Um dia recebi, por e-mail, um convite para escrever, a título de experiência, um texto para o Digestivo Cultural. O autor do convite era o próprio editor do site, J. D. Borges. Eu não sabia quem era e, leitor distraído, me lembrava vagamente desse nome que assinava algumas colunas que eu havia lido por lá.
Eu nem conhecia o site muito bem, havia anteriormente recebido alguma propaganda na minha velha caixa de correio do iG e tinha visitado, por curiosidade, o tal Digestivo. O nome não me agradava - não aprecio gastronomia, tenho um paladar infantil e tendência (não concretizada) para monge shaolin - comida frugal e meditações - e toda a nomenclatura gastronômica me desaponta um pouco, mas lia coisas no DC e, francamente, algumas indigestas. Indigestas no sentido de não serem leves, portanto, não digestivas. Mas todas eram culturais, no sentido amplo da palavra.
Acho que postei alguns comentários por ali - o fato é que eu estava justamente tentando mudar a cara do meu próprio blog - publicava poesias - e tentava também pegar o ritmo da blogosfera (nem conhecia essa palavra então). Postei no meu blog um artigo mais ou menos extenso sobre um encontro imaginário entre Marx e Lewis Carroll. Coisas que a gente escreve pra gente mesmo e guarda na gaveta.
De qualquer maneira foi nessa ocasião que recebi o convite. Junto dele veio a sugestão do tema: Copa do Mundo. O problema era grave: também não gosto de futebol (as razões caberiam numa longa justificativa e me fariam muitas inimizades, mas não vem ao caso) mas gostaria muito de ter um texto publicado na internet, fora do meu blog. Resolvi a equação apelando para a memória e escrevendo um relato pessoal sobre minha visão de um jogador mitológico. Mandei o trabalho e torci, silencioso, por alguns dias. O texto foi gentilmente aprovado; ilustrado com uma magnífica fotografia escolhida a dedo e foi ao ar. Foi o meu maior hit. Pífio, se comparado com os de alguns colunistas mas, pra mim, um verdadeiro hit.
Escrevo, intermitentemente, desde quando aprendi a ler. Tenho dois "livros" engavetados, todos os dois sendo basicamente compilações de meus escritos adolescentes - por conta deles me dei ao luxo, por exemplo, de torcer um pouco o nariz para Joyce, principalmente o Joyce de Finnegan's Wake, que eu li ou tentei ler muito depois, porque senti que Joyce era mais adolescente do que eu era; ou então me atormentar com o fato de que Faulkner não poderia receber minha carta confessando que tudo o que eu poderia querer, naquela época intensa de noites passadas em claro com um caderno (não tinha computador) nos joelhos, era escrever O Som e a Fúria. Acho que foi Ivan Lessa, ou Paulo Francis citando Ivan Lessa, que disse ser ele próprio uma "criatura literária americana". Ou anglo-saxônica, ou seja, de língua inglesa. Me identifiquei com isso, acrescentando ainda que não consigo viajar ao séc. XIX e mantendo a devida distância, claro. Não li ainda um décimo do que essa turma leu, mas um décimo deles já é o bastante para uma boa biblioteca.
Algumas novidades vieram se instalar no meu dickinsoniano (Emily Dickinson), cotidiano, indisciplinado modo de escrever. Uma delas é o aprendizado de uma disciplina necessária à produção de matéria, digamos, jornalística. Você tem que se ater ao assunto; pode voar, mas baixo. Outra é a experiência do contato, como leitor e escritor com outros leitores e escritores.
Há pouco tempo escrevi uma carta para nosso editor indagando sobre suas preferências literárias. Me interessava saber o critério de seleção para os textos no DC. Solicitamente ele me enviou um link, um texto seu no Digestivo ("Cabeça de papel") sobre autores preferidos. Jornalistas brasileiros, começando com o Francis e outros, europeus. Julio deve ler rápida e atentamente, uma leitura poderosa. Se o DC for colocado na frente de um espelho, do outro lado deve aparecer a face do Julio e não é sempre uma face risonha, apesar da extrema educação com que ele trata a todos.
Sempre me lembro de Paulo Hesse, personagem de Francis (nas duas cabeças: a de papel e a de negro) que considerava a falta de educação uma perda de tempo. O Digestivo tem coesão interna e é evidente que o Julio tem a compreensão profunda do que está fazendo, do que se pode fazer e do que está acontecendo no mundo que, parece, elegeu como foco de seu interesse: o jornalismo na internet que é, em última instância, o jornalismo do séc. XXI. Parece saber tudo e escreve com uma propriedade rara sobre temas tão distantes entre si que faz todo mundo pensar duas vezes antes de arriscar um mero palpite. Sob sua batuta solam ou solaram vários violinos, destacando-se do corpo sonoro da sinfonia em contínuo andamento, sendo esse andamento a preocupação real do maestro.
Há o naipe de colunistas e seus instrumentos bastante sonoros; Adrianas, Rafaéis, Marcelos e outros, uma turma da pesada. Gostaria de citar um por um, mas sei que vou pecar por falta de talento para retratar os talentos. Tenho de citar pelo menos o sopro claro do Rafael Rodrigues, a excelente crítica cinematográfica do Marcelo Miranda e a objetividade impessoal da Marília Almeida como exemplos de um jornalismo no mínimo vibrante. O DC dos anos anteriores me parece mais apropriado para focar sua (do DC) evidente singularidade como revista cultural na figura de três ex-colunistas: Rafael Lima, Alexandre Soares Silva e Paulo Salles. É incrível o domínio da linguagem (os textos ainda estão aqui) e, presumo, apesar da formação similar, são autores diversos.
Não me lembro de jamais ter lido um jornalismo como esse.
Rafael Lima tem uma luz de cartão postal, aqueles lagos brilhando sob o sol; o Alexandre é o espocar de flashes de um fotógrafo infernal bem na sua cara; o Paulo Salles é o raio que cai da nuvem contra um fundo preto de tempestade. Minha esperança é que essas imagens valham mais que mil palavras - porque falar desses caras daria um livro.
Uma vez escrevi ao Julio dizendo que ele mais esses três formaram a melhor produção de textos da Rede e reunidos num lugar só (o DC). Estamos vivendo, sem ter muita consciência disso, uma revolução literária (e jornalística) e o ponto de partida é a internet. Não importa que os textos não sejam impressos; na prática é como se fossem. Mais que uma biblioteca, a Rede é uma presença telepática na vida de uma geração inteira de internautas, pessoas para quem a internet é parte do cotidiano, tão naturalmente inscrita nele que sua absoluta novidade histórica passa despercebida.
Por último: ler é um exercício telepático que não apenas enriquece, mas multiplica a vida.
Na época da bossa-nova, a mesma foi intitulada (a bossa, não: a época) - porque tudo que ser feito com bom humor, com garbo e inteligencia - "bossa". "Uma vez escrevi ao Julio dizendo que ele mais esses três formaram a melhor produção de textos da Rede e reunidos num lugar só (o DC)." Concordo, o DC é Bossa, e assino em baixo. Caiocito.