Mitos na corda bamba; essa parece ser a tônica intelectual do século que se inicia. Algumas aflições novas vieram se instalar no meio das preocupações cotidianas enquanto alguns antigos tabus estertoram.
Este novo século promete algumas surpresas que, como toda surpresa, está além da especulação - pois toda surpresa é inesperada, antes de tudo. O ano de 2006 foi meio inexpressivo, mas sua trivialidade aparente é enganosa no que concerne à seguinte questão: mesmo que o calendário seja apenas uma convenção funcional ainda subsiste um resíduo, mítico que seja, da sensação estranha de termos virado mais um milênio - tudo é muito convencional apenas, mas essa passagem é, queiramos ou não, histórica, na medida em que a História precisa de datas para se localizar.
Estamos deixando para trás o sexto ano do primeiro século do novo milênio, seis pequenos passos adiante na paisagem que era, há pouco tempo, o futuro fabuloso. Posta assim em palavras a nossa ingênua percepção do tempo adquire algum significado, volto a insistir, mítico.
Somos seres mitológicos dentro de uma mitologia não mapeada e a vida vem mostrando seu espaço geográfico: entre as paredes internas do crânio. Somos seres cuja capacidade de abstração é tão intensa que grande parte de suas lucubrações se confunde com o que chamamos de realidade. Um exemplo típico é o dinheiro, o vil metal. Nada remete mais à vida material do que o dinheiro e, no entanto, poucas coisas são tão absolutamente abstratas. O próprio materialismo, seja lá o que for isso, não passa de uma idéia e é através das idéias que todos nós vivemos.
Alguns mais, outros menos; esse me parece ser o novo e emergente parâmetro comportamental dos anos que se aproximam. Quais são as novas idéias e as conseqüentes respostas que elas irão gerar, em quantos graus de profundidade serão absorvidas, que mudanças provocarão no dia-a-dia; essas questões não são a novidade em si; a novidade está no fato de que essas questões estão ocupando os primeiros lugares na fila das preocupações ordinárias. Nunca estivemos tão atentos ao desenvolvimento tecnológico geral - e nunca tão vulneráveis às tecnoprofecias. O país segue no espírito burlesco que lhe é habitual. Piadas:
- Bastou um brasileiro ir ao espaço para um planeta sumir.
- AÇO, a sigla do projeto social do nosso presidente metalúrgico: Abitação, Çaúde e Onestidade.
- Etc.
Alguns mitos decadentes, fotografados neste final de ano:
Esquerda versus Direita
Os novos leitores não têm idéia de como essa visão orientou o pensamento de uma quantidade realmente incrível de intelectuais que viam, politicamente falando, uma balança mundial em equilíbrio permanente com a URSS e os EUA em cada prato. A balança era considerada indestrutível. Uma quantidade enorme de intelectuais de esquerda acreditava piamente num crescente desequilíbrio ocasionado pela insustentável leveza do ser da América, que ia ser pulverizada a longo prazo. Hoje os sobreviventes evitam a discussão, que se tornou menos que acadêmica.
Terceiro Mundo
O termo ainda subsiste mas a análise mais acurada faz prevalecer lentamente outro consenso: não há degraus escaláveis, portanto o termo só serve para batizar, canhestramente, uma geografia e uma realidade, ambas transitórias e não aspirantes ao primeiro degrau. Por falar nisso, cadê o segundo mundo, hem?
Eficiência governamental como conseqüência direta do exercício democrático
Quanto mais o povo se exercite na democracia, melhor o governo. Era essa a idéia. Nada mais ilusório.
O Brasil é o Maior, em muitos aspectos
Quais aspectos?
Terror ecológico ou O mundo periga acabar a qualquer momento se o ser humano não tomar jeito
Não vai acabar não. Vai resistir ao ser humano e ao que vier depois dele (hehehe).
A literatura é algo ultrapassado
Não é. A explosão audiovisual gerada pela mídia moderna só destacou o fato de que leitura é insubstituível. Leitura é, além de outras coisas, porta de passagem para um mundo interior. De volta pra dentro, de encontro às idéias, à vida interior que, diga-se com todas as letras, é a vida em si. Nunca tanta gente leu tanto ou escreveu tanto (o que é meio chato, às vezes).
Religiosidade
Sem comentários. Não dou pra cristo de ninguém.
Importância Metafísica De Artes E Artistas
Os indícios apontam para o entretenimento como valor, uma volta dos artistas ao antigo lugar que ocuparam, quando apenas distraíam cortes e reis e platéias diversas. A hipervalorização do artista, criando toda uma estirpe de dondocas mimadas, é coisa recente na História. Obras de arte continuam sendo produzidas e sua devida apreciação será, acredito, mais discreta.
Com esse balanço, do tipo balança mas não cai, tentei definir para mim algum desenho do ano que passou. Um desenho difícil porque o ano em si é meio inexpressivo, o retrato não saiu muito apropriado, mas dá pra ver a cara do ano em questão; é irmão de sangue de outros que virão na mesma balada. Uma última observação tem a ver com o Digestivo Cultural: existe o embrião de um novo jornalismo e ele se desenvolve em sites como o DC. Há uma coesão interna (já disse isso em outro lugar) que me parece fascinante e uma nítida tendência (ou será apenas um modismo passageiro) para um jornalismo que produz textos pessoais, epistolares, confidenciais - tudo fora do velho padrão do jornalismo tradicional - e o que é muito interessante: a informação é transmitida da mesma forma (ou quase) e os leitores claramente preferem assim. Um pouco menos da informação puramente objetiva e muito mais da impressão pessoal de cada um que, aprendemos, vai criando o cerne de um bom senso à toda prova. Ou seja, o novo jornalismo molda uma opinião pública extremamente mais arejada, ou consciente, do que antes foi possível, fora da rede. E outra coisa, aproveitando a brecha para as declarações pessoais: uma das melhores coisas de 2006, pra mim, foi o DC e a conseqüente redescoberta do prazer da leitura.
Como sempre essa cabeça pensante (e que cabeça), turbinada por mil pensamentos, nem sempre transformados em ações, mas qundo as geram, criam um turbilhão de criações como pintar, desenhar, compor, tocar instrumento, histórias em quadrinhos, gerar e curtir um MAX e ainda tourear e amar a cara metade ou a metade muito amada. Curioso, pesquisador, caladão às vezes, um ótimo papo sempre, ainda mais com um produzido na Escócia. Flui e deixa fluir. Dono da verdade? Sem essa, escuta, absorve, processa e chega onde quer chegar, sem pressa. Dizia ter paladar de criança, mentira, gosta de coisas finas tanto no líquido, quanto no sólido. Guga, vc. pensou mas não citou o maior dos mitos decadentes de 2006: "Eu não sabia de nada..."
Um grande abraço amigo. Universo
Eu acho sempre muito bom ler o que o Guga escreve, conhecer suas opiniões. Sinto nos textos uma grande independência, de fazer inveja. Uma posição muito própria, expressa de forma naturalmente firme.
Descobri o DC quando li o Guga: "A Legião e as cidades". Fiz um breve comentário e, a partir daí, o DC faz parte da minha vida. Que grata descorberta e que grande presente. Tenho muito a agradecer ao Guga que nos brinda com textos ímpares e, por que não "pares" também?, fabulosos.