* Fiquei procurando motivos para escrever sobre os dez anos da morte de Paulo Francis... Não encontrei nenhum. Apenas achei que a data não poderia passar em branco. Como no caso de Tom Jobim, nenhuma conclusão totalmente nova; então não escrevo na forma de artigo (com alguma argumentação), escrevo em forma de apontamentos soltos... Difícil é "lembrar" alguém que sempre esteve presente; que nunca, de fato, se foi... O Francis — e tomo, aqui, a liberdade de chamá-lo assim — está na origem de tudo. No Digestivo, no início, todos queríamos ser "cultos" como ele — não importando os meios, apenas era o nosso maior objetivo... É, a meu ver, o melhor legado do Francis: essa "inspiração" que ele deixou... Descobri e sempre descubro (claro) inúmeras falhas no que ele publicou — mas ele teimosamente fica, como um ídolo de juventude... "Vocês idolatram muito o Francis aí em São Paulo" — me provocou, certa vez, o Ruy Castro... É; idolatramos. Que bom.
* Em 1997, quando soube da morte do Francis, não chorei na hora, chorei depois. Tirando o Tom Jobim, eu nunca tinha chorado por uma personalidade pública antes. Nem chorei por nenhuma outra depois... O Francis era um amigo, que vinha conversar comigo, às quintas e aos domingos, através da sua coluna, no Estadão. E, no Manhattan Connection, era nossa diversão de domingo à noite. Na faculdade, comentávamos sua performance durante a semana... Na sua coluna, eu pulava sempre a parte de "política" e "economia" — que não me interessava(m). Quando lia a parte de "cultura" — não consigo encontrar uma metáfora melhor — era como se alguém soprasse oxigênio para eu respirar mais um pouco... Me preenchia os pulmões até a próxima coluna... Nunca um jornalista me causara essa sensação; nenhum outro me causaria depois... Quando o Francis me era mais vital, ironicamente, ele se foi... Estes dez anos, até aqui, podem ser encarados como uma tentativa de prolongar aquela sensação de ler os trechos "culturais" do Diário da Corte... E de preservar aquela atmosfera perdida que "emanava" do mundo do Francis.
* Eu estava indignado com a morte do Francis em 1997 — como iria viver agora? — e meu único ponto de contato com o morto era um jornalista jovem que eu lia nas folgas do meu estágio, que publicava semanalmente uma coluna na Gazeta Mercantil e que organizara o último livro do Francis (Waaal), que eu lera sem parar até acabar (não parava nem para o almoço...). Tenho o fax enviado ao Daniel Piza guardado em algum lugar; mas não senti necessidade de relê-lo agora (nem sei se vale o trabalho da busca... acabei de lembrar que já está no ar). O "Daniel T Piza" (Daniel de Toledo Piza) me respondeu por e-mail — foi o primeiro e-mail "célebre" que eu recebi. Um choque. E me senti na obrigação de continuar aquele diálogo. (Continua até hoje...) O Daniel Piza não me parecia tão indignado com a morte do Francis. "Francis foi um grande jornalista", na sua economia, pontuou. Passei a comentar, religiosamente, as colunas do Daniel (a Sinopse). Comprei o livro que ele também organizou, com escritos do Bernard Shaw, e tentei produzir a partir dali uma "impressão". Foi uma espécie de resenha, acho. Não sabia nem que palavras usar... Dei para a minha namorada da época ler antes de enviar. O Daniel? Penso que gostou porque, de certa forma, me estimulou a continuar com aquele negócio...
* Mas uma das minhas maiores emoções — como fã do Francis — foi receber, anos depois, o arquivo do livro que o Daniel iria publicar, perfilando o Francis, para a coleção da Relume Dumará. O Digestivo tinha servido para alguma coisa, afinal o Daniel Piza queria a minha opinião. Imprimi e li numa noite — como li em poucas horas outros livros do Daniel (por exemplo, o Jornalismo Cultural, em que ele cita, pela primeira vez, entre capas, o Digestivo...). Dei três sugestões ao manuscrito. Lembro de duas. (Esse e-mail, também, deve estar em algum lugar...) Uma era a de que o Daniel precisaria falar mais de como o Francis serviu de inspiração para tantos jovens segui-lo na profissão... E outra se referia ao Francis ter elevado o patamar de remuneração dos jornalistas em geral. (Ah, a terceira sugestão acho que tinha a ver com o romance inacabado do Francis [que a Sonia lança agora...]). O Daniel Piza acatou as duas primeiras sugestões e essa foi a minha "contribuição" para a "biografia" do Francis (que eu resenhei, minuciosamente, depois... — e essa resenha, enfim, satisfez o Daniel).
* Quando fui na casa do Ruy Castro, entre uma coisa e outra (entre o fax e o perfil do Daniel Piza, quero dizer), ele ficou me gozando o tempo todo: "Senta aí, esse sofá foi o último lugar em que Paulo Francis sentou quando veio aqui". O Ruy tira sarro mas faz, na minha avaliação, a melhor imitação do Francis. Me contou de saídas, com o Francis, em Nova York — e das subseqüentes broncas da Sonia. Que, em Portugal, o mesmo Ruy pedia à sua filha pequena que não fosse perturbar "um [certo] amigo do papai". Mas que, de repente, ela despencava no colo do Francis e ele, docemente, brincava com a criança. Satisfazendo a curiosidade de nove entre dez entusiastas — que torcem por uma biografia alentada do Francis —, o Ruy já me disse, há anos, que não faz, porque acha que não rende... Que o Francis não teve uma vida lá muito movimentada. O Daniel, também, concorda — por isso, preferiu o "perfil", o "recorte". Quando o Ruy me passou o pito de que, em São Paulo, idolatrávamos muito o Francis, ele completou: "Existem outros". Não duvido, Ruy, mas, desde o Francis, não vi ninguém ocupando uma página inteira de jornal duas vezes por semana...
* O Sérgio Augusto, sempre muito elegante, me falou que também pulava a parte de "política" dos últimos Diários da Corte — mas porque não concordava, porque não acreditava na (e, portanto, porque nunca aceitou a) virada política do Francis. Parecia "embriaguez" do Francis. Um amigo contou que avisava sempre o Millôr: "Olha que o Francis vai pra Globo" — e o Millôr nunca acreditava. Um dia, ele, Francis, foi. Outro amigo recordava, entre gargalhadas, quando o Francis chamou, no Pasquim, Roberto Marinho de "o homem-porcaria" (ou algo assim). Depois, quando o Roberto Marinho morreu, escreveram, na Época, que ele quis passar alguns momentos com o cadáver do Francis. "Era um rapaz muito jovem", parece que teria comentado. Eu não gosto da Globo (será que já deu pra perceber?), mas reconheço — como o Nélson Rodrigues reconheceu a vida toda — que o Roberto Marinho ajudou muita gente, inclusive o Francis. E não acredito, claro, que a guinada política do Francis fosse bravata profissional. Não gosto dos imitadores (ou "discípulos") do Francis falando sobre política — porque eles, sim, blefam bastante —, e não acho que o Francis entendesse alguma coisa de economia, mas no Waaal, no que concerne a esses assuntos, não encontro nenhum grande furo.
* A Sonia, muito generosamente, me disse, quando começou a colaborar com o Digestivo, em 2003, que o Francis teria feito a mesma coisa... Às vezes me pergunto — mas não muito — o que ele iria achar da internet e de tudo o que andamos fazendo, aqui, "em seu nome"... Algo me diz que ele iria descer o pau... Como a Flávia Rocha — em sua Entrevista ao Digestivo — que soltou uma frase que caberia, perfeitamente, na boca do Francis: "A internet democratiza o conhecimento — e a idiotice —, há lugar para tudo". Quando encontrei a Sonia, não fiquei naquele papo chato de fã. Ela me contava, espontaneamente, alguns casos do Francis. Que ele a acompanhou, contrariado, a um retiro espiritual, levando "os livros mais céticos" da sua biblioteca. Passava as horas lendo e, quando chegava ao fim do dia, não agüentava mais ouvir os mantras... Na volta, no carro alugado: "Nenhuma palavra!" — gargalhava, sozinha, a Sonia... Segundo ela, ele, escrevendo, era "alemão" — sentava todo dia no computador... "O Francis era um espírito muito antigo", num momento mais sensível, Sonia me revelou.
* Quando conversei com o Diogo Mainardi, senti que tinha chegado a todo mundo que fora mais próximo do Francis. (O Wagner Carelli não me causou essa sensação porque eu só soube depois que ele era também amigo do Francis; e, com o Millôr, praticamente não falei sobre o Francis...) O Diogo me pareceu tão despreocupado com tudo... que me assustou: "Literatura já era; cinema já era também". Ele, que tinha sido um modelo de escritor jovem para nós — infantes admiradores até dos "seguidores" de Francis —, de repente atirava pela janela todos os nossos sonhos... Não importava mais, parecia nos dizer o Diogo. Com a morte do Francis, "the dream was over". O Diogo Mainardi quase falava com todas as letras, mas — pensando bem — outros me passaram, em maior ou menor grau, a mesma impressão: "Esse negócio de 'jornalismo cultural', Julio, isso era só na cabeça do Francis..." — suas atitudes, mais ou menos blasé (em relação à profissão), pareciam denotar... Cobrei sempre do Daniel que ele fosse mais ousado, no jornal, em relação aos novos autores; esperei, ansiosamente, que o S.A. se tornasse editor d'OPasquimXXI; e perguntei por telefone, ao Ruy, porque não havia mais jornalistas como o Francis, que tomavam iniciativas (e não ficavam só falando)...
* Se o Francis tivesse sobrevivido àquele infarto fatal, em fevereiro de 1997, eu veria um monte de defeitos nele hoje — como vejo nos outros... E a gente provavelmente não sobreviveria à crítica mordaz do Francis; e ele, por sua vez, não sobreviveria à nossa... Na falta do Francis original, sobra a idealização... Eu sempre vi no Francis um pouco do empreendedor que foi o editor da revista Senhor, que montou depois a redação da Diner's, que fundou o Pasquim, que inventou aqueles comentários no Jornal da Globo, que arriscou no Manhattan Connection, na revista República... Acho, particularmente, que o Paulo Francis não está tanto nos escritos dele — digo, no "conteúdo" —, mas está mais na "atitude", na forma... Ele viveu perigosamente até o fim, como dizem, fulminado por um processo de 100 milhões de dólares da Petrobrás. "Se não morresse, teriam matado", como dizia a minha Vó (sobre um tio brigão que morreu num acidente de carro). Paulo Francis não sabia viver de outra forma. Talvez não gostasse da internet, que não era "a sua praia", mas sentiria o mesmo nojo que sentimos do jornalismo acomodado dos últimos dez anos.
* Reli o Waaal, buscando inspiração para este texto. E anotei algumas coisas (vocês já conhecem, possivelmente, todas...). O Francis falando, quase sempre, é melhor do que a gente falando do Francis... "Gosto que me leiam e saibam o que acho das coisas". "Bebi muitos anos. Para ficar bêbado. Não posso imaginar outra razão". "A maioria das pessoas que conheço não vai mais a cinema há muito tempo". "A cultura é, na sua criação, um ato de arrogância e violência. Sempre". "A juventude de hoje pensa que inventou alguma coisa. E inventou. Alardear o que faz. Só". "A era da sociedade de informação resultou no seu preciso oposto. A babel, o desentendimento completo, radical, incurável". "Em crises escrevo três, quatro ou até cinco artigos no mesmo dia". "O esporte é a alta cultura dos sem imaginação, que são três quartos da humanidade". "Sempre que me dá um banzo de voltar ao Brasil leio jornais e revistas e o banzo desaparece".
Muito boa essa continuação dos dez anos de uma obra que precisa ser discutida, ponto. Francis atraiu muito amigo que aguardava ansiosamente assumir seu posto, pelo que dá a entender na sucessão de figuras que apareceram no Manhattan. O que ficou é o mais apegado à segunda fase do Francis, ao insulto em vez do argumento. Mainardi fracassou como roteirista de cinema e como romancista, daí o fato da literatura e do cinema terem perdido o interesse para ele. O sujeito vê no mundo mero reflexo de seu ego. Por que me ufano da calamidade de meu país. E vamos levando...
Excelente, Julio! Você conseguiu sair da mesmice do que se escrever sobre o Francis. Eu confesso que tinha um caso de amor e ódio com ele. Adorava qdo ele era irreverente, qdo falava de artes em geral sempre com um encantamento de menino e o odiava qdo se mostrava preconceituoso entre outras coisas. Contudo, o amor foi mais forte, sabe? Até porque para falar as coisas que ele falava era preciso coragem e coragem é uma qualidade admirável. Depois dele, mais ninguém. O Diogo, coitado, até tenta mas erra feio na mão, não tem espontaneidade, nada. Se parasse de tentar ser polêmico se utilizando de frases de efeito que causa mais pena do que polêmica, seria um jornalista mediano.
Quer saber? Como Francis só Francis mesmo. abrs
Só agora li o seu texto sobre Paulo Francis. E me encantei de verdade. Parece aquele vinho bom que a gente vai tomando devagar, degustando gostosamente e com medo de que acabe.
Li todos os artigos sobre PF no DC. Todos me acrescentaram alguma coisa, mesmo que já soubesse outras tantas. Mas é assim mesmo, uma personalidade como a dele tem que ser de alguma forma reverenciada. Embora politicamente tenha "mudado de lado", nunca perdeu a majestade. Quando vejo Manhattan Connection, ainda penso que ele esteja lá. Contudo, ao ver a cara absolutamente
mascarada e inexpressiva de Diogo Mainard, querendo ser polêmico, dizendo que não gosta de música, com um ataque insano ao Lula e uma defesa imoral de Bush, aí vejo que não tem mais jeito. Certamente, se PF estivessse vivo, o Diogo Mainard não conseguiria abrir a boca. Um abraço, Adriana
Beleza de texto, Julio. Vale mais essa forma de perceber o Francis que mil análises mais formais sobre ele. E o Francis dava mesmo um gás nos seus leitores, promovia uma oxigenação geral. Seu texto é tocante. Valeu!
Julio: é preciso escrever também sobre o quanto o Francis da última fase é uma espécie de espantalho para muitos. Renato Russo disse, numa entrevista, que uma pessoa com quem nunca se deitaria era Paulo Francis. A recíproca com certeza deveria ser verdadeira. Outra figura que citou Francis numa música foi Gabriel O Pensador, mas, em entrevista, negou-se a comentar o referido jornalista. Talvez por penúria intelectual, ou quem sabe medo de levar uma traulitada.
Todos os que liam o "Diário da Corte" sentem falta de um "Waaal!" nas edições dominicais dos jornais. E dos petelecos que Caio Blinder recebia no Manhattan também.
Muito bom este texto, pontual e afirmativo sobre a relevância de PF no nosso cotidiano. Aos que apontam equívocos em suas posturas; acredito que faça parte da opção de não se omitir ou, quem sabe, apenas corroborar com o status quo, que talvez seja mais confortável. Claramente PF não buscou o caminho fácil deste tipo de afeição bajulativa; comportamento vigente na imprensa atual. É possível não gostar de algumas de suas escolhas, é possível discordar de suas posições, mas senhores antagonistas, vossas atenções já validam tudo o que este espaço publicou sobre esta figura. Talvez ele seja tão irrelevante quanto nossos comentários.
Bom o texto, Julio, mas teve uma frase que me incomodou: "No Digestivo, no início, todos queríamos ser 'cultos' como ele". Eu, não. Paulo Francis nunca foi influência nem referência para mim, como já deixei claro mais de uma vez.
Lúcio (#1), não foi intencional a "continuação", mas acabou acontecendo, foi bom. Adriana (#3), "majestade" é legal, o Francis teria gostado. Guga (#4), não era para ser tocante, mas foi. Apenas achei que o meu testemuho era mais importante (do que qualquer outra coisa ao meu alcance). Vicente (#8), continue escrevendo para o Digestivo. Lima (#9), não se ofenda: quando eu disse "todos", eu, obviamente, quis dizer "quase todos". Abração, obrigado pelos feedbacks, o grande trauma do Diogo, hoje, deve ser "parecer" com o Francis, Julio
Julio, respeito a sua admiração pelo Paulo Francis. Você mesmo colocou no Orkut que é apolítico. Tudo bem. Você é bem mais jovem do que eu e não pôde acompanhar o que aconteceu na nossa cultura nos anos 60 e 70. Fico com raiva por não ter guardado todos os Pasquim's que eu devorava semanalmente. Paulo Francis escrevia nele, assim como Jaguar, Ziraldo, Henfil, Luis Carlos Maciel, entre outros corajosos que enfrentavam a censura da ditadura. Paulo Francis foi ficando velho e inversamente ao vinho foi ficando pior. Deu uma guinada para a direita, muito estranha, para talvez agradar os contratantes, Rede Globo. Para mim o Paulo Francis ficou mais feio ainda, por dentro e por fora. Eu não queria odiar ninguém mas não o suportava, seus comentários me irritavam. Fez um estilo. Admiro. Fico lembrando também do Glauber Rocha, quando voltou da Europa chegou elogiando a ditadura militar. É outro que não perdoei por esta atitude. Um grande abraço, Julio, Ivo Samel
Caro Júlio,
Gostei muito do seu artigo sobre o Paulo Francis. Por sua causa, agora, passei a gostar um pouco dele, antes odiava mesmo após sua morte, mais pela sua arrogância, dono da verdade, todo poderoso no The Globe. Da guinada que deu da esquerda para a direita para agradar o patrão. Bom agora penso diferente, se você quem eu admiro muito gosta dele é porque tinha valor. Gostava sim da turma toda do Pasquim inclusive o Paulo Francis. Saudades daqueles tempos difíceis para escrever e ser publicados, saudades do Millor, Jaguar, Sergio Augusto entre tantos bons companheiros.
Outra coisa Júlio, vou parar de trabalhar, ficar uns 10 anos somente lendo lendo lendo...para ficar culto igual a você...Gostou do elogio ? Tenho uma inveja sadia de você.
Um grande abraço,
Ivo Samel