Nas últimas semanas tive uma experiência insólita: saí à procura de alguns livros, relativamente populares, e não os encontrei pois: ou foram descontinuados pela editora ou porque não são reestocados pelas livrarias. Um exemplo foi A coragem de criar, do ótimo Rollo May, que pode ser encontrado somente no também ótimo websiteEstante Virtual. Já andei por muitas livrarias e sebos aqui da cidade em busca desse livro.
A experiência se repete com muitos outros autores e livros. Outros colegas também já passaram pela mesmíssima situação, não só com literatura de ficção mas também com livros técnicos. Alguns clássicos da engenharia são dificílimos de encontrar aqui no Brasil, enquanto, no exterior, rotineiramente os clássicos são relançados em coleções de bolso, como da Dover. Uma boa formação em qualquer área envolve o contato com algumas obras clássicas, e não somente o uso de lançamentos recentes. Óbvio que os lançamentos têm seu lugar, mas livros já bem vendidos, que foram utilizados e depurados por centenas de alunos e professores, muitas vezes escritos por alguns dos grandes didatas de uma área, são essenciais para a formação crítica de qualquer pessoa. Mesmo trinta anos mais tarde, ler a coleção de Física do Feynman ainda é uma ótima maneira de compreender o assunto, apesar de não ser talvez a melhor maneira de "aprender a fazer contas" na área.
Esta falta de memória não é exclusiva de áreas técnicas. Quem imaginaria que os livros do Rollo May, atualíssimos, mas escritos lá pela década de 50 e 60, ficariam de fora dos catálogos brasileiros? Um autor que estudou psicologia na Escola de Viena com descendentes diretos do Freud, e escreve sobre alguns dos males que me parecem ser as feridas deste século, não é leitura obrigatória ao menos nos cursos de psicologia? Será que o último lançamento de mais uma interpretação desconstrutivista, feito por algum brasileiro bem conectado, deva ser a oferta exclusiva das editoras?
Um outro caso semelhante foi a busca incessante do Luis Eduardo Matta por um livro que muitos dizem ser um clássico essencial para o leitor jovem: A volta ao mundo por dois garotos do autor francês Henri de La Vaux. Segundo me contam, a história da volta ao mundo por dois meninos, um americano e um francês, e sua trupe, além de ser emocionante e bem escrita, é recheada com detalhes verdadeiros de cada um dos países que visitam. Um livro escrito para o público jovem, que tem uma oferta muito pobre de lançamentos, pior ainda se levarmos em conta o quesito qualidade. Obviamente não pude conseguir minha cópia.
Só para dizer que não estou de birra, mais um caso semelhante foi a procura pelo livro O último refúgio de M. M. Kaye. Ganhei a edição em inglês, e queria presentear um colega que fez aniversário com a edição em português. Para minha tristeza, descobri que esse livro não foi relançado. Um grande romance, um clássico na minha opinião, que se passa na Índia à época da colonização britânica. É compreensível que as editoras brasileiras não queiram reeditar toda a coleção da autora, mas será que não há lugar no orçamento de nenhuma delas para relançar ao menos esse volume, que é uma de suas obras-primas? Será que novos leitores ao redor do país perderão a oportunidade de ler essa pérola? A questão fica mais angustiante quando sei que a prioridade das editoras é o lançamento de obras como o estudo crítico do Um retrato do artista quando jovem, quatro calhamaços que propõem destrinchar o clássico do Joyce, se valendo de teorias literárias modernas. Em uma livraria conhecida da cidade, cinco cópias desta coleção, possivelmente invendável - afinal, além de um especialista ou de um exibicionista, quem se interessaria por uma obra dessas? Enquanto isso, o livro de M.M. Kaye não possui nem mesmo um cantinho... Não à toa, boa parte das editoras e livreiros reclamam de baixas vendas, e se concentram no angariamento de recursos estatais como forma de sobrevivência.
Se você vai numa livraria hoje, qual o panorama? Logo na entrada você encontra as pilhas e pilhas de lançamentos, alguns bons mas a maioria de autores desconhecidos, especialmente quando se trata de livros de autores brasileiros. Boa parte desses lançamentos são um "desconvite" a leitura, como já foi discutido por outros colunistas aqui mesmo do Digestivo. Os bons lançamentos de autores menos conhecidos tendem a se esgotar rapidamente, e raramente são reestocados. Recentemente tive que peregrinar pelo meu bairro, para encontrar o último lançamento do Zé Rodrix, Zorobabel: Reconstruindo o Templo, que acabei por achar numa estante. Quando perguntei a um dos funcionários da Livraria da Travessa, em Ipanema, pelo livro, a resposta foi: "estamos sem ele agora, mas o senhor já é a terceira ou quarta pessoa que vem à procura desse livro".
A impressão para quem está de fora do mercado livreiro, como eu, é que há pouquíssimo profissionalismo. Os livreiros não escolhem os livros a serem comprados com cuidado, não se atentam para repor o estoque de bons livros de autores menos conhecidos que estejam vendendo, e não se preocupam nem mesmo com a disposição de livros na entrada (o que maximizaria o número de vendas em seu negócio). As editoras não atentam para o enriquecimento de seus catálogos através do relançamento de alguns livros clássicos, preferindo se concentrar em apadrinhados, best-sellers internacionais, e os livros denominados "cabeça" por aqueles que controlam os espaços na mídia. A realidade pode não ser assim, mas esta é a impressão que fica para um consumidor do mercado de livros brasileiro.
Como disse antes, a memória curta e o apego a modismos não se restringe à literatura de ficção, mas atinge também, com grande intensidade, os livros didáticos. Sem meias palavras, boa parte dos lançamentos para ensino de matemática na escola são um horror. Um atentado à sanidade do aluno e do professor, elaborados para satisfazer a cartilha de requerimentos do MEC. Cartilha esta elaborada por um arsenal de pedagogos, cujo maior interesse é ideológico e político, e que raramente têm experiência na formação de alunos da área. Só para ver o estado de coisas, eu não consegui entender um livro de 8ª série da minha irmã, que falava de um assunto trivial como "funções". Na época, minha irmã desesperada veio me pedir ajuda. Em quinze minutos, expliquei da maneira que havia aprendido num livro lá da década de 70, que usei por capricho da minha professora da oitava série, na década de 80.
Se vocês se perguntam porque indianos e chineses são craques em ciência, lógica e raciocínio, em parte é porque mantêm circulando no sistema escolar os mesmos livros por décadas e décadas. Alguns são atualizados, outros são complementados por lançamentos, mas a metodologia e a linguagem tendem a seguir os clássicos, pois estes serviram na formação dos novos autores. Esse respeito pela História é a marca destes dois povos e parte da razão de sua excelência intelectual. Ao contrário do que acontece aqui no Brasil, tanto a pedagogia, quanto a opinião da crítica especializada, são ferramentas de apoio às políticas de cultura e educação do governo e do mercado editorial, e não seus determinantes únicos e exclusivos. Senão, assim como no Brasil, estaríamos presos num ciclo de modismos, que serve somente para empobrecer o mercado de livros e o conhecimento por anos a fio.
Fica então um apelo àqueles envolvidos no mercado de livros, livreiros e editores: por favor, façam a caridade (lucrativa) de relançar os bons clássicos, mesmo aqueles que não são avalizados por meia dúzia dos intelectuais de imprensa tupiniquins. Por favor, atentem à demanda dos leitores que freqüentam as livrarias e espaços virtuais. Reestoquem os lançamentos esgotados (de autores novos) que forem constamente requisitados por seus consumidores. Não se restrinjam ao lançamento pelo lançamento, ao modismo intelectual ou ao tiro certo dos best-sellers internacionais (esses mesmos, em sua maioria, escondidos nas prateleiras). Mesmo que o O último refúgio, de M. M. Kaye, não seja um desconstrutivismo da Índia Colonial, através do olhar da massa, e da análise parnasiana espectral, é uma obra que desperta paixões pela literatura, uma obra emocionante, que merece ver a luz das prateleiras novamente, e que ainda trará a você, editor, e a você, dono de livraria, aquela eterna fonte de alegria chamada lucro. E imagine só, sem depender do surrado e viciado patrocínio estatal! Não é possível que um livro que tem clubes de leitores dedicados a ele ao redor do país, não venda nada...
Post Scriptum
Só para reavivar a memória, Dostoiévski e Alexandre Dumas eram considerados autores de romances populares que seriam condenados ao ostracismo por muitos críticos da época... Provavelmente, seus livros esgotados também não eram repostos nas prateleiras por muito tempo. E, hoje, já sabemos o que aconteceu.
Pois é, Ram, foi o que aconteceu no ano passado, quando procurei "Memórias de um diabo na garrafa", de Alexandre Raposo, que acabei só encontrando em livrarias virtuais, mesmo assim foi bem demorado. O livro é excelente, faz um tour histórico-artístico pelo mundo e com senso de humor. Cadê ele???
É verdade que há lixo literário no Brasil apadrinhado com publicação e destaque nas vitrines das livrarias. Isto deve acontecer só no Brasil, por suposto. É verdade que os editores brasileiros não publicam franceses e indianos, preferindo ganhar dinheiro com estadunidenses de sucesso. Isto deve acontecer só no Brasil, por suposto. É verdade que tem muita gente publicando com patrocíonio público no Brasil. Não é verdade que indianos e chineses sejam mais inteligentes que brasileiros ou argentinos ou txucarramães e tupis por causa do método de ensino ou do livro didático. É verdade que o Brasil é aqui e a Índia é lá.
Se um cientista custa a diferenciar o código genético de um chimpanzé e de um humano, como diferenciar a inteligência de chineses e indianos dos outros pobres mortais. Concordo que livros que estão desaparecidos do mercado devam reaparecer, mas isso é circunstancial. O brasileiro lê pouco e os que lêem realmente às vezes se decepcionam com o mercado de livros.
Mas a questão é mais profunda. A questão é fazer com que os brasileiros criem hábito de leitura e isso demanda investimento sério na educação brasileira. Não sei se os livros didáticos/ou literários sejam o problema. Novos ou antigos, a questão é o acesso, é o incentivo que se dá ou não aos estudantes e por aí entram várias questões. Bem, o que quero dizer é que privilegiados são aqueles que buscam livros nas prateleiras, mesmo que não encontrem todos.