Paulo Francis era uma figura engraçada. Olhinhos puxados e uma forma de falar atípica (que alguns atribuem a uma prática que visava amenizar sua gagueira). Falava sobre as coisas mais imponentes e polêmicas com um riso contido (irônico?) no lado direito da boca. Parecia um moleque fazendo traquinagem e esperando o susto do espectador por sua atitude levada da breca. De uma coisa creio que ninguém tem dúvida: Francis era um polêmico, mas não para fazer tipo, como diziam seus opositores, ao contrário, sua crítica era séria e fundada numa espécie de razão interna (inteligência), sendo uma das mais intrigantes figuras do jornalismo cultural do Brasil.
Mas, como sabemos, ninguém nasce sábio nem se faz sábio da noite para o dia. É preciso uma vivência apaixonada no cerne da própria cultura para se fazer minimamente inteligente. Mais que um intelectual típico (aqueles formados em duros bancos universitários) talvez Francis tenha sido aquilo que chamamos de connaisseur. Aquele indivíduo que forma sua sensibilidade e inteligência na fruição amorosa dos livros dos grandes escritores. Fazendo um levantamento de autores por ele lidos e citados em diversas publicações ficamos espantados pela sua formação: Proust, Balzac, Melville, Thomas Mann, Nietzsche, Freud, Marx, Camus, Sartre, Agostinho, Gibbon, Eliot, Conrad, Joyce, Shakespeare, Kafka, Dickens, Zola, Edmund Wilson, Auden, Lawrence, Herbert Marcuse... mas vamos parar por aqui, pois o tamanho deste artigo não suportaria a lista dos autores que Francis admirava. Isso sem pensar no vasto universo do teatro, do cinema, da ciência política e da criação musical (alta cultura sem culpa, registre-se) que ele apreciava também.
Nesse sentido, Francis poderia ser um exemplo para os jovens que querem ingressar no jornalismo cultural. Teriam que aprender com ele a lição de que a experiência no trabalho é importante, mas só se realizará plenamente se for casada com uma vasta auto-educação na cultura erudita (num tempo em que, nas escolas brasileiras, boa parte dos adolescentes não sabe nem escrever o próprio nome, isso seria possível?).
A finesse de sua crítica, muito imitada, mas sem grande sucesso (não há fórmulas para ser um Paulo Francis) se deve, então, à relação que o jornalista estabeleceu entre o trabalho duro e apaixonado pelo jornalismo e sua vasta cultura livresca e pela freqüentação ao universo cultural de uma forma geral (museus, teatro, concertos).
Francis talvez seja o primeiro esquerdista (nunca aquele esquerdista militante fanático e cego às aberrações do comunismo) a se declarar um liberal no Brasil. Por isso também deve ter sofrido muito, deve ter sido castigado, criticado e até injustiçado. Corajoso ao ponto de citar e justificar algumas posturas intelectuais do liberal Raymond Aron ou elogiar J.G. Merquior ou de fazer sua crítica ao modelo totalitário do comunismo russo e chinês. Também de criticar a cultura nacionalista ingênua que se desenvolvia no Brasil a partir dos anos 60, aquela postura que achava, por exemplo, que fazer cinema nacional era colocar pobres e favelados nas películas e não investir numa produção técnica refinada e numa investigação estética mais séria.
Paulo Francis era mais Ipanema que USP. Por isso seu espírito despojado. Chega a ser engraçado ver certas assertivas de Francis, como por exemplo, ao comentar a problemática do excessivo número de abortos clandestinos no Brasil. Para explicar a situação no Brasil usou o texto bíblico que resumia tudo, dizendo: "Muitos são os chamados, poucos os escolhidos". Outra frase risível, mas inteligente: "Devemos a Napoleão Bonaparte a Biblioteca Nacional do Rio, por ter dado uma corrida em D. João VI, que fugiu para o Brasil, com cerca de 600 documentos raros, e abriu, se não os portos, alguma coisa, entre as quais a Biblioteca, em 1810". Acho que Francis iria vibrar com a frase de Octavio Paz que disse que a colonização espanhola não teve nada de negativo, ao contrário, só nos livrou dos rituais sanguinários e da escravidão típica da cultura inca e asteca, colocando no seu lugar os princípios universais da democracia e da justiça.
Também muito divertida sua explicação da relação entre a jovem virgem de 18 anos, Hanna Arendt, e o mestre filósofo de 35 anos, Martin Heidegger, dizendo que o que manteve a relação dos dois era o fato de que "o amor que fica é o amor de pica". E ainda, agora já seriamente, nadando na contra-corrente de uma série de tentativas de desclassificação do filósofo alemão, Francis afirmava que a obra filosófica de Heidegger não tinha nem uma linha de racismo, embora ele trabalhasse como professor para o Estado Nazista. O jornalista também lembra, em outro momento, que Nietzsche não tinha nada a ver com a filosofia nazista, como pensavam seus críticos apressados, e que o filósofo acharia Hitler um idiota.
Há um outro assunto que sempre voltava nos textos do jornalista e sobre o qual me parece ser ele o único interessado em comentar: o ateísmo. Acompanhava a produção intelectual de autores preocupados com o tema para dar suas alfinetadas de tabela: "A Igreja nunca aceitou o individualismo, a democracia política, a modernidade leiga e materialista que pôs em segundo plano o estado religioso". Fico imaginando, se Paulo Francis estivesse vivo hoje em dia, de que forma comentaria o retorno ao fundamentalismo que estamos assistindo, como numa nova idade-média bárbara, com fanatismos religiosos e bélicos se ajuntando como práticas inseparáveis. E quem não pagaria para ouvi-lo comentar o atentado de 11 de Setembro, começando com sua famosa e charmosa frase inicial: "aqui de Nova York...".
Francis não era fácil, sem papas na língua demolia alguns cânones literários como, por exemplo, Virgínia Woolf, dizendo: "Mas alguém se lembra realmente de seus romances? Citam-se a todo instante seus comentários em diários e cartas. A literatura parece diáfana, inconsistente e anêmica, de um bom gosto excessivo, que sai do terreno literário para o chique". A demolição continuava com comentários como: "Philip Roth é um Gulliver na literatura liliputiana dos nossos dias". Ou ainda: "Walter Scott, um autor menor sem nenhum significado literário para a sensibilidade moderna". Sobre nossa acadêmica e anêmica Nélida Piñon vaticinou: "Mordisquei seus livros. São ilegíveis. Ela não sabe escrever, ponto. Uma falsa angústia reprimida e um pseudomisticismo permeiam sua obra. A única questão interessante é saber se Ms. Piñon acredita na própria publicidade". Sobre Toni Morrison: "negra, semi-analfabeta".
Destratava alguns cânones ("quem lê Gidé se não a academia?"), mas reabilitava alguns dessacralizados pela academia, como Simenon: "Maigret consegue o milagre de ser high e low ao mesmo tempo".
Discutindo a indústria cultural, a partir da questão do fanatismo das massas pelos fãs (citando, a propósito, a frase de Hitler, de que as massas são como uma fêmea esperando o macho para dominá-la e possuí-la), Francis tenta explicar também a ojeriza de João Gilberto ao seu público nos seguintes termos: "Qual é a diferença entre esta gente que fica ululando diante de Madonnas e roqueiros da pesada e nazistas? Psicologicamente, nenhuma. Um artista popular é de certa maneira uma contradição em termos. O artista nos revela o que não sabemos sobre nós próprios ou sobre o mundo. Quem apenas massageia nossos preconceitos e pressuposições não é artista." O que pensaria Francis sobre as Danielas-Mercury e Ivetes-Sangalo da vida enchendo estádios de fãs fanáticas? Que elas são tudo (mercadorias brevemente descartáveis?), menos artistas. E o público, o que seria para Francis?
Nós sabemos o que o jornalista pensava sobre a cultura pop: "Uma das maiores provas biológicas da resistência do ser humano é que ele resista ou sobreviva a essa montanha infinita de lixo que é a cultura pop".
Francis escrevia sobre todas as áreas, com comentários imperdíveis. Suas frases são notáveis, nos causam inveja, destilam ironia fina a cada estocada. Politicamente incorreto, dispara críticas mordazes com sua metralhadora giratória. Não faz por mal, creio, apenas quer preservar a inteligência que espera do público leitor. Às vezes sua prática lhe arrumou dissabores. Talvez o alimento mais rico para seu jornalismo polêmico. Relê-lo é sempre uma prática rejuvenescedora para nossos cérebros acomodados à mesmice do mundo e da cultura. Numa época em que ficar em cima do muro parece a política mais saudável para agradar o mercado (que compra nossas consciências a peso de moedas de prata), Francis é um exemplo a ser seguido.
Se Francis estiver no inferno (deve estar), onde eu tentarei encontrá-lo assim que eu morrer, ele com certeza vai dizer, com um pequeno riso no canto dos lábios: "Aqui é quente, mas apesar disso, o inferno é que é divertido".
Ah! o título deste artigo? Ora, a viúva de Francis com coragem nas veias vai lançar um romance inacabado do jornalista: eis o espectro do escritor a nos rondar novamente. Direto do inferno. Estamos ansiosos pelo reencontro.
Jardel: achei divertido o texto, mas essa frase cafajeste para definir o romance (com evidentes afinidades espirituais) de Harendt e Heidegger foi terrível!