Vivemos em um mundo anestesiado. Ler um jornal ou assistir a um noticiário na TV tornou-se uma coisa automática. Se foram 20, 200 ou 2000 mortos num atentado a bomba em Bagdá, é a mesma notinha de canto de página, a mesma cena dos sobreviventes chorando nos escombros. Perdemos a capacidade de nos indignar.
Casos como o do recente brutal e grotesco assassinato do menino João Hélio Fernandes, no Rio de Janeiro, mobilizam todas as atenções para a questão da violência. No mesmo minuto chovem especialistas, diretores de entidades, políticos e acadêmicos, cada um com uma receita, uma reivindicação, um olhar.
Historicamente esses momentos de comoção generalizada são pautados por discussões superficiais, muitas vezes falaciosas e contaminadas até a medula por ideologias exacerbadas e, não raro, interesses individuais não muito edificantes. E isso tudo se dilui nos labirintos inexpugnáveis da política. O resultado? Nada, ou pouco, muda.
Nessas horas, nada melhor do que a arte para nos instigar o pensamento, provocar, levantar questões, abalar certezas. Histerias à parte, é fato que viver é uma aventura cada vez mais perigosa. E espetáculos como Hotel Lancaster se tornam, mais do que nunca, necessários.
O dramaturgo Mario Bortolotto traz nesta peça um hotel habitado por traficantes, viciados e criminosos, em uma noite de réveillon. De um lado, gente que, pelas mais diversas razões, busca no mundo das drogas uma maneira de suportar a realidade. De outro, os que vivem dessa busca e que fornecem o passaporte para essa "viagem". Lados, aqui, meramente distintivos - todos estão, de alguma forma, no mesmo barco.
Um retrato desprovido de julgamentos
Hotel Lancaster pertence à melhor estirpe dos escritos de Bortolotto. Estão aqui seus diálogos rápidos e cortantes, os personagens marcantes, a tensão dramática constante. Uma obra poderosa, ancorada em esmeradas interpretações e em uma minuciosa e fluida direção de Marcos Loureiro.
Sua poética mais uma vez se detém sobre os que não têm voz, aquelas realidades tão próximas, mas que no dia-a-dia parecem tão invisíveis e distantes. É como se Bortolotto nos abrisse uma janela para este mundo que aparece em letras negras num papel de jornal, no bandido que nos assalta na esquina ou no filho que internamos em uma clínica de reabilitação.
Nasce daí um espetáculo generoso, na medida em que deixa as conclusões para o público. Bortolotto tem a grandeza de não fazer julgamentos ou teorias, não tomar partidos nem buscar explicações. Simplesmente nos convida a partilhar um pouco daquele mundo, sem ser, nem de longe, pretensioso ou taxativo.
É interessante pensar em Hotel Lancaster como uma tragédia - na acepção mais clássica do termo. Por mais que cada um ali busque o seu caminho, todos estão fadados a se encontrar com a violência mais cedo ou mais tarde. Overdose, assassinato, suicídio - o mundo é um lugar cruel para aquelas vidas confinadas no hotel. É uma contagem regressiva, uma implacável bomba-relógio contando o tempo.
Montagem precisa
O texto ganha vitalidade por conta da direção precisa de Loureiro. Com pulso firme, caminha sem titubear num terreno propício a tropeços em excessos e gratuidades, e dá a medida exata de emoção e vigor em cada vírgula, cada gesto. O resultado assusta por ser tão dolorosamente real.
O elenco é coeso e afinado, e sua força reside no conjunto. As marcas bem delineadas resultam em uma dinâmica rápida, algo videoclíptica, que não dá trégua ao espectador. Fique atento à constante tensão dissipada nos olhares, nos gestos, nas palavras e nos silêncios.
Seria injusto, porém, não destacar a ágil e inesquecível participação do parlapatão Henrique "Napão" Stroetter. O versátil ator, com uma longa lista de bons serviços prestados ao teatro, está impagável. Poucas vezes a expressão "roubar a cena" pôde ser usada com tamanha propriedade.
Todos estes aspectos fazem de Hotel Lancaster uma experiência dolorosamente necessária. Um espetáculo direto, que incomoda. Que bom que incomoda.
Para ir além Hotel Lancaster - Espaço Parlapatões - Praça Franklin Roosevelt, 158 - República - Terça e quarta, 21h - 55 min. - R$ 20 - Até 7/3.
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Pianíssimo
Qualquer pianista que se disponha a embrenhar-se pela majestosa obra de Tom Jobim encontra de saída interpretações-referência no mínimo respeitáveis: o legado de gravações do próprio Tom. Exímio pianista, tinha tamanha familiaridade com o instrumento que criou e executou harmonias que soam, muitas vezes, únicas.
Em comemoração aos 80 anos do falecido compositor chega à praça Piano - Tom Jobim por Fábio Caramuru, álbum duplo com 28 faixas que dão conta de boa parte do fino da produção de Tom. É uma obra que não pode faltar na estante dos entusiastas do instrumento ou de quem deseja ver um novo ângulo de abordagem de canções já extremamente familiares aos nossos ouvidos.
Piano vem revestido de um dado que o torna muito interessante: há um intervalo de dez anos entre os dois CDs. Enquanto o segundo é inédito, o primeiro foi lançado originalmente sob o título de Tom Jobim Piano Solo. Só isso já valeria a curiosidade - a audição permite perceber a evolução artística de um talentoso instrumentista.
O paulistano Fábio Caramuru, de sólida formação clássica, demonstra profunda intimidade com o universo pianístico de Tom (tema, aliás, de sua dissertação de mestrado). Sua multiplicidade de referências, aliada a uma técnica apurada, lhe dá subsídios para transitar em um repertório cosmopolita por excelência.
Tom fez como poucos a ponte entre o popular e o erudito: sua essência bebia em muito desta dicotomia. E Fábio não só tem isso muito claro para si como trabalha em cima deste mesmo pensamento. Basta comparar "Amparo" e "Flor do Mato" para atestar essa dualidade de estéticas.
Talvez por ter trabalhado por uma década como arquiteto Fábio saiba que a função faz a forma. Seus arranjos transpiram vitalidade e frescor, e ressaltam aspectos submersos nas canções. Elegante, conseguiu atingir leituras muito próprias respeitando as concepções de Tom. O segundo disco soa mais solto em relação ao primeiro; sua sonoridade também difere por conta da presença eventual do contrabaixista Pedro Baldanza.
O compositor alemão Karlheinz Stockhausen disse certa vez que os músicos deveriam ser mestres de seu instrumento a tal ponto que seu corpo não seja obstáculos para sua alma. Essa é a relação que Fábio tem com o piano. Podemos ouvir intenções sussurradas por trás de cada nota.
O equilíbrio é a chave de sua interpretação. Fábio consegue imprimir a dose exata de emoção e delicadeza em cada frase. Seu piano canta com refinamento e espontaneidade. "Meditação", "Esperança Perdida", "Desafinado", "Canta, Canta Mais" e "Retrato em Branco e Preto" são alguns dos exemplos mais evidentes. Pequenas jóias dentro de um trabalho de altíssima qualidade. Tom ficaria muito feliz.
Num mundo e no momento em que as palavras têm sido inúteis para sustentar e viabilizar ações efetivas, pró uma sociedade menos violenta, você nos convida, através de um magnífico texto, a vivenciar um espetáculo "dolorosamente real" e, através dele, refletir. Tentarei me esforçar para poder assisti-lo. Sabe o que mais me estarrece? A buzina que paralisa multidões a um toque e com dois a libera reproduzindo o conto infantil "Pífaro Mágico". Estamos falando da mesma sociedade: aquela que não detém em suas mãos o seu próprio destino e segue... Continue escrevendo e nos presenteando com suas construções instigadoras, inteligentes e plasticamente deliciosas.
Perdoa-me a franqueza, não entendi o título e os quatro parágrafos introdutórios. Era para escrever sobre o drama do momento? Para nos convidar ao teatro? Para nos convidar a uma reflexão? Creio que este tipo de tutela não sintoniza com o material que circula no DC. Ainda assim, perdoa, é só a minha opinião.