Música de cabeceira
Desde criança tenho uma fascinação especial pelas "Águas de Março". Embora eu deteste chuva e dirija mal em pista molhada, achava a música um primor.
Além de achar bonita aquela melodia, havia na canção um desafio que me intriga até hoje: decorar a letra. Coisa mais difícil para a memória guardar que pau e pedra são antes da peroba do campo. Ou que João e José estão lá pelas tantas. Nem sei o que é matita pereira. E onde fica mesmo o carro na lama? Letra linda, mas difícil de decorar. Como a melodia é repetitiva (claro, como a chuva), não fica fácil guardar na memória a carreirinha dos versos na ordem certa.
Até certa época, eu pensava que toda música tinha que ter refrão. Assim como há quem pense que poesia tem que rimar ou que a métrica ainda manda no ritmo. Tom Jobim me mostrava que refrão pode cair. E a canção, ainda assim, pode cair no gosto das pessoas. E pode ainda acontecer outra coisa: a música inteira se parecer com um refrão. Ser dessas que a gente assobia, mesmo sem saber direito o que é bossa nova.
Interpretações
Tom Jobim não era muito mencionado na minha casa, na minha rua, no meu bairro, nem no colégio onde estudei. Depois que ele morreu ficou mais famoso do que já era, como acontece com muito artista no Brasil. Com os especiais na tevê, descobri que era ele o compositor de muitas canções que sabíamos. E "Águas de Março" foi uma delas.
A célebre interpretação de Elis Regina, de arrepiar, ficou nos meus ouvidos. Em 2003, no entanto, um amigo, desses que querem aplicar cultura na gente o tempo todo, quis me converter e me deu um CD de presente. Assim, à-toa, um CD de jazz. Abri com curiosidade e ouvi aquela voz feminina durante meses no carro. Era Cassandra Wilson, uma americana meio dissidente do jazz, que gosta de percussão e canta com a garganta. Apaixonei-me pelo vozeirão atípico e, para minha maior alegria, estava lá uma versão de "Waters of March", com um percussionista brasileiro e uma interpretação que fazia supor que Cassandra ouvia Elis.
Marisa Monte também fez essa travessia. Dividiu "Águas de Março" com David Byrne, numa versão bilíngüe bastante interessante. Só consegui a versão na Internet, num desses programas que capturam MP3.
Discos
"Águas de Março" esteve sempre em minha vida, embora não tenha sido trilha de nenhum romance e nem de qualquer momento especial. Foi apenas uma música que me encantou. E há poucas nessa galeria das canções espontâneas, incidentais, essenciais. Acabei me tornando uma pequena colecionadora de versões.
Em minha discoteca há apenas um CD de Tom Jobim. Nem me lembro mais o nome dele. É difícil comprar os CDs do Tom porque há uma profusão de coletâneas e toda sorte de the best of. Mas certa vez, num affair com um poeta, ganhei um CD. Nunca ouvi inteiro. Para falar a verdade, não gostava daqueles coros femininos que as músicas de Jobim têm. Ainda não gosto.
Tom Jobim era um homem belíssimo. Das poucas vezes em que o vi na televisão, achei que via um charmosíssimo coroa. Mais novo, ele seria capaz de me despertar uma paixão platônica. Sim, porque namorar músico dá muito trabalho. Os poetas puros são mais administráveis.
Música popular?
As cenas de Jobim ao piano são todas antológicas e bonitas. São cinema, mesmo quando não o são. Mas não vou dizer que a morte dele me interessou. Lembro das notícias e da comoção mais ou menos nacional. O fato é que a bossa nova, sem tirar a importância do "movimento", não era propriamente "música popular". Há alguns anos eu lia um livro sobre o Tropicalismo (acho complicado quando essas coisas começam a ser chamadas de "movimentos") e o autor dizia lá: quem mudou os costumes da sociedade foi a fútil Jovem Guarda. Ele não dizia isso com essas palavras. Estou sendo bem mais tosca, mas a verdade inscrita nisso tinha fundamento. Com aquele papo machista e pequeno-burguês de carrão, baladinha e namoradinha, a Jovem Guarda é que alterou padrões que variaram do comportamento sexual ao tamanho da saia das moçoilas, dos cabelos do meu tio à atitude da minha mãe (que, aliás, é fã do Rei até hoje e compra aqueles CDs que ele lança no Natal).
Os engajados tiveram importância, claro, mas a mudança que eles provocaram não atingiu as massas, ou pelo menos não tão rapidamente. A Bossa Nova era algo semelhante.
Isso só afirma algo que já sabemos: que o "público" está ligado a uma espécie de "cultura" (no sentido antropológico mais aberto possível) que nem sempre é controlável e nem se garante pela qualidade. A Bossa Nova não era um "movimento" popular. Embora muitas pessoas saibam cantarolar "Águas de Março", não sabem o nome do compositor, se era homem ou mulher, sequer em que década fez sucesso.
As "Águas de Março" fecham o verão, movem moinhos e poderiam fazer milagres no senso estético de muita gente. Apreciar é algo que se aprende. Não é assim tão fácil, nem tão óbvio. É preciso ouvir lentamente, prestar atenção na letra, cantarolar sentindo. Promessa de vida.
Lembrança sem memória
A propósito, alguém aí sabe cantar "Stairway to Heaven" sem titubear?
Ana, devo admitir que nunca ouvi Tom Jobim, pelo menos não do jeito certo de ouvir, como você disse, prestando atenção, sentindo a letra. O que mais me atrai no estilo é a interação, às vezes surpreendente, de música e letra.
Gostei do que fez com Tom Jobim.
Abraços
Amei o que li sobre o Tom. Sou um apaixonado por Tom e sua patota. Embora arrisque meus acordes no violão, levo mais jeito para poeta. Amei quando você disse: "Sim, porque namorar músico dá muito trabalho. Os poetas puros são mais administráveis". Sinceramente, Daniel.