Fui obrigado a votar, contra minha vontade. Contra a minha vontade fui obrigado a aceitar candidatos a diversos cargos políticos, "vagas" no corpo político do país; um corpo deformado, hiperdesenvolvido, mistura de Godzilla com o homem-elefante e seu capuz, escondendo a cara.
Por falar em país, que país é esse? Um Brasil que dobrou sua população em poucas décadas, uma população, desculpem-me, extremamente "popular", onde a elite - não estou falando de dinheiro - mingua e a outra parte, que alguém já chamou de "plebe ignara", se multiplica com a energia descontrolada de um povo em formação.
São milhões, cheios de duplas sertanejas e falando um português simplificado ao máximo; crédulos por natureza, esperando a redenção que eliminará os que não cabem em seus horizontes atrofiados - essa é, inclusive, a verdadeira causa da proliferação de tanto culto evangélico: o Dia da Ira, em que os exércitos do "senhor dos exércitos" varrerão da face da terra os que lêem, os que não gostam de duplas sertanejas, os que se vestem melhor, não pelo preço das roupas, mas pelo simples fato de que as roupas caem bem em seus corpos, seja que roupa for.
Tive que entrar na fila, entrar na pequena cabine e escolher alguns candidatos, surgidos não se sabe de onde e que, se dependessem de mim, não seriam candidatos a coisa nenhuma. Fico pasmo com a docilidade, às vezes apenas resignada, de pessoas em pé, acreditando em seus eleitos ainda não eleitos e, o que é pior, acreditando em seu próprio tino eleitoral. Porque o povo elege indiscriminadamente gente que seria barrada em qualquer baile de debutante ou portaria de clube; gente que só de andar por alguma rua à noite acaba provocando o latido de todos os cachorros do bairro. Esses eleitos se sentarão nas cadeiras das diversas câmaras, senado, e gastarão mais de noventa por cento do seu tempo de mandato na manutenção desse mesmo mandato.
Porque essa é a divisão do tempo do político, que nenhuma pesquisa mostra: noventa por cento do seu tempo é dedicado à manutenção do poder. Tiramos mais cinco por cento para a vida pessoal e, na maioria dos casos, o que sobra é investido na confecção do "pé-de-meia", porque o futuro é incerto, meu, e Deus não dá asa a cobra, de forma que, quando a bicha ganha um belo par de asas, ela não pára de voar.
Quem realmente acredita que um sujeito, que disputa quase a tapa uma eleição, está nessa porque deseja servir o país da melhor maneira possível? Um ou outro... tá bem, aquela mulher expulsa do partido do governo; mas ali o que sobra em idealismo falta em discernimento, e falta muito. Tá bem, o Robin Hood na sua verde floresta... Robin já foi malvado... E o passado, será que passou mesmo? Poderia, talvez, citar mais alguns exemplos, antigos e atuais, mas não vem ao caso. O que vem ao caso é o fato de que não tive, tenho ou terei candidatos e, no entanto, fui obrigado a comparecer às urnas, como todo mundo.
Meu candidato não existe mas, se existisse, ele montaria sua plataforma sobre projetos como: o de aumentar drasticamente o salário dos professores do ensino fundamental e exigir proficiência à altura, seja por meio de concursos, seja por meio de curso superior, o que for. Para isso basta diminuir, também drasticamente, o salário dos políticos. A idéia é buscar, formar, pescar todo possível elemento que venha tomar parte no desenvolvimento de uma elite cultural. A idéia é aumentar o número de pessoas de elite ou na elite. A miséria continuará sendo tratada com todos os paliativos costumeiros, caridosos, conhecidos e amplamente testados, mas sua imobilidade social não deve prejudicar a formação de uma elite cultural que, diga-se de passagem, é a única coisa que se move e promove algum movimento num país.
Não aceito muito bem a divisão de uma sociedade em termos de classes sociais. Isso me soa um dogma meio arcaico precisando de ar puro, mas sou obrigado, pela tradição, a usar a expressão classe média. Mesmo assim quero deixar clara minha simplória definição de classe média: são as pessoas que pagam as contas. Pagam as contas do país, o salário dos políticos, o salário de seus empregados, todos os impostos, todas as taxas, todos os seguros obrigatórios, todas as contas de água, luz, telefone, o escambau. Meu candidato vai ser aquele que proteger, amparar, facilitar as coisas ao máximo para a classe média. A outra classe já têm protetores, pastores, teóricos, aduladores e adulações saindo pelo ladrão (como diria o Leão da Montanha, do velho desenho animado: "saída despistada pela esqueeerda..."). Há ainda uma outra classe, mais acima, mas essa não precisa de nada. Evidentemente agora estou falando de classes econômicas, mas é só.
Meu candidato ia proibir outras atividades paralelas aos cargos públicos. Pastores, militares, artistas, médicos ou sei lá o quê, recolham suas bíblias, patentes, violões e blocos de recibos - ou melhor: antes de assumir, provem a própria probidade, ou estão sumariamente fora.
Meu candidato não será veículo de um paternalismo governamental. Isso é difícil. A idéia é muito arraigada popularmente, é idéia chave nas esquerdas, que são crédulas e acreditam num paternalismo geral: a idéia é que algo, alguém(s), alguma coisa tem o dever de cuidar das pessoas. O governo é a instituição que administrará toda a vida econômica e, por extensão, a vida social de um povo. Administrar é um eufemismo para controlar e os mecanismos de controle sempre tendem à brutalidade burocrática, à brutalidade executiva e à simplificação, também brutal, do sistema jurídico, do código legal que se transforma rapidamente em mecanismo repressor. E isso não é uma especulação; é o que aconteceu em vários lugares e em várias ocasiões. Chama-se História da Administração das Utopias Políticas. Um povo bem cuidado é um povo resolvido, dizem. E um povo, para honrar o nome mítico de "o povo", evidentemente tem que ser formado por pessoas muito semelhantes, pessoas cujas necessidades são básicas e iguais, cujos desejos o são igualmente e, o mais importante: pessoas que pensam igual. Se elas não pensam por igual, faz-se necessário, mais cedo ou mais tarde, corrigir a nota dissonante. Eliminar as divergências sempre foi a saída clássica.
A esquerda acredita em estatísticas e lida só com números gigantescos; o discurso militante que manipula os números da miséria e do desemprego, da insatisfação e da penúria, é de uma arrogância extrema, ainda que quase sempre invisível porque, aparentemente, se baseia num sentimento humanitário. Alguém realmente acredita que se possa manipular essa realidade (a vida, ou chame como quiser) que se espelha em números na casa dos milhões? Alguém acha que qualquer órgão, instituição, poder público, ou o que for, pode resolver, mesmo por meio do melhor planejamento possível, um quebra-cabeça com milhões de peças? Solucionar essa coisa definida como problema social - mas que não é um problema social, é mais que isso - e cuja magnitude é muito superior aos números impressos que a representam? Alguém acredita mesmo que alguém tenha acesso, mesmo teórico, às causas reais da miséria? Se isso não é arrogância pura e simples, é arrogância e má fé.
E ainda: meu candidato iria acabar com o voto obrigatório. Não gosto de ser obrigado a nada, muito menos a escolher alguma coisa no lixo. E a elite moral desse país, ou seja, as pessoas de bem e com bons sentimentos que, felizmente, são numerosas, poderiam tentar bloquear essa malta de aventureiros que aspira ao poder, obrigado.
Guga, eu também votaria em seu candidato, com suas idéias revolucionárias. "Viva a revolução"!, e não é ironia. Mas a coisa política está tão suja, que para ele ser realmente candidato, teria que inventar um partido só para ele.
Além da qualidade estética - que, de tão presente nos textos do Guga, a gente nem se preocupa mais em destacar -, o conteúdo revela uma posição super-saudável de liberdade frente a uma infinita hipocrisia. Destaco a observação sobre o tempo do político ser gasto quase inteiramente com a obsessão de se manter no poder, e também o comentário final sobre a imposição que nos transforma em catadores de lixo.
Caro Guga,
Primeiro, esclareço que sou (sempre fui) a favor do voto facultativo. Por maior que fosse a abstenção, isso em tese levaria às urnas pessoas realmente interessadas no processo eleitoral.
Mas, por favor, dê-me licença para acreditar que algumas mudanças podem, sim, acontecer por meio do voto. Também sou classe média, também pago contas (muitas, aliás), mas não creio em "elite moral". Em 1964, houve um golpe em nome de conceito semelhante, e deu no que deu. Alguém sempre irá assumir o poder, e eu prefiro que seja pelo voto.
Guga, fiquei impressionada com a ênfase dada na educação, pois sendo professora há 44 anos, acredito ser esta nossa única saída viável e ainda possível... Me fez bem saber que ainda temos reflexões neste nível e que elas podem chegar a um grande numero de pessoas no país.
É curioso, pra não dizer terrivelmente triste, que no Brasil ainda se acredite que o pobre, o negro, o cara que precisa de crédito na lavoura, a família que não pode pagar por todas as contas (não por falta de vontade, provavelmente), da qual a sofrida classe média tanto reclama, sejam todos o “outro”. O Brasil, afinal, é este de que fala o Guga, um país bonitinho, inteligente, que se veste bem porque tem bom gosto. Essa teoria, que me perdoem, soa como as do século XIX. E não é exagero. Quem quiser pode conferir.
Eis que reina a falta de opção! Votamos em um outro alguém para que não permitamos que certa persona vença. Pode parecer falta de senso, mas não é. Torço para que o candidato revolucionário, utópico e verdadeiro, citado neste texto venha a existir!
O texto eloquente e cheio de razão não é novidade. Muitos de nós não aguentamos mais o "velho" modelo de governo. Mas o que estamos fazendo para mudar? Textos? Críticas? O que estamos fazendo de concreto? Porque quem lê este tipo de texto, ou melhor, quem lê, já tem uma outra visão do mundo que nos cerca.
Que tal partir para a ação? Criar espaços físicos para discutir e planejar ações efetivas? Será que os ideais dos anos 70, 80, não poderiam renascer? Será que a ousadia, o empreenderorismo político que nos movia a ir às ruas e gritar pelo que queríamos não está vivo, ao menos nos pensamentos de alguns? Proponho usarmos espaços públicos para iniciar uma revolução política, cultural, social, educacional. Cada um levando seu conhecimento e despertando o senso crítico do outro, seja um vizinho, um amigo, um parente ou até um desconhecido. O que vocês acham?
Quando analfabetos, alfabetizados que não entendem o que leem, crianças e vagabundos condenados, têm o poder de cancelar votos conscientes ao votar contra os informados, cultos, produtivos, e esclarecidos, fica estabelecida a "aberração democrática" brasileira, mãe do voto chulo, aquele que elege rinocerontes, primatas, analfabetos, alienados de vários matizes, patifes, ladrões, estelionatários, assassinos, corruptos e malfeitores, oportunistas e debochados em geral. Sobra para o cidadão consciente, o voto nulo. A alternativa de negar-se a participar de uma verdadeira orgia moral, quando os valores, (ética, honestidade, competência, seriedade, compromisso, patriotismo e dignidade) desaparecem em meio a escândalos, falcatruas, conchavos e malversação dos bens da República. Voto chulo ou voto nulo? Fico com o segundo.
Engraçado... O texto foi escrito nas últimas eleições presidenciais, há 4 anos. Levei um susto ao terminar a leitura, achei que seria pra estas. Incrível, nada mudou. Aliás, mudou, sim. Alguns pontos que o Guga destacou tão bem pioraram nestes 4 anos. Tenho medo do Brasil.
Já comentei este texto, mas me ocorreu outro pensamento: se o voto não fosse obrigatório, vocês já imaginaram como seria a disputa pela "compra" de votos dos que, supostamente, não iriam por livre e espontânea vontade às urnas? Será que estamos amadurecidos para o voto não obrigatório?