Marcelo Gleiser não é apenas um grande físico brasileiro. É fã de Albert Einstein e também um popular historiador da ciência. Transforma o conhecimento técnico em linguagem coloquial, e talvez, por isso, esteja entre a massa e os gênios. Desta vez, quer explicar a uma legião de leigos que o quebra-cabeça sobre a origem do universo está longe de ter uma solução. Mas para chegar a essa conclusão, o cientista viaja pela história do pensamento humano em A dança do universo (Companhia das Letras, 2006, 415 págs.), não-ficção vencedora de um prêmio Jabuti.
Mesmo que a física e a cosmologia tenham acelerado o século XX, ninguém descobriu uma equação que explique como o mundo surgiu. A mais convincente - segundo a qual o universo resulta de uma quente explosão (o Big Bang) - não passa de uma hipótese em choque com várias correntes. Por trás delas, homens ainda olham para o céu com a mesma perplexidade dos antigos habitantes da Terra. Mas o que realmente importa no trabalho de Gleiser é o percurso pelos antigos mitos de criação até as atuais suposições sobre os mistérios do mundo.
O cientista lança um olhar didático sobre os mais diversos fenômenos da física e da mecânica, sem limitá-los à frieza dos números. Com narração habilidosa, descortina a saga de homens que venderam sua existência ao inexplicável - seja movidos pela ciência, pela filosofia ou pela religião. E no decorrer do livro, sabe-se que o grande ídolo de Gleiser tinha razão ao dizer que "a imaginação é mais importante que o conhecimento". É o que constata o autor de A dança do universo: os maiores espetáculos da imaginação pipocaram na mente de grandes pensadores até alcançarem o conhecimento.
Em outras palavras, o abstrato sempre antecedeu o concreto. As melhores explicações para o mundo tiveram alicerce em completas fantasias. Carregaram uma força mítica impressionante - que persiste até hoje. A idéia de um mundo criado por Deus divide cientistas e líderes espirituais. Enquanto o senso-comum vê um universo infinito, meia dúzia de descabelados teima em encontrar seus limites: sua data de nascimento e até de morte. E como mostra Gleiser, nenhum dos aparatos tecnológicos ou das descobertas científicas conseguiram provar, experimentalmente, que as histórias bíblicas e outros mitos sobre a criação estejam errados.
Talvez por isso, ainda hoje, nenhum argumento científico consiga anular a força das crenças, mesmo com tantas evidências contra elas. Ao invés de ignorar a influência religiosa na ciência, Gleiser a contextualiza na evolução do conhecimento. E destaca que os cientistas mais geniais, ao contrário do que pareça, fizeram da busca pela ciência uma forma de alcançar um bem maior, ancorado na fé. Assim foram não só Platão (428-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.), mas também os maiores astrônomos da Idade Média, Nicolau Copérnico (1473-1543), Galileu Galilei (1564-1642) e Johannes Kepler (1571-1630). O próprio Einstein traduzia os efeitos colaterais de sua genialidade numa satisfação profundamente espiritual. Chegou a dizer, inclusive, que "religião sem ciência é cega, e ciência sem religião é aleijada".
Essa mistura preocupa a comunidade científica desde o Iluminismo, época em que a razão ganhou os holofotes. Neste ponto, A dança do universo discute o dilema. "Será que essa separação entre ciência e religião é realmente necessária? Sem dúvida. Ela serve como proteção contra o subjetivismo na prática científica, garantindo que a ciência continuará sendo uma linguagem universal", argumenta Gleiser. "O discurso científico é, e deve ser, livre de qualquer conotação teológica. Invocar religião para cobrir falhas no nosso conhecimento é, a meu ver, uma atitude anticientífica", conclui.
Para o leitor que não deseja confrontar o conhecimento científico com a fé, o autor orienta: "(...) você deve duvidar seriamente de qualquer cientista que tente convencê-lo, baseado em argumentos científicos, da futilidade de sua crença religiosa. Em contrapartida, você também deve duvidar de qualquer sacerdote que tente convencê-lo, baseado em argumentos religiosos, da futilidade da ciência moderna".
Além de dar conselhos, o livro quebra a idéia pré-concebida de que cientistas são seres frios e calculistas. A prova concreta está na biografia salpicada dos grandes pensadores, que Gleiser oferece no decorrer do livro. "(...) os cientistas são vistos como insensíveis e limitados, um grupo de pessoas que corrompe a beleza da Natureza ao analisá-la matematicamente. Essa generalização, como a maioria das generalizações, me parece injusta, já que não incorpora a motivação mais importante do cientista, seu fascínio pela Natureza e seus mistérios".
Um personagem curioso a quem Gleiser dá destaque não só em A dança do universo, mas também no seu romance A harmonia do mundo, é Kepler, astrônomo que revolucionou o entendimento do universo com suas três leis fundamentais. Chamou a atenção pela apatia que alimentava por quase todos os seres humanos, com os quais cultivou relações indigestas. Tomou apenas um banho durante toda a vida. Sua infância foi marcada por uma sucessão de doenças e acidentes. Desprazeres que o levaram, na vida adulta, à compensação pelo triunfo intelectual.
A obstinação de Kepler pelo céu colocou seu nome em destaque ao lado dos cientistas imortais, numa época de doloroso regresso do conhecimento. Assim lembrou o filósofo britânico Alfred Whitehead, em 1925: "por volta de 1500, a Europa sabia menos que na época de Arquimedes, que viveu em 212 a.C.". Vale lembrar que, nessa época, ciência e misticismo se confundiam. Astrônomos como Kepler eram também astrólogos, e grandes consultores de reis, ainda que desprezassem tal função. Era a forma de garantirem a sobrevivência, como lembra Gleiser.
Nosso físico brasileiro é um dos acadêmicos mais reconhecidos lá fora. Além de livros, já escreveu roteiros para televisão e participou da produção do filme brasileiro O maior amor do mundo, de Cacá Diegues. Gleiser também é professor da Dartmouth College, nos EUA, onde desfruta de grande popularidade entre os alunos. Quando lançou A dança do universo, contudo, recebeu severas críticas da comunidade científica por haver erros nas explicações teóricas. Mas, ainda assim, o livro foi um best-seller para não-ficção: vendeu cerca de 70 mil exemplares.
Razão do sucesso pode estar na proximidade do cientista com a linguagem popular. Se não nos introduz no âmago da ciência, pelo menos mostra o quanto ela está longe de explicar a origem do mundo. Estamos todos - cientistas e leigos - com as mesmas dúvidas universais.
Fiquei curiosa a respeito dos erros teóricos que existem no livro. Mas muito boa a forma como a Tais explica a importância da desmistificação da ciência. A citação sobre dúvidas e questionamentos a repeito de ciência e religião é bastante esclarecedora e nos mostra o que Gleiser quer realmente proporcionar com seus trabalhos, a possibilidade de nunca deixarmos de sonhar... O texto me convenceu a ler o livro, obrigada, Tais.
Eu não gosto do Marcelo Gleiser. Acho que ele sabe o que diz quando se limita à Física, mas, quando começa a dar uma de sabido em outras áreas, fala o que não entende. Acho que as grandes mentes têm esse problema: o de acharem que, sendo tão capacitadas, podem dar pitaco em todos os assuntos... Ele, às vezes, ultrapassa a física invadindo terreno como (folk) filosófia e história, e aí se embanana, ou fala coisas muito bobinhas...
Ótimo texto da Tais. Mas se o livro for isso mesmo (não li), Gleiser parece caminhar em terreno perigoso. Não há nenhuma vantagem para um cientista tentar harmonizar ciência e religião. Só os religiosos tiram vantagem disso. A investigação sobre Deus não é patrimonio das religiões e deve, necessariamente, se libertar dessa camisa de força. Vale ainda lembrar que Kepler passou grande parte da vida fugindo da Santa Inquisição e, provavelmente, teve que se tornar um homem cuja discrição era testada ao máximo. Isso significava também não poder ter muitos amigos, não ter voz, não chamar a atenção de nenhuma forma. Viver assim e conseguir explicar a mecânica das órbitas planetárias não é pra qualquer um.
Um amigo mandou-me a resenha da Taís, a quem agradeço. Porém, queria deixar claro que os "erros nas explicações teóricas" sofreram "severas críticas" de apenas um acadêmico, ao menos que eu saiba. (Podem sempre existir outras críticas das quais não esteja ciente.) Agradeci ao prof. Roberto de Andrade Martins pela sua cuidadosa leitura do texto. Dos chamados "erros", os poucos que de fato necessitavam revisão foram corrigidos já na segunda edição do livro, de 1998.