Sempre quis escrever um folhetim ou um romance em capítulos. Como meu fôlego nunca foi além das crônicas, em sua maioria desvencilhadas umas das outras, meti bronca nesta série sobre as leituras da virada do ano, com depoimentos de amigos, colegas e contatos virtuais. Entre eles estava Aurélio Prieto, leitor assíduo do Digestivo, publicitário aposentado que mora em São Paulo. Aliás, Prieto é leitor assíduo de muitas coisas e declara sua gratidão à professora Nyssea Freitas Meiras, que, lecionando português em Mogi das Cruzes, mostrou ao aluno o caminho das pedras. (Importante fazer saber que a professora Nyssea é viva e continua lecionando).
O publicitário conta que leu 50 livros neste ano e pretende ler ainda mais em 2007. A "biblioteca ambulante", além de comentar o que está lendo com os amigos, faz questão de emprestar os livros àqueles que mostrem ao menos um tico de interesse. Um verdadeiro "amigo do livro", mais amigo ainda dos amigos. À moda de Aloise, Prieto está lendo uma lista de livros de dar inveja: Planeta em versos (Letras em Cores), uma coletânea de 18 poetas; Conte sua história de São Paulo, organizado por Milton Jung, sobre os filhos adotivos da capital paulista; Top 10 Timão (Edições Inteligentes), de André Martinez, claro, sobre o Corinthians. Diz Aurélio que foi presente de amigo, com autógrafo e tudo; Rua dos artistas e transversais, de Aldir Blanc, já que Prieto é e sempre foi fã do Pasquim.
Nem só de escrita vivem os escritores. Eles também lêem, e o fazem muito. Para dar notícia das leituras deles estão aqui os representantes Antônio Prata (São Paulo), Sérgio Fantini (Belo Horizonte) e Wilmar Silva (Belo Horizonte). O primeiro saca logo do coldre as crônicas completas de Gabriel García Márquez ("não faço idéia de quantos livros li este ano"); Fantini indica As sementes de Flowerville, de Sérgio Rodrigues, além das memórias do jornalista Ricardo Kotscho. Como os escritores são insaciáveis, também menciona os contos de Wander Pirolli (falecido recentemente) e já mostra a lista futura: livros de Paulo Betancur, Guiomar de Grammont, além de nem sei quantos originais de autores como, por exemplo, o do professor Jorge Rocha. Somando tudo, Fantini acha que são uns 50 livros em 2006, mais ou menos um por semana, "acho que fica bom". E ele tem mais é que ler mesmo: além de produtor cultural e escritor, Fantini é o curador do Salão do Livro de 2007, em Belo Horizonte.
Wilmar Silva, editor, poeta e performer, curador das Terças Poéticas do Palácio das Artes, na capital mineira, está lendo Re-habitar, de Gary Snyder, traduzido por Luci Collin. "Mais que um poeta beat, Gary Snyder é um exemplo inspirador de natureza humana". Durante 2006, Wilmar leu quase cem livros, entre inéditos e publicados. E ler originais leva tempo, porque é preciso escrever para os autores depois, debater, travar longas discussões. A autora Guiomar de Grammont, que vem sendo lida por Sérgio Fantini, diz que anda atarefada com a releitura da tese de doutorado Aleijadinho e o Aeroplano: paraíso barroco e a construção do herói colonial, que defendeu faz um tempo e sairá, em 2007, publicada pela editora Record. Enquanto faz isso, relê Angústia, de Graciliano Ramos, e uma tradução de Folhas da Relva, de Walt Whitman. A diretora do Instituto de Filosofia, Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto e mentora do Fórum das Letras provavelmente não lê pouco.
Aliás, os professores tiveram a chance de mostrar as cartas que tinham nas mangas. Hércules Tolêdo Corrêa, Carla Viana Coscarelli e Áurea Thomazi expuseram suas mesinhas de cabeceira e declararam suas leituras atuais. Hércules, multileitor como outros aqui, tem na manga 10 livros que abalaram meu mundo, organizado por Martha Ribas e Júlio Silveira, que traz "os depoimentos de dez pessoas cujas vidas estão intimamente ligadas aos livros. Entre elas, estão o bibliófilo José Mindlin e os escritores Ruy Castro e Milton Hatoum. Cada um dos depoimentos nos permite conhecer melhor os autores, através dos livros e autores que eles dizem ter "feito a cabeça" deles. Além desse, Hércules indica Quando Nietzsche chorou, best-seller do psiquiatra norte-americano Irvin D. Yalom. Para o professor, são leituras leves, apesar de serem livrões de mais de 300 páginas. Não se trata de "alta literatura", "mas está bem ao gosto de hoje, em que essa mistura de ficção e realidade é moda".
Hércules, professor universitário e pesquisador do reconhecido CEALE (Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita da Faculdade de Educação da UFMG), considera a leitura como parte essencial do trabalho docente, o que também tem seus pontos negativos: "Ter a leitura como parte intrínseca do trabalho tem seu lado positivo: ganho para fazer aquilo que gosto. Por outro lado, muitas vezes tenho de deixar de lado aquelas leituras mais prazerosas, mais emocionantes, mais instigantes, para ler os livros de minha 'obrigação': é o ponto negativo da questão". Carla Viana Coscarelli, também pesquisadora do CEALE, parece bem à vontade com sua leitura que mescla trabalho e entretenimento. Está lendo um livro "sobre inteligência artificial e mecanismos mentais, mas o melhor de tudo é que o autor é superdidático, usa uma linguagem acessível aos leigos, sem deixar de se aprofundar nos conceitos técnicos e nas discussões. Uma ótima pedida para quem quer saber sobre mente, inteligência artificial, abordagens simbólicas e conexionistas e vida artificial. Vale a pena. Não é uma leitura sem esforço, mas é muito prazerosa". O nome da obra é Mentes artificiais, de Stan Franklin, com tradução de Margarida Vale de Gato para a editora portuguesa Relógio D Água.
Carla acha que leu entre 20 e 30 livros no ano. "Sou uma leitora lenta. Leio, releio, rabisco, durmo em cima do livro e tenho de ler tudo de novo no dia seguinte... Poesia, então, acho que tem de ler bem devagar. Dependendo do livro, leio uma por dia. Os livros de poesia chegam a ficar meses na minha mão. Adoro ler. Eu gostaria de ter mais tempo para a leitura, sobretudo a de textos literários. Além dos textos técnicos, procuro sempre ler paralelamente um texto literário. Romance, contos, poemas".
Mas a professora e socióloga Áurea Thomazi é um caso à parte. Antes de responder à questão proposta por mim, foi logo desfiando Pierre Bourdieu no meu ventilador. Ela, que fez doutorado na França e teve na banca Anne-Marie Chartier, sabe muito bem o que significa fazer uma pesquisa, por mínima que seja, sobre o que as pessoas andam lendo por aí, em suas casas, na cama, na tela do computador, no banheiro. Áurea logo desnuda minhas intenções e sabe o quanto é difícil obter respostas verdadeiras: "O que primeiro me veio à cabeça foi o que disse o sociólogo Pierre Bourdieu em relação a pesquisas sobre o que as pessoas lêem. Ele afirmou que o entrevistado logo pensa: 'o que eu leio que merece ser revelado?'. E muitas vezes as pessoas omitem o que elas sabem que a sociedade considera como uma leitura "inferior", ou seja, publicações ou leitores que não são clássicos, célebres, considerados "boa leitura".
É, Áurea, aconteceu. Alguns dos meus pesquisados me advertiram sobre seus gostos antes de responder ao que eu queria. Nas advertências, sempre aquele tom de quem pede desculpas. Os discursos sobre o que são boas ou más leituras são muito fortes e penetram no imaginário de todas as pessoas, mesmo que elas não se sintam tão ligadas ao mundo do livro. Minha idéia não era dizer quem lê coisas "boas" ou não, era apenas saber o que estamos lendo livremente. Será que estamos mesmo livres? Só uma socióloga poderia perscrutar com tanto apuro esta questão. E é ela, citando Martine Poulain e Michel Peroni, que lembra o que vários aqui já disseram: "o percurso [de leitura] varia em cada momento da vida e existem aspectos mais importantes do que a quantidade".
Áurea Thomazi pesquisou as preferências de leitores com relação a gêneros de textos. Segundo ela, o leitor, em geral, não lembra nomes de livros, autores e muito menos da quantidade exata de livros que leu. Talvez na França isso seja mais difícil. Para leitores de um livro só no ano, fica mais fácil saber o nome da obra, será que não? Temo pela resposta. Áurea sabe muito sobre práticas de leitura e ficou curiosa com os resultados desta simples enquete. Respondo: meus "informantes" sabiam nomes de autores e livros, até as editoras, alguns colocaram ano de publicação. É claro que foram consultar as fichas catalográficas antes de me enviar respostas. Como a pergunta foi proposta por e-mail, tinham tempo de consultar e são pessoas, de alguma maneira, ligadas a estas práticas também, a de conhecer o objeto livro. Talvez uma entrevista cara a cara tivesse outros efeitos, mas creio que não seriam tão diferentes. Mas quando a pergunta era o número de livros lidos no ano, aí, sim, houve hesitações. Quase todos disseram números aproximados, o que parece não ocultar a marca real de leitura destes leitores freqüentes.
E a própria Áurea Thomazi? Agora do lado de lá do balcão, como entrevistada, o que andou lendo em 2006? Cai o véu de Maia e Áurea mostra as práticas da leitora que é. Dos livros que leu inteiros cita e elogia: Budapeste (Chico Buarque), A noite escura e mais eu (Lygia Fagundes Telles), As cidades invisíveis (Ítalo Calvino), além de contos de Conan Doyle. Na cabeceira, na virada do ano, estão os contos de Voltaire e 69/2 contos eróticos, coletânea lasciva de que foi ao lançamento. Áurea chama de "inéditos" aos tantos zilhões de textos dos alunos que leu por obrigação de professora, o que nem sempre é gratificante. E ainda deixa escapar uma pequena lista de livros cuja leitura ficou inacabada (mas não revela os motivos): Nana (Émile Zola), Dom Quixote (Miguel de Cervantes) e Quase memória (Carlos Heitor Cony). A professora se empolgou e pediu sugestões de biografias para ler. Talvez Jorge Rocha as tenha, talvez algum leitor do Digestivo que queira entrar em contato com Áurea. Como sugestão deliciosa ela dá Como um romance, de Daniel Pennac, que trata "dos direitos do leitor". Minha vez de confessar: comprei o livro faz tempo e ainda não consegui ler. É bom que se diga que Áurea, além de socióloga, mais especificamente da educação, é fã de cinema e natação, assinante e leitora da Folha de S.Paulo e freqüentadora assídua do Digestivo Cultural, em que lê e comenta.
Se serve de estímulo, espero que você prossiga na pesquisa que você relata em forma de crônicas até o infinito. É um prazer conhecer o que pensam outros leitores. Obrigado!
Que bom encontrar no delicioso texto da Ana Elisa Ribeiro amigos/as antigos/as, novos/as e, quiçá, futuros/as e saber um pouco sobre o que eles/elas lêem e pensam.
Ana, esse é o tereceiro comentário que faço aos teus últimos três textos publicados no "Digestivo", e o faço desprovido que qualquer interesse pessoal, mas tão-somente, porque gosto do teu estilo de escrever, e porque o tema que estás a abordar me cativou. É muito gostoso saber o que algumas pessoas ilustres estão lendo, e mais satisfatório ainda é saber que, alguns títulos que foram lidos por elas, já passaram pelas minhas mãos. E muito mais legal ainda é saber que estou mais ou menos na média de leitura - por ano, que elas vêm fazendo. Essa sua pesquisa é muito interessante. Talvez seja impossível levá-la adiante por tempo ilimitado, mas torço para que, enquanto tiveres fôlega, que prossigas com esse tema, que tanto me agrada. Parabéns mais uma vez!
Lazer, entretenimento, necessidade profissional; foram tantas as razões que esta sua instigante série encontrou para que, nós, leitores, nos encontrássemos num ritual de reconhecimento. Literário, técnico, didático e algumas outras categorias se ofereceram como via para nossa fruição e desenvolvimento. Percebo nesta "crônica" atual o quanto o escritor se mistura com o leitor e o quanto é irrelevante o que ele esteja lendo. Ainda outro dia o Aloise me disse que estava lendo "O caçador de pipas" e que ia continuar... Achei ótimo, e engraçado o quanto nos sentiamos revelados e até constrangidos por estar debruçado em uma obra considerada menor. Ao comentar a "crônica" anterior brinquei que a Charlotte do Goethe era uma chata, invertendo o preconceito com relação aos clássicos. É muito bom saber que está se lendo de tudo, mas constatei muito poucas releituras, que considero uma leitura mais apurada uma vez que o conteúdo já tenha sido experimentado. Esta sua série é muito importante, adiante!
Oi, Ana, desta vez fico até sem jeito de dizer que gostei tanto do seu texto porque você dedicou uma boa parte à minha entrevista. Mas quero dizer que sinto-me muito lisonjeada! Muito chique ser citada por você e é claro que estou aprendendo também com a sua pesquisa. Continuo sentindo-me como uma faminta em um banquete, vendo tanta sugestão de leitura e continuo querendo as dicas do Jorge sobre BIOGRAFIAS. Aliás, eu o vi no domingo, na TV Minas falando sobre o Second Life, da internet. Uma pergunta: nessa "outra vida" que eu nem entendi muito bem como funciona, existe espaço para o livro, ou para as práticas de leitura?
Um grande abraço, Áurea
Ana, apreciei o seu texto/crônica sobre os que as pessoas que lêem estão lendo. Um aspecto interessante é o medo que têm de revelar que também lêem livros considerados menores. É um tema que me fascina, pois eu mesma "escondo" que li alguns como Código da Vinci e "Caçador de pipas" de alguns amigos muito intelectuais. Hilário. Embora não fazendo parte de sua pesquisa, apenas como dado, devo ter lido em 2006 por volta de 30 livros. Alguns releitura; outros, novos. Atualmente me delicio com o livro "Tantas Palavras" de H.WERNECK, e relendo "Subterrâneos" de Kerouac, além do livro "Inéditos e Dispersos" de Ana Cristina César, delicioso! Continue com a sua pesquisa que sempre traz algumas boas dicas para nós, pobres leitores. Abraço. Adriana
Ana querida, muito gostoso conhecer as leituras dos outros através da sua coluna, "diz-me o que lês e me direis que és", poderíamos parafrasear. Conhecer as leituras dos outros é como penetrar em suas relações íntimas, o que me lembra Maquiavel no exílio em sua casa de campo. Ele vestia suas melhroes roupas, aquelas com que frequentara as cortes européias de seu tempo, para ler e reler seus livros favoritos,como se estivesse visitando autores como Virgílio e Homero. É isso, parabéns pelo Digestivo. Guiomar de Grammont
Olá, Ana; ao contrário de você, eu já consegui me aventurar pela área do romance em capítulos e estou satisfeita com o que realizei; o difícil é escoar o produto nessa terra de meu Deus; mas não foi fácil, já que sou escritora exigente e leitora exigente também. Acho que o mercado se ressente de boas obras que falem de uma maneira mais delicada do universo feminino; best-sellers moderninhos temos aos montes, tipo "Cem Escovadas..."; eu durmo em todos eles, apesar de serem fartos em diálogos. Essa coisa da fartura de diálogos é de uma pobreza descomunal. Eu sei que é uma receita fácil. Difícil é fazer uma narrativa sólida e imagética, interessante, como a de Noll em "Lord". Autor que não faz concessões. No mais, gostei da sua idéia. Que vivam os leitores, os escritores -- ainda que muitos bem-intencionados e que encaram o trabalho a sério, ainda fora do mercado, tão ingrato. Abaixo Paulo Coelho, Marcelo Mirisola; quem precisa da má literatura? Um abraço
Bem, acabo de ler o texto, e é com enorme prazer e deleite inusitado que eu o comento. Esta relação, tantas vezes onírica, de leitores e livros faz-se cada vez mais um ânsia, para que assim possamos fazer de nossa vida uma obra de arte.