Eu estava lendon Leno, digo, Leno lenndo, ôpa, lendo Lennon. De novo. De vez em quando dá vontade de reler alguma coisa, como há pouco. Chovia, uma chuva fina, english rain, sem raios que me partam, céus baixíssimos e essa cidade, abençoada com a neblina escura, parecia um novo início da velha era do gelo.
Há muitos anos atrás - a redundância é mais legal - Lennon caminhava nas ruas de Londres. Jovem pagão que o velho Jeová não assustava, que o controvertido Brian talvez admirasse mais do que gostaria, que a loura Cynthia de cabelos amarelos amava. Sem dúvida alguma cheio de indagações, mas não indignado; bochechudo, míope, sem óculos, nos antigos anos sessenta e poucos. Ele e seus poucos camaradas, cabelos como capacetes alemães da II Guerra, numa foto em preto e branco (ou em branco e preto, depende da cor que a gente vê primeiro), indo para a entrada do prédio da rádio BBC.
Lá dentro Lennon recitou uma breve estrofe de um poema obscuro antes de cantar no rádio. Voz áspera, nasal, riso abafado, gozando o apresentador que permitiu porque Lennon já era um beatle entre os Beatles e os Beatles estavam batendo seu martelo na pedra imóvel da ilha.
Pouca gente sabe que John Lennon era um escritor. Ele próprio não pertencia a esse grupo. Nunca se levou a sério. Escrevia "desde sempre" e, como ele mesmo disse, seus dois livros eram uma coletânea de coisas que ele rabiscava desde a escola secundária. Também admitia não ter paciência para uma obra de fôlego maior. Mas o que, afinal de contas, seria um fôlego maior? O livro de Lennon respira tão bem quanto na época em que surgiu, em meados da década de sessenta.
Na verdade foram dois livros: In his own write, título que é um trocadilho, usando a expressão in his own right, que, em português, significaria algo como "em seu legítimo direito". In his own write tem a pronuncia semelhante mas quer dizer "na sua escrita particular", ou algo desse tipo.
A Spaniard in the Works foi o segundo - outro trocadilho ou brincadeira com a expressão a spanner in the works, que significa literalmente uma chave inglesa jogada nas engrenagens de alguma máquina no intuito de danificá-la, um estratagema de operários lutando contra o desemprego ocasionado pelas máquinas da Revolução Industrial, na Inglaterra. A expressão significa algo que está sendo estragado, destruído, um tilt. Lennon troca spanner por spaniard e o humor se instala na figura de um espanhol que não deveria estar ali e que talvez seja mais prejudicial ao bom andamento das coisas do que uma simples chave inglesa. Ele ainda é autor de um terceiro volume, póstumo, Skywriting by the Word of Mouth. Esse eu não li, e talvez não leia nunca, porque nele está a sombra irritante da Yoko Ono.
Nos anos oitenta foi publicada no Brasil, pela Brasiliense, a versão/tradução de Paulo Leminski, Um Atrapalho no Trabalho. Tem a enorme vantagem de ser uma edição bilíngue, atestando o esforço de Leminski em recriar no português a prosa extremamente criativa de John Lennon. É uma coletânea de pequenos contos e poemas onde Lennon se revela um prestidigitador da língua materna. Humor constante, sarcasmo divertido e, por que não, aqui e ali pontadas de dor. Trocadilhos e neologismos aos montes. A crítica (inglesa) pensou ver a influência de Joyce, que Lennon descartou. Não leu Joyce, disse, leu Lewis Carroll.
Millôr Fernandes fez também sua versão de algumas partes do livro. Entre elas o conto de onde o título saiu e que, na tradução do Millôr, ficou como Um Estranhol no Trabalho, o que é um verdadeiro achado. Um dos textos:
"UM CÃO BACÃONO" (John Lennon/ trad. Millôr)
"Era uma vaz, uma voz, uma vez, numa terra ingrata, a Ingraterra, distante do longinqüo, lá afãstada de qualquer proximidade, muito além de montes de montanhas, do mar e de outros assimdentes, um poco mais drá lá di ondi a diaba perdeu as batas, 39 pessoas que ali viviam pazcatamente. Mente ou não mente?
Quando e sempre que vinha e xegava a é pouca, muito pouca, da colheita, essa miltidão festejava com festas baca paca. Pereira (Pereira era o prefeito, Pereira era perfeito, prefeira era pereito) fazia sempre um festáço baca paca, pacanáço! E todu anu monstrava sempre uma nuvidade, quase sempre molher noa. Mas desta vez, lá no dinstanti que falhei, Pereira ultra-ultrapassou sipróprio e apresentou um Cão peão de Luta Livre. Mas quem é que ia lutar com esse cão-chorro? Eu? Nunca."
Depois de sua morte John Lennon foi transformado numa espécie de ícone parecido com a pomba da paz. Lennon engano, ledo engano. Pra começar, ele próprio nunca teve isso: paz. John era órfão, na pior espécie de orfandade conhecida. Foi abandonado pelos pais. Perder os pais já é uma experiência terrível pra qualquer criança; ser rejeitado pode ser pior.
Por volta dos dezessete anos de idade, com o pai desaparecido desde sempre, soube que sua mãe morava mais ou menos perto de onde ele próprio morava, a casa de sua tia, Mimi. Começou a se aproximar da mãe (a iniciativa foi dele) que o recebeu até bem. Mas Julia (o nome dela) me parece ter sido dessas (raras) mulheres inaptas para a maternidade. Dizem que era alegre e brincalhona, menos mal, mas, fora os namorados, não queria ninguém pendurado em suas saias. John, a despeito de ser um semidelinqüente juvenil (sic), queria exatamente isso. Imagino o esforço do adolescente áspero, rebelde, experimentando o medo de trazer à tona uma doçura, que era secreta, na tentativa de conquistar a própria mãe. Nessa ocasião, Julia morre, atropelada na rua. Sem comentários.
John cresceu numa cidade portuária, industrial - Liverpool - culturalmente sem significado algum, na época. A saída foi música (rock, música maldita e emergente) e amigos. Um deles, extremamente talentoso, igualmente órfão de mãe, mostrou a John que era possível compor seus próprios riffs de rock n'roll. O resto é história.
Mas há coisas que tendem a ser esquecidas e, uma delas, é a acidez que John desenvolveu - nada mais próximo de uma lima, um limão, lemon, do que Lennon - ele não era uma pessoa fácil. Discutir com ele era praticamente impossível, ele era bom demais nisso e conseguia desmoralizar qualquer um, em particular. Tinha a língua ferina. Teve que se retratar mais de uma vez com a opinião pública e com amigos. Casou-se com uma "boa moça inglesa" (os dois muito jovens ainda) que engravidou, talvez na tentativa de segurá-lo. Conheceu Yoko Ono que o fascinou porque - não sou psicólogo nem pretendo ser, mas aposto minhas fichas nisso - era parecida com a mãe. Fria, condescendente, via o tormento atrás da fachada de Beatle famoso e não dava a mínima. Julia, por exemplo, costumava usar óculos sem lentes e coçar o olho através deles, desconcertando as pessoas. Para Yoko, que era "artista plástica", a arte passava por aí, nessas pequenas performances circenses. John talvez experimentasse com ela o mesmo sentimento que sua mãe lhe despertava. Quem sabe? Não importa mais.
Lennon morreu assassinado por uma das pessoas, mais uma, que ele conseguiu irritar. Deu azar do sujeito ser psicótico. Não há nada de pacífico nisso.
Eu estava ouvindo "I'm the Walrus", do Magical Mistery Tour, de 1967(!) e, mais uma vez, considerei a poesia (eu e, pelo menos, Alan Ginsberg, que é para eu não ficar sozinho aqui), tão instigante e poderosa quanto o rock jamais foi. A melodia, sozinha, o arranjo, a produção - ainda são vanguarda, hoje. Notadamente hoje, nessa época de clichês. O escritor está ali, com sua veia cáustica, sua retórica sem frescuras:
"...Yellow matter custard, dripping from a dead dog's eye/
Crabalocker fishwife, pornographic priestess/ Boy, you been a naughty girl you let your knickers down..."
Parafraseando o velho Obi-Wan Kenobi, de Guerra nas Estrelas, quando fala pro jovem Luke Skywalker: "isso foi antes do Império, antes do advento do lado negro da força..." - essa malta de politicamente corretos que querem (e quase conseguiram) transformar o cabo das tormentas em piscina pré-aquecida.
À medida que o tempo passa, acredito que os livros de John Lennon ficarão mais visíveis como boa literatura. Infelizmente tenho que digerir a "fase Yoko". Give peace a chance. Legal. Mas você, meu caro, não era esse homem.
Genial! Maravilha! Adoro John Lennon, mas nunca li nenhum livro seu por, confesso, receio de que não achasse tão rico quanto sua música. Mudei de idéia. Belo texto - sensível e realista. Parabéns. :o)
Guga, o mais legal dos seus textos é que você descobre cada coisa incrível. Lennon nunca foi da paz. Essa sua suposição, por exemplo, da Yoko ser comparada à mãe de John Lennon é a mais pura verdade! Descobri mais duas qualidades em você: um investigador à la Holmes e um psicanalista à la Freud.
Em tempo: esta ilustração do Lennon também é sua??? Se for, aí meu, você é mais artista do que eu pensava.
Valeu!
Só posso dizer mais uma vez, vc foi grande, vc foi bom, vc foi John e Lennon no seu artigo, ou lendo o seu artigo, tenho certeza de que o lado negro da força vai ter que arrepiar muito pra vencer uns caras como ele, como o Tom, como vc. Bj.
Caro, Guga. Não tinha paciência para ler sobre o John. Musicalmente ele era mais extrovertido que o Paul. Mas quando abria a boca para dar uma entrevista, hum... tinha o mesmo mau hálito de todos os músicos ingleses. As analogias que vc dá como exemplo são hilárias. O Lennon ficou até interessante e, por um instante, me deu vontade de ler o que ele escreveu. Mas, passou... Aquela tradução do Millôr: aquilo é sério? Abrajos.
Lennon não teve paz. Era tão ácido quanto um limão. Por motivos edipianos casou-se com uma chatonilda... Guga, mais uma vez você nos trouxe novidades, focos diferentes, expostos de maneira especial. Lennon e Elis Regina (que dupla mais estrambólica!!!) eram considerados chatos. Irriquietos, inteligentes e em constante inferno astral. Ainda bem que fizeram da arte válvula de escape. Senão, ninguém iria aguentá-los. Valeu.
Entre o fim do mundo e o fim do mês;
Entre a verdade e o rock inglês;
Entre morsas, hipopótamos, galos e cachorros, existe um gênio de humor ácido, corrosivo e anacrônico.
Vida longa ao mestre Lennon, filósofo da juventude e dos maus costumes britânicos!
Obrigada pelo texto,
Abreijos da Dâni.
Gostei desse texto, já tinha lido o tradução de Leminski, acho-a inventiva.
Só que se fosse eu ou algum outro escritor brasileiro que escrevesse textos como aqueles, críticos como você - ou como Millôr Fernandes, que achou Idade da Terra, do Glauber, uma "josta" - jamais publicariam, não é, camarada habitante do Mar da Direita, esse oceano não-assumido...