O gonzo jornalismo é uma das chamadas propostas discordantes no jornalismo, estilos que tentaram trazer para a prática a descoberta de que não existe objetividade jornalística. Os jornalistas gonzo procuram desvelar o fato de que os jornais usam o discurso da objetividade apenas para mascarar interesses pessoais ou corporativos. Para ir contra isso, os gonzo jornalistas escrevem em primeira pessoa, destacando sempre que todo relato é um relato pessoal e, portanto, subjetivo. Os gonzo jornalistas também costumam expor, ao invés de esconder, os momentos constrangedores pelos quais passa o repórter. O norte-americano Hunter Thompson, morto recentemente, é considerado o criador do gonzo jornalismo, mas o gênero tem pelo menos um atencedente ilustre. Trata-se do escritor britânico George Orwell, famoso pelos livros 1984 (uma visão aterrorizante de um futuro dominado por um estado totalitário) e A revolução dos bichos (uma sátira bastante acertada da revolução russa).
Orwell fez um verdadeiro livro gonzo em Na pior em Paris e Londres (Companhia das Letras, 2006, 256 págs.), recém lançado pela editora Companhia das Letras. Depois de trabalhar como policial do Império Britânico na Birmânia, ele resolveu saber como era o outro lado, como era a vida, o modo de ser e de pensar da população pobre e esquecida pelas autoridades... e foi viver como um pobre.
Mal vestido, magro como uma tábua, acomodou-se num quarto e dedicou o inverno de 1927 a andar pelas ruas e a conhecer a população pobre de Londres. Até então sentira pelos pobres uma mistura de repulsa, fascínio e medo. Pavor maior sentia de pulgas, baratas, percevejos e ratos. Ao viver como pobre, aos poucos foi revendo seus conceitos, exceto sobre os ratos, que sempre lhe incutiram o mais terrível pavor, tanto que a tortura do personagem principal de 1984 se dá com ratos.
Mas em Londres era apenas um observador. Quando se mudou para Paris, as coisas se tornaram reais. O dinheiro acabou e ele passou fome por dias antes de conseguir trabalho como lavador de pratos, ou plongeur, em um grande hotel.
A narrativa não despreza palavrões e nem mesmo as situações constrangedoras pelas quais ele teve que passar - incluindo aí comer comida roubada para não morrer de fome ou uma noite que passou resistindo às investidas homossexuais de um mendigo em um albergue governamental. Era um relato tão cru que a família de Eric Arthur Blair se viu aliviada quando ele resolveu publicar o livro sob o pseudônimo de George Orwell.
Os melhores momentos do livro são aqueles em que o autor conta a realidade de plongeur, que podia trabalhar até 15 horas por dia e ganhava apenas 500 francos por mês. "Nós éramos a escória do hotel, desprezados e tuteados por todos".
A função era tão baixa que todos se viam na obrigação de ofendê-los com palavrões. Um dos garçons era muito amigável e simpático com Orwell quando estavam sozinhos, mas quando havia alguém por perto, destratava-o de todas as maneiras possíveis.
Mas, apesar do ritmo enlouquecedor de trabalho, havia suas compensações. Os plongeurs podiam vender pães despedaçados aos padeiros e restos de comida aos criadores de porcos, e todos roubavam comida. Um garçom de um restaurante em que Orwell trabalhou contava com orgulho que durante algum tempo descobrira uma maneira de roubar leite e creme e consumia todo dia quatro litros de leite e meio de creme. Só parou porque essa dieta estranha começou a afetar sua saúde.
O ritmo de trabalho provocava um total desprezo pela higiene. Orwell era vítima do risos dos outros quando lavava a mão antes de pegar na comida. Logo aprenderia que não havia tempo para tais luxos. O serviço acontecia em ciclos e não podia ser feito com atencedência, de modo que nas horas do café da manhã, do almoço e do jantar, todos tinham que trabalhar por dois e, como resultado, havia gritos e discussões. Assim, sobrava pouco tempo para se preocupar com coisas como higiene. "Estávamos apenas cumprindo nossas obrigações; e como nosso primeiro dever era ser pontual, economizávamos tempo sendo sujos", conta Orwell. O lixo se espalhava pela cozinha e para evitar que o chão ficasse muito molhado, jogava-se serragem. A caixa de pão era repleta de baratas. Certa vez o escritor sugeriu a um garçom que as matassem. "Por que matar as coitadinhas?", indagou o garçom, em tom reprovador.
Segundo Orwell, se você pedir um bife em um restaurante pobre, o cozinheiro simplesmente jogará a carne na frigideira e a tirará de lá com um garfo direto para o prato. Se for num restaurante chique, o bife será levado ao cozinheiro-chefe que o pegará com as mãos (talvez até o lamba para saber se o sabor está correto), depois o jogará sobre o prato e passará o dedo sujo pelo molho para lamber e verificar o sabor. Em outras palavras, quanto mais se paga por um prato, mais suor e cuspe o consumidor será obrigado a engolir. De acordo com autor, o cozinheiro francês é um artista, mas sua arte não é a da limpeza.
Como o funcionário pagava por qualquer comida desperdiçada, tudo era aproveitado. Se uma torrada caía no meio da serragem, bastava limpá-la e colocá-la de volta no prato. Se um frango assado caía no poço do elevador de serviço, bastava ir lá pegá-lo e passar um pano para retirar os restos de comida e de papéis.
A falta total de higiene não diminuía em nada o preço dos serviços. Certo hóspede de dieta pediu apenas água com sal no café-da-manhã. O hotel cobrou 25 francos pela água e sal. O cliente pagou sem pestanejar.
Orwell conclui que o trabalho de um plongeur é de um escravo, vítima de uma rotina tão estressante que torna impossível pensar. E pergunta: por que existe esse tipo de trabalho? Para o escritor, temos uma vaga sensação de que deve ser um trabalho honesto porque é duro e desagradável, mas o trabalho de um plongeur não satisfaz nenhuma necessidade social: "ele talvez esteja apenas fornecendo um luxo que, muitas vezes, não é um luxo".
Os clientes pagam caríssimo por um serviço de péssima qualidade, ao menos do ponto de vista da higiene, e os trabalhadores são escravos que ganham apenas o suficiente para sobreviver. Incapaz de continuar na rotina estressante de um plongeur, Orwell escreveu para um amigo na Inglaterra, que lhe prometeu um emprego de perceptor de um retardado mental, o que lhe pareceu verdadeiras férias depois da experiência desgastante na França. Mas, ao chegar a Londres, descobriu que o rapaz havia viajado e que o emprego só sairia dali a um mês e, nesse meio tempo, teve que se virar vagabundeando com mendigos.
Foi uma fase terrível, pois não era permitido dormir na rua e nos albergues destinados aos mendigos só se podia hospedar até duas vezes ao mês, fazendo com que os mendigos andassem sem parar. Na verdade, eles não podiam nem mesmo sentar-se nas calçadas, tendo de ficar em pé o tempo todo em que não estavam andando. Pedir esmolas era proibido, de modo que muitos fingiam vender coisas, como fósforos.
A experiência fez com que o escritor revisse seus conceitos sobre os mendigos: "Um mendigo trabalha ficando ao relento, ganhando varizes, bronquite crônica etc. É um ofício como outro qualquer, bastante inútil é verdade - mas muitos ofícios respeitáveis também são inúteis".
Orwell descobriu que não há nada que realmente distinga um mendigo de um trabalhador, a não ser o fato de que o primeiro não tem um emprego.
O resultado de toda essa experiência foi resumido no final do livro: "Nunca mais vou pensar que todos os vagabundos são patifes bêbados, nem esperar que um mendigo se mostre agradecido quando eu lhe der uma esmola, nem ficar surpreso se homens desempregados carecem de energia, nem contribuir para o Exército da Salvação, nem empenhar minhas roupas, nem recusar um folheto de propaganda, nem me deleitar com uma refeição em um restaurante chique. Já é um começo".
Ler Na pior em Paris e Londres é refletir um pouco sobre a realidade desses trabalhadores escravos e mendigos em uma obra primordialmente escrita por aquele que é um dos melhores autores em língua inglesa no século XX. O livro parece ter-se escrito por si mesmo, tal a fluência do texto. Essa facilidade passa para o leitor, que o devora de uma só vez, se tiver tempo para isso e não estiver ocupado com uma jornada estafante de trabalho!
Li esse livro há pouco tempo.
Se antes já era fã do Orwell ficcionista, me tornei ainda mais do Orwell jornalista.
Na Pior é indispensável para quem, sabiamente, não crê em objetividade e tem colhões suficientes para rir de si mesmo.