É incomum que o público tenha a chance de assistir um espetáculo com a força deste Toda nudez será castigada trazido pela Armazém Companhia de Teatro. Não é com outro sentimento que não admiração que se vê um trabalho de tamanha consistência - prova da maturidade de um grupo coeso sob a batuta de um diretor que já deu várias provas de sua competência, Paulo de Moraes.
Montado à exaustão, o brilhante texto de Nelson Rodrigues (1912-1980) ganha uma roupagem ousada, extremamente original. Não se poderia esperar outra coisa do grupo, que já brindou o público com espetáculos que já marcaram seu lugar na história do teatro brasileiro contemporâneo, como Alice através do espelho (1999) e Pessoas invisíveis (2002).
Formada em Curitiba no ano de 1987 e radicada no Rio de Janeiro desde 1998, a companhia se pautou principalmente pela busca de uma dramaturgia própria. A identidade alcançada por essa postura traz a segurança evidenciada nessa montagem de Toda nudez será castigada.
O início é absolutamente alucinante. O mergulho radical e violento joga o espectador fundo na poltrona e sinaliza que o que se segue é um percurso nada agradável por uma história que gradativamente ganha ares de pesadelo. E a expectativa não é frustrada. O subtítulo que Nelson atribui ao texto - "Obsessão em três atos" - é construído com precisão pelo grupo.
Classificada como uma de suas "tragédias cariocas", Toda nudez... coloca em questão um dos temas caros ao dramaturgo, o puritanismo. Conta a história de Herculano, um viúvo que reprime seus desejos em nome de uma castidade inflexível. É um homem devastado e sem perspectivas, que passa os dias chorando a morte da esposa.
A conselho de seu irmão Patrício, Herculano dirige-se embriagado ao bordel onde trabalha a prostituta Geni. Ela se apaixona instantaneamente por ele, que se entrega a ela no decorrer da história. O enlace entre os dois acarreta em uma sucessão de acontecimentos que desemboca em um desfecho trágico.
Os falsos moralismos, as hipocrisias e a força inexorável dos instintos humanos explodem a olhos vistos. Nelson conduz o fio narrativo com maestria: a história começa em um cenário caótico e descamba em um final violento e desolado. Não há um respiro; o espectro da tragédia ronda cada gesto, cada palavra.
Nesse verdadeiro campo de batalha transitam tias solteironas em luto perpétuo, um filho desequilibrado, médicos, padres, delegados. O olhar ácido sobre as pequenezas do ser humano é implacável. Toda nudez é um monumento ao que o homem tem de animal por baixo das máscaras sociais. E o resultado não é nada redentor; ao contrário, é um retrato imposto goela abaixo tal qual um purgante amargo.
Este é um ponto em que reside uma diferença vital entre Toda nudez e as grandes tragédias shakespereanas. Otelo é um general grandioso, um herói clássico que comete uma falha trágica que sela seu destino e dá início à série de catástrofes que se impõem sobre ele. Herculano, por outro lado, nada tem de herói. É um fraco, um homem incapaz de lidar com o turbilhão de contradições que carrega dentro de si. Mais humano, talvez.
Seu irmão Patrício, por sua vez, é um antagonista na acepção mais ortodoxa do termo. Movido pela vingança, trava uma marcha inabalável rumo à queda de Herculano. E faz tudo o que tem a seu alcance para que esta queda seja a mais dolorosa e humilhante possível. Hábil manipulador, joga com todo o entorno para que tudo siga conforme seus sórdidos desígnios.
E Geni é a prostituta que luta contra sua própria natureza em nome da ilusão de uma mudança de vida ao lado de seu amor. Sua queda, não menos cruel, ganha forma na medida em que o mundo construído por Herculano começa a ruir. Também cega por seus sentimentos, entrega-se aos tortuosos caminhos do pesadelo rodriguiano e termina suicidando-se.
A trama é carregada da ironia e do humor cáustico próprios do dramaturgo. Momentos como os dilemas patéticos de Herculano, a hipocrisia das tias na cerimônia de casamento ou o tragicômico ladrão boliviano arrancam de uma platéia por vezes atônita (o texto surpreende) um riso ora nervoso ora constrangido, indigesto.
O subtítulo não poderia ser mais apropriado. São todos obssessivos: Herculano pela mulher e depois por Geni, essa pela perspectiva de uma vida diferente, Patrício por vingança, o filho Serginho pela falecida mãe, as tias pela moral e pelo recato. É um desfile de personagens que bem podiam ter saído do divã mais próximo.
A concepção de Paulo de Moraes é inovadora sem que a fidelidade a esse universo seja comprometida. Ao contrário: a tradução é acuradíssima. A começar pelo cenário, etéreo, esfumaçado, quase sobrenatural. A profusão de efeitos visuais é impressionante. Paulo, diretor com "D" maiúsculo, é inegavelmente um visionário; o que depõe contra a montagem é justamente o excesso de efeitos, que termina por, em alguns momentos, dispersar a atenção para com o texto.
A dupla de protagonistas - Thales Coutinho como Herculano e Patrícia Selonk como Geni - dá conta de intrincados papéis com precisão e sensibilidade. A honestidade dessas interpretações é vital para a grandeza da montagem. Fabiano Medeiros constrói um Patrício que é um verdadeiro calhorda, transbordando de ódio e sordidez.
O resto do elenco cumpre, com exceções pontuais, as exigências do texto. A reserva mais séria fica por conta do papel do filho Serginho, interpretado por Sérgio Medeiros. Esse controverso e curioso personagem, um filho que aparece como um problemático e torna-se peça-chave chave no enredo, cheio de nuances, fica resumido aqui a um tipo afeminado e arredio.
Tem-se, em resumo, uma montagem de alto nível para um dos textos fundamentais da dramaturgia nacional. Ainda bem que temos Nelson Rodrigues e o Armazém para que possamos ter nossas contradições expostas com tamanha eficácia e, por que não, beleza. O espetáculo pode não ser redentor; nem deveria sê-lo. Mas que é transformador, isso é um fato inquestionável.
Para ir além Toda nudez será castigada - Centro Cultural São Paulo - Sala Jardel Filho - Rua Vergueiro, 1.000 - Liberdade - Tel. (11) 3383-3402 - R$ 12 - Quarta a sábado, 21h, domingo, 20h - 110 min. - Até 12/11.
Conheci um sujeito, nos tempos de colégio, que era intensamente atraído por todo tipo de escatologia. Da meleca ao peido, passando pela bosta e outras tantas - não preciso mencionar todas as palavras, todo mundo já entendeu - ele era fissurado nesses assuntos. Sabia um sem número de piadas, as mais escabrosas e não vacilava em contar. As meninas fugiam dele; invariavelmente ele comentava que elas também defecavam, etc. A gente, meio safadamente, tolerava um pouco o cara, mas ele nos entristecia mais do que nos divertia e, principalmente, cansava. Pela repetição, pela patente infantilidade. Era evidente que o cara tinha um problema. Acabou escorraçado. A simples presença já incomodava. Um professorzinho, meio suburbano, tentou sua defesa, dizendo que ele colocava em xeque nossa mentalidade pequeno-burguesa. A gente riu; a piada foi boa. Agora: quando leio (ou leio sobre) Nelson Rodrigues, acho que eu estou voltando no tempo. Argh.