De vez em quando, na saída do trabalho, eu aproveito que é caminho de casa e dou um pulo na Baratos da Ribeiro. Se você acha o trocadilho com o nome da rua onde ela fica (Barata Ribeiro) jocoso, saiba que o outro candidato era Fernandos Sabidos. A Baratos é a loja mais recente da Livreiros Associados, empreendedores daquele ramo cheio de eufemismos espinhosos: "velhos", "usados", de "segunda" mão, ou simplesmente, livros. Como não estamos tratando de livros didáticos, que tem linhas pontilhadas para as crianças terminarem com "çúcar" a frase "a união faz faz a...", não sei bem o que se entende por usados aqui. A Baratos fica ali na meiuca de Copacabana, bairro onde já havia se instalado a Gracilianos do Ramo, ou, para os mais íntimos, Gracilianos, o que comprova tanto a falta de talento onomástico dos Livreiros quanto a predisposição do bairro para esse tipo de comércio, não fosse aí um repositório de aposentados...
Como o espaço da Baratos era muito grande, diversificaram e montaram uma estante para LPs, outra para CDs com as revistas em quadrinhos na parte de baixo, criando, por assim dizer, o primeiro sebo mega store que se tem notícia no Rio. Deu certo, porque os LPs têm saída impressionante, e volta e meia aparece algum gringo - taí outra espécie abundante em Copacabana - procurando discos de "George" Ben. Para completar, colocaram uma Tv, fazendo uma salinha de video no fundo acusticamente isolada por uma parede de vidro, e uns sofás na frente, criando uma espécie de sala de estar. A idéia é a mesma: criar aquele ambiente de aconchego, de deixar as pessoas à vontade. Como se alguém se sentisse inibido no meio daquela zona de livros...
Explico: desde a sua inauguração, logo depois do carnaval, rolou uma festa lá dentro - é, festa dentro de sebo. Com direito a música direto da vitrola e gente dançando entre as estantes, eu vi - a livraria, como qualquer sebo, tem seguido esse jeito meio casa-da-sogra de ser, venham fazer bagunça aqui ao invés de nas suas casas. Naturalmente, sebo já é pára-raio de maluco. Não contente com os velhinhos do turno da manhã, os crentes do meio dia ou os do expediente no fim da tarde, por ser gerenciado por um pessoal mais jovem (Lisandro, meu chapa, e Maurício), um fluxo de gente em faixa etária mais nova foi atraído e tem frequentado o sebo. Se o Brasil fosse um país de primeiro mundo e a Laetitia Casta a minha namorada, o Jaime estaria montando encenações teatrais e o Marcão seria pesquisador de História em uma faculdade, mas, como não é, ambos batem ponto na Baratos e fazem o agito nessas festas.
Então que numa festa dessas é que se vê a verdadeira "riqueza da diversidade". Aquelas meninas de unha azul, aquele "povo verde", em meio a coroas queimados de praia ainda com alguma noção do que seja vida noturna. Como por exemplo o mineiro Carlos Magno. Quando criança, o Carlos foi expulso de um colégio porque acabou chutando uma pequena bomba que foi parar debaixo da batina de um padre, bem entre as pernas dele. Bum. Gostava muito de fazer bombas, e esse gosto se tornou um problema particular na época da ditadura, apesar de, como ele mesmo disse, não ter muita ideologia. O negócio dele era jogar bomba. Hoje, em vias de se aposentar, Carlos Magno complementa sua renda deixando uma enorme coleção de discos e livros em consignação, e nas horas vagas vai levar as filhas adolescentes no show de Sandy & Junior. O visitante esporádico não deve estranhar o entrosamento entre esse pessoal da terceira idade e os mais jovens; certa feita numa festa quando eu vi um velhinho entrar em roupas bem casuais, pensei logo: não estava conseguindo dormir e vai reclamar do barulho. Qual nada! Foi direto em quem estava com a garrafa de cerveja pedir uma dose...
Entre a turma mais jovem, volta e meia aparece alguma menina com presilha no cabelo e baby look procurando revistas da década de 60 ou 50 para copiar as modas ou chupar a programação visual na homepage que está construindo, e entre os homens sempre tem algum moleque com pasta debaixo do braço e um papo assim: "você também desenha?". Conheci um cara lá dessa turma, cujo nome nunca aprendi (mas que nunca fez falta, porque ele só anda de preto e usa umas suíças enormes, então eu sempre o chamo de Wolverine). E tem também as promoções que o Lisandro - o qual, segundo consta nos anais, foi quem sugeriu o nome da loja - inventa, responsáveis por atrair boa parte das reportagens feitas sobre a loja: debaixo do disco "As preferidas de Tony Carrado" tem o seguinte cartaz: "traga a sua deusa aqui na loja, 'dubrem' O Amor e O Poder e levem de graça este disco". Debaixo da edição francesa de "A Mística Feminina" tem: "Mulher! Queime o seu sutiã dentro da loja e leve totalmente de graça este livro". No estatuto do imigrante, versão 1987, está: "Comprove que está vivendo ilegalmente no Brasil e leve o estatuto de graça". Duas que fizeram muito sucesso eram a que prometia o disco do Village People a quem dançasse a coreografia de Y.M.C.A. na loja, e a trilha sonora de Saturday Night Fever para quem imitasse o Tony Manero ao som dos Bee Gees. Reza a lenda que um caboclo foi lá, dançou e levou. Diz a maledicência local que era gay.
Mais promoção: xerocaram a palma da mão de um dos livreiros da parte da manhã e colocaram lá na parte da tarde: o cliente que conseguisse descrever a personalidade dele pelas linhas da mão levava grátis um livro de quiromancia. Teve um que acertou na mosca. Encontra-se tanta coisa dentro dos livros que já chegou-se a considerar um exposição só com cartões de visita, passagens do metrô, entradas de show, recortes de jornal, listas de compra, fotos... foto dentro de livro é mato. Chegaram a encontrar um álbum inteiro de fotos de viagem dentro de um livro. Imaginar um roteiro para amarrar aquelas imagens é um passatempo dos livreiros nas horas mortas. Alguns desses mementos servem para estimular promoções: colaram o 3x4 de um cara de cavanhaque e bigode em um A4 e anunciaram que se ele aparecesse na loja e se identificasse ganharia um desconto. A que mais me chama a atenção atualmente é a de uma tal Simone, que caiu na besteira de esquecer uma foto em lingerie branca e pose provocante dentro de um livro, com dedicatória para o namorado atrás. Agora a foto faz parte de outro cartaz, junto com um apelo: por favor, Simone: apareça aqui na loja para ganhar os nossos descontos e a nossa bajulação. O Lobão esteve lá uma vez e autografou o LP Ronaldo vai à guerra; o preço foi prontamente triplicado depois disso. Joel Silveira, por conta de seus ataques à ABL, motivou outra promoção ao comentar a qualidade literária de Zélia Gattai:
- Elas faz ótimos acarajés.
Logo, apenas na Baratos da Ribeiro, você podia trocar acarajés por livros de Joel Silveira, inclusive um com título deveras apropriado: "Você nunca será um deles"...
O último evento - lojas assim vivem de invetar eventos. Uma vez eu cheguei lá no fim da tarde e perguntei debochadamente se as pessoas reunidas na sala de video eram o que, um grupo de estudos de Nietzsche? Pior é que eram - que eles inventaram foi uma jam session de dub com percurssão ao vivo. Dub, vocês sabem, é aquele tipo de música que parece uma mistura de vários ritmos e não é ritmo nenhum. Já me definiram dub como um funk psicodélico e como ruído de fax. Sonzeira, o povo ouvindo, alguns dançando enquanto percorrem as prateleiras de livros. Existe uma controvérsia quanto ao perfil que a loja passa a ter com esse tipo de eventos, porque o chamado público "alternativo" não costuma combinar muito com o leitor de livros, mais sóbrio e recatado na sua intelectualidade.
Também, deve ser meio complicado ler enquanto se sacode a cabeça para cima e para baixo daquele jeito. O fato é que parecem estar conseguindo um feito inédito, o de fazer de livro um troço hype. Na última vez teve até equipe daquela tevê que é uma M. estava filmando o tal evento. Me pegaram folheando um livro. Menos mal que era do Huxley. Na filipeat que distribuíram convidando dizia assim: fetiches de segunda mão, revistas pra gente grande, imprensa udigrudi, fotos de desconhecidos, postais rasurados, uma calça para strip, promoções capciosas, gente à vontade, papo sem compromisso, cachimbos de baunilha, Guias Rex, Paluma, fotos de figurantes, Sandy nu frontal, despachos do Habib's, barbas mal-feitas. Explicações: revistas para gente grande são aquelas que você tem que tomar cuidado, porque as de segunda mão podem ter páginas coladas; postais rasurados também são amplamente encontrados entre as páginas de livros usados; calça para strip é gozação, mesmo; nem me pergunte o que vai nos cachimbos de baunilha; Guias Rex velhos são uma das grandes atrações da prateleira de bizarros, as outras sendo Zélia, uma Paixão (isso porque o próprio Sabino frequenta a Gracilianos direto) e o livro da Adriane Galisteu; Paluma é o boteco do lado, onde gente à vontade de barba mal-feita compra cerveja para embalar o papo sem compromisso; fizeram uma montagem com a Sandy em nu frontal para sinalizar a seção de Erotismo; despachos são os restos de comida do Habib's, principal mata-fome dos Livreiros.
Obviamente que não tem dica nenhuma para quem quiser dar um pulo lá. Eu diria para avisarem que leram meu texto, mas eles dão desconto de qualquer jeito... De qualquer forma, apareça, e dêem uma abraço na turma. Aliás, o próximo evento que estão organizando é uma roda de samba capitaneada pelo Bezerra da Silva. E uma mesa redonda sobre quadrinhos.
Rafael,
Muito obrigado pela matéria. Foi a primeira que conseguiu traduzir o estado de espírito confuso e indefinível da Baratos. Pena que você não incluiu no seu texto a mitologia que lá foi agregada a você! Assim, aproveito para lançar uma nova promoção: "Venha a Baratos da Ribeiro, conte algum fato picante e SECRETO sobre a vida de Rafael Lima e leve 10 PLAYBOY ou a G Magazine do Vampeta assinada, a sua escolha, totalmente de graça!" .
Um abraço de todos da Baratos.
Rafael, sua tentativa de entender e explicar o que é a Baratos é comovente. Valeu a tentativa. Quem sabe, daqui uns 600 anos a gente consiga entender o que fizemos, todos nós, inclusive você.