O que absorvo vira açúcar. O que recuso vira açúcar.
A massa vira açúcar, o trigo vira açúcar, o arroz vira açúcar. Os livros que não folheei viram açúcar, os livros que não escrevi viram açúcar.
Meu sangue não me lê direito. Apressado. Salta as páginas. Confunde tudo em açúcar.
As formigas casaram com as abelhas em meu sangue. Procriaram asas e ferrão. Meu sangue ficou cego pela boca.
Não é a brandura do açúcar, é sua agressividade secreta. Não é o branco do açúcar, são as sombras misturadas no sopro.
Não é o açúcar amistoso, o açúcar que completa, é o açúcar que desfalca, faminto.
Não se tira o açúcar depois de posto. O açúcar se acumula e me espera.
É o açúcar árabe. O açúcar cigano. O açúcar ancestral. Caravelas e caravanas de açúcar chegando.
Pedi duas colheres no café. Vieram meus olhos inteiros de açúcar.
Os dentes viram açúcar. A língua, os ossos do queixo. O açúcar me morde, me lambe, me mantém preso em sua quietude, inchando os pés e as mãos.
O açúcar me devora. Me empresta para a neblina.
O açúcar é a infância que não mais terei.
O açúcar me roubou os doces de meu aniversário.
As passagens de ônibus viram açúcar. Os óculos grossos. As camisas listradas. Os bolsos dos casacos. As bermudas folgadas. O escritório vira açúcar. O ar. O cheiro de minha mulher. As árvores do quintal. O suor. Os canhotos das contas.
Os latidos do cão viram açúcar. Os gatos na porta. Os ganchos da rede. As lâmpadas de insetos. A chuva verde. Os amores correspondidos. O ressentimento dos filhos. O perdão da água.
O mar de bruços vira açúcar, as cordas do violão viram açúcar, a voz de minha mãe vira açúcar. As noites que demoram em fugir. Os desenhos dos azulejos. Os chinelos velhos.
A irritação caminha na pele, imitando os pêlos. As manchas nervosas. As manchas atômicas. As manchas atônitas de mapas.
O açúcar amarra meus sapatos. Costura os cadarços azuis e verdes. E me põe a andar na areia movediça do açúcar.
As veias são visitadas toda a manhã. E meu corpo manda um telegrama para me avisar de que estou vivo.
Nota do Editor
Fabrício Carpinejar é poeta, autor de sete livros: entre eles, Como no céu/Livro de visitas (2005), Cinco Marias (2004) e Caixa de Sapatos (2003). Este texto foi originalmente publicado em seu blog e é reproduzido aqui com sua autorização.
Fantástico. Fui proibido de comer açúcar por um bom tempo e agora é exatamente isto: vejo açúcar em todo lugar. Num dos meus delírios médicos, cheguei a pedir uma água desde que fosse diet. Acontece nas melhores famílias. Ou deve acontecer, sei lá.
Apesar de todo o doce venenoso dos açucares de nossas vidas, Fabrício, ainda é bom (pelo menos de vez em quando) dar uma lambidinha. Só espero que você não esteja diabético. Adoce sua vida com responsabilidade.