Num ano de presidente reeleito com votação consagradora, heróis da bola transformados em vilões, revista fazendo papel de panfleto e televisão fazendo as vezes de juiz eleitoral, quero eleger como melhor do ano um escritor que sequer é brasileiro, não escrevia nada de novo desde o começo dos anos 70 e rejeitou, em 2006, o maior prêmio literário da língua portuguesa. Seu nome: Luandino Vieira.
Comecemos falando do prêmio. Instituído em 1988 pelos governos de Portugal e do Brasil com o objetivo de "consagrar anualmente um autor de língua portuguesa que, pelo valor intrínseco da sua obra, tenha contribuído para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural da língua comum", o Prêmio Camões concede ao vencedor a importante quantia de cem mil euros, ou seja, cerca de trezentos mil reais! Entre os ganhadores figuram nomes como os portugueses Miguel Torga, José Saramago e Sophia de Mello Breyner, os brasileiros João Cabral de Melo Neto, Jorge Amado, Rubem Fonseca e Lygia Fagundes Telles e o africano Pepetela. Nenhum deles, por óbvio, recusou-o.
Mas Luandino Vieira tem uma biografia muito própria e interessante, guardando mágoas de um tempo de guerras e coerência num tempo de volubilidades. Nascido em Portugal em 1935, foi ainda pequeno para Angola - então um país colonizado -, onde ao invés de ajudar seus patrícios no enriquecimento fácil, combateu ao lado dos angolanos no MPLA, movimento de guerrilha pela libertação de Angola. Em 1959 foi preso pela primeira vez e, em 1961, preso novamente e mandado para o Tarrafal, campo de concentração numa ilha inóspita para onde os presos de guerra eram enviados por Salazar. Enviados para morrer, mas incrivelmente Luandino permaneceu preso por oito anos, ao fim dos quais passou a viver em Lisboa em regime de residência vigiada.
Foi na prisão que o escritor produziu grande parte de sua obra, incluindo o famoso livro de contos Luuanda (Companhia das Letras, 2006, 144 págs.). Em suas três "estórias" - note aqui a influência de Guimarães Rosa -, Luandino foge de um realismo combativo, como se poderia esperar de um preso político, e mescla lirismo e crônica social de forma tão feliz que o livro, publicado em 1963, ganha o Prêmio Camilo Castelo Branco da Sociedade Portuguesa de Escritores em 1965. Na ocasião, o governo Salazar aproveitou a oportunidade para fechar a Sociedade e aumentar ainda mais a repressão cultural no país e nas colônias.
Repressão e guerra colonial que durariam ainda até 1974, quando ocorre a Revolução dos Cravos e cai o regime salazarista. No ano seguinte, 1975, os países africanos tornam-se independentes e Luandino volta a seu país e chega a participar do governo, mas com o fiasco das primeiras eleições livres e o recomeço de uma nova guerra civil, em 1992 decide regressar a Portugal e isola-se de tudo e de todos na fazenda de um amigo no Minho, onde se torna agricultor.
José Rodrigues, outro amigo do escritor, por ocasião da recusa afirmou: "Luandino tem seu mundo muito próprio, e por isso esta reação não me surpreende. A única coisa que me surpreenderia é se ele deixasse de escrever, mas tenho a certeza de que isto não acontecerá".
De fato, no começo de novembro de 2006, Luandino Vieira voltou à cena com a publicação pela editora portuguesa Editorial Caminho de O livro dos rios, primeiro volume de uma trilogia chamada De rios velhos e guerrilheiros. Além disso, também em 2006 a obra Luuanda ganhou nova edição pela Companhia das Letras, facilitando o acesso para os leitores contemporâneos deste acontecimento literário.
Diante da coincidência da recusa do prêmio em pleno ano em que voltou a publicar, não faltou quem acusasse o escritor de fazer marketing para promover seu novo romance ou chamar a atenção para sua figura, o que, cá entre nós, é uma heresia: primeiro porque ninguém rejeita ganhar 300 mil reais por marketing, muito menos um cidadão angolano ciente da quantidade de problemas sociais do seu país. Depois porque o romance de certo estava planejado há anos e escrito há tempos, e só o fato de um escritor premiado nos anos 60 voltar a escrever depois de trinta anos já despertaria interesse da mídia e do público.
As razões para a recusa do prêmio, portanto, são bem mais profundas e, até, anacrônicas. É preciso voltar no tempo, voltar a um tempo em que ideologia não era utopia, em que havia espaço para novas esperanças e homens dispostos a pegar em armas para lutar por elas. Verdade que a resposta foi cruel e em nome da luta foi derramado muito sangue, aniquilado muito sonho, devastado o país. Ainda hoje as minas são um problema sério em Angola, mais sério que os altos índices de analfabetismo, de miséria, de fome e da AIDS.
Por tudo isso não se pode deixar de saudar um ano em que o mesmo império português que prendeu e torturou um homem oferece a ele um prêmio. Um ano em que este homem, com hombridade e coerência, recusa tal prêmio. E, de quebra, no mesmo abençoado ano na vida da literatura angolana, lança o começo de uma trilogia esperada há pelo menos trinta anos.
Por tudo isso Luandino Vieira é o personagem deste 2006 para os leitores de língua portuguesa.
Imagino que uma pessoa que vê seus ideais sendo desmembrados, ou melhor, que sente o mundo como um antagonista invencível (e o mundo é), tem motivos de sobra para atitudes como essa. Recusar um prêmio desses, que permitiria viver e escrever tranquilamente, não passa pela cabeça de nenhum escritor. Deve haver muita coisa, um grande e escuro sentimento de perda, no cerne dessa decisão. Falando friamente, não sei se isso é bom ou ruim para a literatura de Luandino Vieira - acho que é preciso garimpar sua obra para responder isso. Sua história, trágica, merece toda a simpatia e sua postura, sem dúvida, toda admiração.
Sempre que um escritor recusa um prêmio literário, está considerando a literatura como coisa menor - do que a ideologia política, do que a visão filosófica, do que o trauma étnico etc. Luandino poderia recebê-lo e doá-lo a uma instituição de seu país tão sofrido, fundar uma ong etc. Recusá-lo simplesmente assim passa a idéia de que está acima dos países e das instituições, bem como de que considera o passado algo bem mais forte e significativo do que o futuro. Enquanto ele recusa o prêmio Camôes, milhares de escritores de língua portuguesa não conseguem sequer editar um livro e permanecem anônimos com obras extraordinárias, mas fora do circuito comercial. Não questiono os motivos íntimos e inconscientes que o levaram a essa atitude, mas é preciso contemplar o óbvio de que a colonização já terminou e essa é a língua que temos, ainda que em meio a tsunamis culturais.