Os ônibus rugindo presos sobre as avenidas, as maritacas em revoada barulhenta e algazarra, pessoas matraqueando cada vez mais alto em ambientes fechados. O rádio de um vizinho, a televisão eternamente ligada, o barulho do Messenger chamando insistentemente. O zumbido interminável e subterrâneo das CPUs processando, dos ventiladores esfriando as máquinas pensantes. A balada barulhenta na rua de baixo, os cachorros que latem dia e noite, as motos competindo num racha de madrugada. Turbinas de aviões vibrando, marteladas e furadeiras em uma reforma que nunca termina, música surgindo abafada não se sabe de onde, todos os sons transformados numa compacta massa sonora. A pancada aguda e impiedosa de um tiro. Pneus derrapando, burburinho, chuva, o metralhar nas teclas do computador. O motor da geladeira, a bomba de ar no aquário, a resistência aquecendo a água do chuveiro. A madeira da casa e dos móveis estalando, a respiração suja e rouca, as patas das baratas se arrastando por baixo dos móveis. A freqüência sutil e persistente da rede elétrica por dentro das paredes. E mesmo sendo uma ausência, em qualquer casa urbana o silêncio surge como uma ilha, material e sólido.
Ruído e silêncio em excesso são, ambos, enlouquecedores. Mas, em nome de valores como progresso e de uma suposta civilização, a sociedade ocidental contemporânea se construiu no som, optou por ele. O ruído é um resíduo da modernidade do qual parecemos nem mesmo nos dar conta. O efeito-estufa, a implosão da continuidade do tempo e a fragmentação da realidade, o excesso de imagens e a rapidez com que elas passam e se alternam diante do olhar, todos esses sintomas da pós-modernidade e da sociedade industrializada já foram de um modo geral assimilados, mas ainda incomodam, atordoam. O ruído, efeito colateral menor, não é percebido tão intensamente não porque não incomode; mas porque sua abundância afeta a capacidade de sentir, pouco a pouco.
As novas gerações já assimilaram o excesso visual, ainda que ele seja incômodo. É impossível não ceder, já que ele vem da televisão há muito tempo, do computador recentemente, e constantemente surgem novas mídias como suporte para um fluxo cada vez maior de informação. No que se refere a urbanismo, por exemplo, surgiu recentemente a tentativa de domar o cenário urbano por meio da lei "Cidade Limpa", que regulamenta a publicidade em outdoors e fachadas em São Paulo desde janeiro deste ano. Independentemente de dar certo, é uma tentativa de construir uma cidade visualmente mais harmoniosa. O mais perto que existe de uma lei para minorar o problema da poluição sonora em São Paulo é o "Psiu" (executado pela Divisão Técnica de Fiscalização do Silêncio Urbano), que fiscaliza o barulho de casas noturnas e restaurantes, templos religiosos e outras atividades cuja natureza cause poluição sonora. Mas, conforme dizem as leis que determinam a ação do Psiu, é preciso que o nível de ruído seja prejudicial à saúde ou bem-estar da população. Geralmente, quando esse tipo de fiscalização pública entra em ação, os níveis já extrapolaram o saudável há tempos e estão no limiar do suportável. O som ambiente sobe subrepticiamente, continuamente.
O som e o silêncio se tornaram uma questão fundamental para mim. A audição, como todos os sentidos, pode ser treinada, estimulada. Simplesmente refletir sobre ela, focar a atenção no que (não) se ouve é suficiente para começar a ouvir melhor. Respeitadas as limitações orgânicas de cada aparelho auditivo, é sempre possível ouvir mais. O inferno começou para mim de forma banal: um dia, ao desligar o computador, percebi que o ambiente que parecia silencioso para mim na verdade tinha o ruído forte de fundo da máquina. Barulho menor e uniforme, mas imperceptível até ser interrompido - um artifício do cérebro para manter a sanidade. Uma caixa de Pandora que mudou não só minha audição, mas como meus outros sentidos mediam minha percepção de mundo. É por isso que mais barulho automaticamente significa menos sensibilidade, incapacidade de captar nuances.
Desde então tento manter períodos de "jejum de sons"; literalmente um protesto silencioso. Pessoas que ligam a TV apenas para interromper o silêncio me incomodam, e não é pelo barulho em si, é pela falta de capacidade de lidar com o que o silêncio simbolicamente sugere: solidão, por exemplo. Metrô, motocicleta, tráfego de caminhão, caminhão de lixo: ruídos que estão constantemente na rotina, e que sequer entrariam numa descrição de romance urbano (mais charmoso falar de um barulho qualquer isolado na madrugada). Mas esses ruídos oscilam entre 90 e 120 decibéis, nível que pode causar perda irreversível da audição. Não é alarmismo: esse grau de ruído já foi socialmente assimilado como normal, sem ser. Uma solução prática para o problema é inviável, porque interfere na economia. Não dá para parar ônibus e metrô, tampouco imagino que existam empresários dispostos a investir em redução de emissão sonora no transporte público. Essa questão, perto de mil outras mais urgentes, é totalmente irrevelante.
(Levanto e vou até a cozinha buscar um copo d'água. Pela janela, vejo o lampejo claro da lua, por trás de uma camada de névoa. Resolvo sair até o quintal e olhar com calma, na noite de lua e verão, uma paisagem querida - é o último mês na casa em que cresci e vivi até hoje. Não só a paisagem, mas o ambiente sonoro é familiar. O vento ciciante, baixinho, uma ou outra motocicleta - sempre há uma, não importa a hora - e grilos, constantes, eternos, som de fundo da minha vida desde sempre. Uma combinação de sons tão poderosa quanto um cheiro da infância, como a voz de uma pessoa amada que já morreu.)
Creio que, com o perdão do terrível trocadilho, não haja eco para um breve manifesto em favor do silêncio, em seus infinitos graus de diluição. Mas ainda assim, é possível deixar de fazê-lo?
Cara Verônica, seu texto Silêncio é de uma sensibilidade gritante ("terrível trocadilho", né?). Há eco sim para manifestos como o seu. Parabéns de um leitor que se encantou com o que você escreveu. Se puder, veja os filmes "Os Cinco Sentidos" (de Jeremy Podeswa) e "O Segredo de Beethoven" (de Agnieszka Holland). Acho que você gostará. Tudo de bom!
Verônica, achei teu texto brilhante. Também sou contra o som e a fúria. Me incomoda, me agride, me irrita. Tem outra: em viagem recente, notei que, naqueles países mais miseráveis e debilitados, o nível de barulho aumenta. Na Áustria, por exemplo, nada se escuta, ninguém grita ou buzina. Na Romênia, a zoeira chega a incomodar a visão. E existe um célebre (para mim) aviso num subúrbio muito calmo da Austrália: "Não buzine, zona residencial".
Pode?
O silêncio sempre mora dentro de nós, mas, por medo do que ele possa nos dizer, nunca queremos ouvi-lo. E ficamos insistindo em abafar os nossos sentidos com barulhos que não nos dizem nada. Devemos parar e ouvir o que o silêncio que nos dizer.
Os contrastes, as pausas, as inflexões e tudo de que é constituído o silêncio; o prenúncio da mensagem, o instante exato da captura da atenção. Acho que é deste "estar" e "não estar" que vivenciamos, e nos ruídos ordinários onde se oculta tudo o que não é análogo, que se oculta o silêncio. O fundo sonoro numa grande cidade diluí nossa identidade no excesso de informação e rouba da nossa atenção a possibilidade de estabelecer uma relação densa com o objeto observado. Creio que a cena rural também tenha sua cortina de ruídos, com evolução seguramente menos tensa; e ainda assim desorienta. Precisamos aguçar os sentidos para ouvir o silêncio e além do ruído. As mensagens chegam do deserto, da conjunção de estrelas, dos mortos de quaisquer guerras insanas, e o silêncio ecoa questinador e urgente. Estamos alijados pela compreensão imediata do sonoro em detrimento da ausência das palavras. Às vezes choramos e todo o significado se estabelece, noutras nos calamos, eloquentes, num significado vasto e pleno.