opinião, é aí que está a raiz do problema: a carreira política não é a realização de um sonho autêntico. Ela é uma saída mais ou menos improvisada para a falta de grana ou para a falta de aptidão para outras áreas. Outros países têm políticos melhores justamente porque lá o ideal de ser político é esteticamente viável. Esses países têm uma cultura que reconhece a importância do político, e por isso um sujeito pode sonhar em ser legislador ou administrador público sem sentir vergonha de si mesmo. Um sujeito pode declarar para os pais e para os amigos que quer ser político, e daí surgem os diálogos e as tensões que vão informar ao indivíduo o que uma sociedade espera de um político, qual é seu papel, de que maneira ele vai servir sua comunidade, etc. Mas, no Brasil, o professor de história já é o primeiro a nos dizer que os políticos não passam de uma corja de incapazes. Se você disser a seu pai que gostaria de seguir a carreira política, ele possivelmente vai zombar de você.
Ser político no Brasil é feio, e por isso mesmo as mentes mais capazes e letradas - justamente as que melhor podem servir a comunidade - vão buscar sua realização em outras carreiras. Se quisermos melhorar a política nacional, acho que a primeira coisa a fazer é mostrar aos jovens que ser político não é feio; não é essencial da política manchar a biografia de ninguém. O curso de história deveria mostrar como a sociedade pode ser transformada - para melhor - pela ação de talentos políticos autênticos.
Precisaríamos de livros que contassem a vida de políticos que conseguiram construir sua carreira sem usar o dinheiro público para pagar suas putas (nada contra putas; apenas não se deve pagá-las com dinheiro público). É por isso que eu gosto do Gilberto Gil como ministro da cultura. Não concordo com nenhuma das suas idéias políticas, às vezes ele me parece um verdadeiro retardado. Mas pelo menos ele passa uma informação aos jovens: político não precisa ser um cretino. Um homem pode exercer um cargo público movido pelo desejo autêntico de melhorar a sociedade. Daqui a cinco anos ninguém vai se lembrar dos cantadores de cordel e dos cineastas medíocres que foram financiados pela política cultural do Gil, mas se pelo menos isso ficar na cabeça dos jovens, já está bom.
Ronaldo,
o texto é muito bom. Eu trabalho com política e vivencio muito do que você está vivendo. Não sou político, contudo. Decidi me dedicar à Ciência Política.
De fato, a maior parte das pessoas não tem nenhuma capacidade de fazer propostas.
Mas tem um ponto que faltou: não é só uma questão de vontade. Mesmo que boas pessoas quisessem entrar para a política, as barreiras de entradas não podem ser subestimadas.
De qualquer modo, meus parabéns pelo texto.
Abraços
Pablo, acho que vc está enganado. Fazer política de qualidade e melhorar o mundo não é uma questão de vontade. É uma questão de inteligência. Eu não acredito em vontade. Eu fujo de pessoas bem intencionadas. Quer um exemplo? Vc chega numa cidade pobre do interior e encontra uma criança doente. Ela está com febre. O curandeiro da região já deu os chás de sempre, e não adiantou. Eu te pergunto: se vc não souber nada de medicina, vc vai poder fazer alguma coisa para ajudar? É claro que não. Então boa vontade não adianta. Em política é a mesma coisa. Um sujeito com boa vontade que não tenha os conhecimentos e as idéias certas não pode fazer absolutamente nada para ajudar. Lute contra essa sua idéia, meu amigo. A política não precisa de pessoas bem intencionadas. Aliás, acredito que ela já está cheia delas. Precisa é de pessoas inteligentes, com conhecimentos precisos de economia e administração. Fuja das boas intenções. Abraço, Rbr
Desde a criação da Democracia, na Grécia Antiga, ser político não é profissao, é serviço público. O cidadão afirma-se quando participa da vida de sua cidade, inclusive política. Por isso, político não deve ser profissão: deve ser um cidadão que, a partir de uma etapa da vida, resolve colocar seus conhecimentos a serviço da sociedade. O problema é que houve deturpação do conceito: a política está cheia ou de espertalhões ou de gente que não tem nenhuma profissão. Essas são as que se servem da sociedade, e não servem à sociedade.
Eu concordo com o Ronaldo e ainda vou mais longe: no Brasil o cara não entra na política pensando em trabalhar pelo Estado, e sim em enriquecer de uma maneira mais fácil. É uma saída que essas pessoas encontram para sair da indigência, daí a explicação para tantos candidatos bizarros nos horários eleitorais. Esses caras sabem que as imunidades parlamentares e pizzas vão salvá-los quando eles se envolverem com a corrupção, que está enraizada em nossa cultura, já que criou-se a idéia de que não dá pra fazer política sem sujar as mãos.