Às vezes, as pessoas contam histórias bonitas sem ter a noção do que elas [as histórias] sejam. Nem mesmo de que sejam crônicas de um dia comum, da vida mais amena de que se tem notícia. Fomos adestrados para acompanhar a macro-história, os grandes eventos, as vidas das celebridades. Para que se tome consciência de que os episódios prosaicos merecem registro, é preciso que alguém use lentes de enxergá-los. E as lentes, muitas vezes, ficam guardadas. À maneira da dança ou dos esportes, ficamos inábeis se ficamos tanto tempo sem usar esses filtros. Fazer crônica é enxergar o avesso dos eventos. Os deseventos, desinventar o notável, inventar o quase invisível, observar as coisas quando elas são despistadas, discretas, aliviadas do peso de serem epopéias.
Grande parte das vezes, escrevo sobre nadas. Ou quases, que são ainda mais interessantes. Usurpo histórias que nem são minhas, propriamente. Mas são, quando percebo que foi por um triz que não aconteceram comigo. Se me contam algo, vejo logo uma fresta por onde deixar escaparem os textos. Penso logo nesta coluna, minha janela para as identidades que nem são minhas. Há quem evite de me contar histórias porque, para eles, talvez eu seja uma fofoqueira. Há quem tenha pavor de ter sua história contada aos quatro ventos. Mas nem saberão que são eles os felizardos de viverem tanta pequena coisa gostosa.
Dessas histórias, ouvi uma ontem à noite. Caiu-me de presente nos ouvidos, como se não fosse nada. Depois de um dia cansativo, desastrado, alguém me presenteia com um texto pronto. Só me faltava limar as beiradas para que ficassem arredondadas.
O francês Roland Barthes, lido com rigor durante a graduação, adora metáforas gastronômicas. Não estive cansada de lidar com as semelhanças entre saber e sabor, de etimologias parentes. Ou de pensar a delícia do gosto das palavras. Palavra, gente, precisa saber degustar. E isso a gente aprende, porque está aqui, nos nossos cinco sentidos mais primários. Todo mundo tem. Não sabe é porque ainda não sentiu o gosto. Não saboreou, melhor assim.
Foi esta história gostosa que Maria do Carmo me contou. Assim, de leve, como quem conta que sonhou na noite passada. Daquelas narrativas sonsas, num final de expediente, depois de atender ao telefone. Estava ela falando com o filho, na minha frente, no celular. Sem graça, porque parece que para alguns ainda é falta de educação fazer o que é privado no espaço público. Mas apenas alguns têm ainda esse comportamento. Maria do Carmo está entre estes.
Falava ao telefone numa ternura imensa. Eu mexia nuns papéis, para deixá-la à vontade na tarefa de conversar com o rapaz. Mas não me continha e escutava com admiração o que ela dizia; ainda mais, me derretia com o jeito apaixonado dela no telefonema.
Falaram rápido. E eu não pude abafar minha curiosidade. Perguntei: algum problema? E ela me contou o seguinte, assim, nesta voz calma de quem tem certezas tranqüilas: "Estava tentando marcar um almoço com meu filho. Chega uma época em que os pais começam a ter que agendar encontros com os filhos". E ela sorria, mansamente. Havia saudade em seus olhos, mas nada que a abalasse.
"Meu filho não mora mais comigo. Decidiu morar sozinho faz um tempo. Mas mora perto da minha casa. Quando ele morava lá em casa, quase não nos víamos ou nos víamos dormindo. Ele chegava tarde e eu saía cedo. Daí ele achou que deveria morar só. E depois de um tempo, decidiu que queria aprender a cozinhar. Estamos sempre em contato, via MSN, bilhetinhos nas caixas de correio." Maria do Carmo tinha no rosto um sorriso orgulhoso, carinhoso. "Quis ajudá-lo e então marcamos um compromisso. Toda semana almoçávamos juntos para que ele aprendesse a se virar na cozinha. E para ter sempre o compromisso, convidávamos duas pessoas para comer conosco, às vezes uns amigos, outras vezes um casal." E ela gesticulava docemente.
"A brincadeira na cozinha ficou séria e dei a ele um livro de receitas. Mais adiante, resolvemos escrever nosso livro de receitas. E a coisa foi crescendo. Passamos a registrar, com texto, tudo o que acontecia antes do almoço ou do jantar, a receita propriamente e ainda uma avaliação dos convidados sobre a comida." E ela mexia nos anéis e tinha nos olhos as lembranças de todas as aulas de gastronomia que deu ao filho.
Coisa mais gostosa ouvir Maria do Carmo contar da convivência saborosa com o filho, aprendiz de cozinheiro, aprendiz de feiticeiro, alquimista. Lembrei-me de Adélia Prado, num poema famoso, contando que limpava os peixes com o marido na cozinha, nem tanto pelos peixes ou pelo trabalho que isso dá, mas porque o gostoso eram os cotovelos se esbarrando. A convivência temperada das pessoas que se gostam. Qualquer coisa é motivo para conviver. Basta uma desculpa para passear, caminhar, cozinhar, estudar, conversar, beber, celebrar.
Foi assim, no final do expediente, que esta história me caiu do céu. Semana que vem Maria do Carmo vai almoçar com o filho que mora sozinho. Vou dar meu jeito de saborear um amigo, o filho, o marido, um irmão, antes que precisemos marcar horários em nossas agendas.
Ana,
tenho dois filhos:um de 8 e outro de 16 e percebo que já vivo essa realidade de ter que agendar momentos com eles. Lágrimas me vieram aos olhos. Seus textos são "vivos",resgatam lembranças e promovem alertas. Sempre me emociono. Sou outra após lê-los. Obrigada.
Ana, seus textos valem sempre a visita, é uma liberdade quase anárquica. Me sinto como um preso que se recusa fugir da prisão. Quando penso em estilo e precisão falo para uma irmã que não te conhece da sua fluência e hoje neste texto pude apreciar uma leveza e um calor quase imaterial. Sua prosa flerta desavergonhadamente com a poesia e é bela. Não sou de rasgar seda, mas hoje você está demais. Um grande abraço, Carlos.
Ana, não há dúvida de que você faz do ordinário o "extra-ordinário". A Maria do Carmo lhe presenteou com um pretexto e você nos presenteou com seu texto, sua crônica, como sempre, muito mais que um "digestivo", é como uma guloseima, muito saborosa... Obrigada! Grande abraço.