Como a maioria dos brasileiros, conheci Tom Jobim pelo senso comum de canções como "Garota de Ipanema", "Dindi", "Águas de Março", etc. (mesmo que não sejam nada comuns). Nos últimos anos, tenho procurado conhecer seu cancioneiro mais a fundo, mas aos poucos, sem pressa, sorvendo cada gole musical com imenso prazer. Acho comparações entre compositores sem sentido e infrutíferas, mas se me perguntarem "Chico ou Caetano" respondo logo "Jobim". Admiro sua capacidade não apenas de ter criado músicas riquíssimas no ritmo, harmonia e melodia (como nenhum outro) que soem "fáceis" aos ouvidos, mas também o fato de ter colocado adornamentos que as enriquece, como interlúdios, passagens instrumentais, sutilezas: cada pedaço das canções é vital em sua obra, longe de ser mero detalhe sem importância. Ao contrário. Como bem descreve João Marcos Coelho, num dos bons textos sobre Jobim presentes no caderno "Cultura", do Estadão em 21 de janeiro de 2007, citando Lorenzo Mammi (autor do livro Três Canções de Jobim): "O essencial está nos detalhes". Em uma de suas obras-primas, "Luiza", por exemplo, não vejo sua beleza completa sem a introdução, o tema final ou suas contínuas e delicadas mudanças rítmicas da melodia, para ficar no óbvio. Ainda no mesmo texto, o autor define bem o que ocorre quando esse universo de minúcias é desrespeitado por outros intérpretes: "(...) os detalhes que fazem a originalidade de seu universo musical se perdem em execuções canhestras, que simplificam sua harmonia e enquadram o ritmo numa batida de muzak irritante".
Mas não vou fazer deste texto um manual jobiniano - nem tenho tal pretensão, aliás. Muito já foi falado sobre Jobim e mesmo havendo muito mais a ser dito vou deixar de lado qualquer abordagem mais ampla de sua obra para tentar entendê-la numa ótica particular, quase egoísta mesmo, de como está sendo minha imersão nesse mar jobiniano, em quatro discos, pela minha ordem cronológica: Passarim, Antônio Brasileiro, Urubu e Matita Perê.
Meu disco-chave de Tom Jobim é Passarim (1987), que me atingiu em duas fases distintas: tenho uma memória afetiva forte dele, tocou muito em minha casa no comecinho dos anos 90 e o redescobri há algum tempo; o impacto continuou forte, mas - claro - de uma maneira diferente. Tem músicas fantásticas, arranjos certeiros, a banda está afiada e cortante e gosto muito das vocalizações presentes; estas, aliás, uma das características da "Nova Banda" que acompanhou Jobim de 1984 até o fima da vida. Se por vezes esses vocais soam enjoados em outras enriquecem a música, como o final de "Bebel", um dos meus momentos favoritos. Adoro "Passarim" e "Borzeguim" e seus climas melancólico (a primeira), alegre (a segunta) e ambas "natureza-total"; "Anos Dourados" é uma beleza! E o que dizer de "Luiza"? Uma música extremamente complexa, em todos os sentidos, mas tão fácil de ouvir, com sua melancólica melodia; difícil encontrar palavras para defini-la - melhor ouvir. Outro grande destaque do disco é "Gabriela", em sua versão completa, e acho que assim atinge seu ápice - como uma história, contada com brilho, esmero e estilo. Gosto de sua variação de climas, ritmos, como ondas que vêm e vão, ora impactantes, ora discretas. Sua parte lenta é de arrepiar, um diálogo amoroso harmonica e melodicamente primoroso, estonteante, desembocando numa festa rítmica deslumbrante. Quebra Pedra!
Antônio Brasileiro (1994) foi minha segunda incursão no universo de Tom Jobim. Tive essa obra inicialmente em fita cassete (tremei, iPods!), uma versão com menos músicas que a editada em relação ao CD. Várias de suas músicas estão entre as minhas preferidas como "Meu amigo Radamés" e "Radamés y Pelé", temas instrumentais com tintas eruditas fortes e influência, claro, de Radamés Gnatalli. Gosto da versão de "Só danço samba", que une discrição, sofisticação, suingue e humor, de ruborizar os "neo-bosseiros" por aí. A famosa "Insensatez" aparece como "How insensitive", com participação do Sting; por algum motivo que não sei explicar prefiro a música na língua do Tio Sam - a melodia me soa melhor assim. A bela "Querida" foi tema de abertura da novela O dono do mundo, ilustrando musicalmente trechos do filme O Grande Ditador, de Charles Chaplin - combinou bem; uma de suas frases define bem a carreira dos grandes artistas: "Longa é a arte, tão breve a vida". "Pato preto" também está entre minhas preferidas; cita "Gabriela" e apresenta volúpia rítmica, com arranjo consistente. Já "Samba de Maria Luiza" é uma música pela qual nutro muita simpatia. Feita em homenagem à filha (que aparece criança cantando com ele, e agora - crescida - está na trilha de abertura da novela Páginas da vida) certamente não está no panteão das obras de arte do compositor, mas acho que é um belo rascunho da expressão do gênio nas pequenas coisas: é uma música simples, sem grandes pretensões, mas ainda assim com bela melodia e arranjo esperto. Outra das minhas preferidas é "Chora coração", linda, também com belo arranjo, com letra mais longa que a versão que aparece no disco Matita Perê, mas ainda acho a versão de 1973 melhor que a desse Antônio Brasileiro.
Em Urubu voltam os arranjos de Claus Ogerman, como Matita Perê de três anos antes e por causa disso voltam também os tons mais soturnos, resultando numa sonoridade agridoce. O disco abre com "Bôto", que traz temas que comporiam "Gabriela", sete anos mais tarde. Depois de um solitário berimbau, eis que surge a canção, com arranjo denso e enigmático e duo vocal com Miúcha. "Lígia" certamente entra no meu "Top 10 - Jobim"; um personagem meio mau-humorado (não gosta de nada!) e louco de amor por sua musa serve de pano de fundo para mais uma pérola do cancioneiro mundial. Me encanta como os complementos melódicos instrumentais entre as partes cantadas fazem, para mim, tão parte da música quanto a melodia principal. "Correnteza" teve boa versão de Djavan em seu disco Malásia, mas a original é melhor, mostrando mais força e consistência. "Ângela" faz jus às outras mulheres de Tom. Talvez não tão notória, é um pequeno tesouro escondido à espera de um reconhecimento à altura de sua qualidade. As quatro músicas finais são instrumentais. "Saudades do Brasil" merece o título, com sua cadência tristonha e dramática, remetendo a Villa-Lobos, e contém em sua estrutura um belíssimo coro. "Valse" é uma das minhas canções favoritas, mas curiosamente não é de Tom Jobim, e sim de seu filho Paulo. Apareceu anos depois, em 1978, no lendário disco Clube da esquina 2 com o título de "Olho d'água" e letra de Ronaldo Bastos. "Arquitetura de morar" e "O Homem" são músicas de cores fortes que encerram um dos grandes discos de Jobim, com quatro canções fantásticas e quatro temas instrumentais pungentes, cinematográficos, climáticos, que misturam doçura e vigor. Uma aula de composição e outra de arranjo.
Três anos antes de Urubu veio Matita Perê que inaugurou o trabalho de Jobim com Claus Ogerman e têm muitas características parecidas com seu sucessor. Na minha cronologia é meu companheiro mais recente; começa com um clássico - "Águas de Março", numa versão menos conhecida do que a com Elis Regina, de outro clássico disco, do ano seguinte, Elis & Tom. Considero esta uma das canções que mais perfeitamente casaram melodia, harmonia, ritmo e letra de forma tão consistente. Primorosa. Indispensável. Segue com uma Luiza menos conhecida, "Ana Luiza", não tão forte quanto a famosa, mas nem por isso deixa de ser bela. A faixa-título vem em seguida, como símbolo de uma fase de Jobim focada em temáticas da natureza e bem brasileira, principalmente nas letras. Em "Matita Perê", a música, há homenagem (explícita, colocada na contracapa do disco) a Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade e Mário Palmerio. Tenho este disco ainda em LP (não por puritanismo, apenas pelas circunstâncias) e acho que o "conceito" de dois lados faz sentido nesse caso; o Lado B é bem mais denso, melancólico, intimista que o A, com predominância de temas instrumentais. Também interessante como a arte tem mais corpo no vinil, com seu encarte em que o lado de fora é escuro e, ao abri-lo, temos uma explosão de cores. Isso tudo faz com que a experiência de audição tenha um diferencial, mas são pormenores: o que vale é a música, e é sensacional. O Lado B contém uma das minhas preferidas de Tom Jobim: "Chora coração", lindíssima com arranjo de Claus Ogerman - repito que acho essa versão muito superior à que aparece no disco Antônio Brasileiro; é a segunda parte da "suíte" "Crônica da casa assassinada", trilha sonora do filme homônimo de Paulo César Sarraceni, de 1971. Ela é a única "canção", as restantes ("Trem para Cordisburgo", "O jardim abandonado" e "Milagres e palhaços") são instrumentais, cheias de referências melódicas de "Chora coração" e com perceptível sabor de Villa-Lobos, uma das grandes influências de Jobim. Já "Rancho da nuvens" e "Nuvens douradas" me trazem um clima de saudade e melancolia, com sabor agridoce - que me agrada muito.
Como disse no início do texto, a música de Tom Jobim não é apenas de uma melodia sobre uma harmonia - ou uma harmonia sob uma melodia - acompanhada de letra e ritmo. Todos esses elementos se unem de forma sólida e homogênea num resultado consistente e colorido. Tais elementos fazem parte de uma mesma história, que é contada pela conexão indissociável deles, que respiram juntos, seus corações batem na mesma pulsação. As melodias são complexas, mas seguem uma forma tão densa que dão a impressão de serem óbvias - e não são. E há os acordes, que não são nada sem suas sutilezas melódicas e vice-versa e as sacadas e surpresas rítmicas. Como bem disse sobre Jobim outro representante único da música, Dom Salvador: "Todos devemos muito a ele. Um agradecimento eterno". E ponto final.
Cara, os detalhes de sua análise sobre a produção musical de Tom foram muito precisos. Adorei! Li outros textos sobre o Tom, no DC, que abordaram também outros aspectos, bastante interessantes. Engraçado, cada um "pega" por um lado. Parabéns! Adriana PS: URUBU é maravilhoso!