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COLUNAS

Quarta-feira, 14/3/2007
Xampu
Guga Schultze
+ de 7400 Acessos
+ 11 Comentário(s)

Medusa

Ali está o corredor polonês do supermercado. Não passo por ali sozinho porque sinto a acusação silenciosa das prateleiras:

- Careca! Que que cê tá fazendo aqui, ô careca?

Já passei por esse corredor antes, mas sempre acompanhado. A cena é típica: um homem sem graça, seguindo amestradamente a mulher naquele labirinto pós-moderno. Um Minotauro distraído, cuidando de não trombar desnecessariamente em outros casais e não derrubar latas em oferta, empilhadas pelo piso. Mas elas, as mulheres, param nesse corredor específico e investigam pacientemente as prateleiras. Estou na temível zona dos xampus.

Olho pra cima, olho pra baixo, consulto as horas e com o canto do olho percebo movimentos de aproximação e de recuo contra os frascos impassíveis. As mulheres botam o rosto bem perto de seus xampus e chegam a balançar os cabelos; há um diálogo misterioso ali. Talvez seja necessário mostrar os cabelos para aquele xampu, aquele ali, eleito entre tantos, de forma que ele não se engane depois:

- Olha bem meu cabelo, sô. Tá vendo? As pontas? Tão ressecadas e eu tenho essa mecha rebelde, sacou? Cê não mexe na cor não, tá? Eu ainda quero assim, preto, com reflexos azuis, tá bom?

Uma transmissão telepática que entra em funcionamento ali mesmo, porque os xampus, é bom que se diga, são a última palavra em inteligência artificial. E ainda vão mais além: são capazes de inteligência emocional, essa que foi descoberta há pouco tempo e que teve grande repercussão na ala feminina do universo. Os cientistas - não faço idéia como - parece que descobriram propriedades psíquicas, telepáticas, naquelas moléculas oleosas, sei lá. É difícil de acreditar, mas é assim.

Existe todo um envolvimento emocional em jogo porque as promessas forçosamente terão de ser cumpridas: um xampu é apenas para hidratação, outro só para cabelos tingidos, outro promete apenas a remoção de resíduos. Existem os que são para equilíbrio e oleosidade, os de frutas, os minerais (todo mundo sabe que os cabelos adoram as frutas ou os minerais, é lógico. Se você vier com hortaliças ou animais, por exemplo, eles se arrepiam na hora), para cabelos encaracolados, cabelos cacheados (as sutilezas!), para pós alisamento térmico, para o liso absoluto, para os rebeldes difíceis de disciplinar, para os secos danificados ressecados, para os desidratados e ressecados (sutilezas), para reestruturação, para extra-brilho, para proteção e hidratação, para brilho e hidratação (mais sutilezas), para fechar as escamas, para os cabelos quimicamente tratados, para os que não foram tratados e a lista cobre literalmente duas ou mais estantes paralelas em mais de dez metros de corredor.

Os xampus sabem, sozinhos, como lidar com cabelos normais mas que ficam oleosos no correr do dia, ou então remover o excesso de oleosidade nas raízes e lubrificar as pontas que estão secas, por exemplo.

- Ôpa, aqui tá oleoso! E aí em baixo, como é que tá? - perguntam-se as moléculas enquanto escorrem pela cabeleira da moça que está sob o chuveiro. Uma molécula pára num ponto do fio de cabelo e manda sua mensagem para as demais:

- Que que cês acham de umas luzes nesse lugar?

As outras respondem:

- Ok, mas não se esqueça que o reflexo aí é avermelhado, mas sem excesso.

- Deixa comigo.

Um cabeleireiro não teria a mesma sensibilidade.

Comprar um xampu é uma coisa íntima que responde à complexa relação de uma mulher com seu próprio cabelo. Essa complexidade está em proporção direta com o tamanho desses corredores nas seções de cosméticos e com o número espantoso das opções. Uma mulher é capaz de entrar num labirinto desses, fazer uma busca minuciosa e ir embora sem comprar nada. Ela está em peregrinação, está numa obstinada caça ao tesouro. Você pode apostar que ela atravessará toda uma cidade em busca do cálice, digo, do frasco sagrado que lhe garanta o cabelo do dia.

Porque também é uma questão de dias e na próxima semana ela já terá mudado o corte, a cor, o brilho, a franja e sabe-se lá o que mais possa lhe ocorrer naquela sua região do cérebro que trata exclusivamente de assuntos capilares. Uma região que trabalha noite e dia, sem descanso.

Uma mulher com a cabeça raspada, se não for o caso de alguma doença ou outra necessidade, revela uma disfunção afetiva qualquer; existe ali alguma dúvida, alguma dívida íntima, algum impasse que precisa solução, mesmo que a longo prazo - uma cabeça feminina raspada e você está em frente a uma mulher que está desafiando seriamente suas emoções; existe algum conflito entre ela mesma e seu mundo interior. Ou exterior. Como saber? Uma mulher dessas te olha diretamente nos olhos e pergunta em silêncio:

- Qual o problema, cara? Tá olhando o quê?

Melhor não perguntar, melhor não julgar, melhor olhar distraidamente para os lados e comentar:

- Cê viu o novo celular que eles lançaram?

E se você for mediúnico vai notar que a aura que envolve a cabeça de uma mulher é cheia de ramificações, como pequenos tentáculos que se movem. Uma herança mitológica que nos remete à lenda da Medusa, onde tudo começou.

Essa moça era uma das Górgonas, três irmãs que viviam numa ilha, num fim de mundo da mitologia grega. Tinham aparência horrível e seus cabelos eram serpentes. Tudo é lenda, claro. Na verdade as três irmãs moravam num lugar inóspito, numa terra seca, sem muita água, a não ser a do mar, ou seja, salgada... com muito sol e vento... e a poeira era cheia de cinzas vulcânicas. Aquilo gruda no folículo capilar e não sai de jeito nenhum. Naquela época não havia xampus. É fácil imaginar como fica o cabelo nessas condições. Quem via as irmãs de longe jurava que tinha até cobra naquelas emaranhadas cabeleiras.

Medusa tinha o poder de petrificar quem a olhasse de frente. Outra lenda. O que acontecia é que ela tinha consciência do estado do seu cabelo. Quando aparecia alguém, ela se escondia. Quando esse alguém, um bisbilhoteiro distraído qualquer, a surpreendia sem querer, ela, desesperada, com os olhos arregalados, dava um pulo na direção dele e gritava "aaaaah!" bem na sua cara. Isso realmente petrificava alguns. Mas só o tempo suficiente pra ela sumir de novo.

Foi o que aconteceu com Perseu, um sujeito que andava com umas sandálias decoradas com umas asinhas. Ele tinha o passo bem leve. Depois do susto (ele quaaase morreu), Perseu foi atrás da Medusa:

- Nooosssa... que cabelo ho-rô-rí-vel... liga não, boba, que eu dou um jeito. Cê vai ficar di-vi-na...

Perseu foi um dos primeiros cabeleireiros do mundo e foi o único homem (há controvérsias) a se preocupar com o cabelo dela. Diz a lenda que Perseu decapitou Medusa. Nada disso. Ele simplesmente conseguiu dar um jeito em seus cabelos e ela, de pura gratidão, perdeu a cabeça por ele. Ficaram amigos para sempre.

Outro casal famoso é aquele bíblico, Sansão e Dalila. Homens como Sansão não dão mais as caras, nos dias de hoje. Já Dalila dá ali, lá; em toda parte a gente encontra uma descendente direta.

Reza a história que Dalila tosquiou Sansão, tirando-lhe a força, que estava na juba, para então entregá-lo aos filisteus, um povo que era todo formado por filhos indesejáveis (foram nomeados assim pelos pais em brigas intermináveis: "O filho é teu!" "Não! São todos filhos teus!") e, por isso, muito rancorosos.

A história conta por alto os motivos de Dalila. O que realmente a irritou foi descobrir, depois que Sansão começou a dormir na casa dela, que seu precioso estoque de finos óleos e essências para cabelo estava desaparecendo rapidamente. Sansão, vaidoso e cabeludo, estava usando tudo, indiscriminadamente (e estava fazendo sucesso com a mulherada, quando saía sozinho). Foi o suficiente para ser sumariamente tosquiado na primeira oportunidade, que é pra aprender a não mexer nos xampus de uma mulher.

Eu nunca usei xampu e, talvez, esteja pagando a minha indiferença a seus poderes miraculosos. Tivesse eu um pouco mais de interesse e paciência, tenho certeza de que encontraria um, em cujo rótulo estaria escrito: "para manter cabelos muito rebeldes no alto da cabeça". Pois é. De tão rebeldes fugiram de casa, abandonaram o navio, digo, o aeroporto. Por isso, sempre que possível, evito passar naqueles corredores dos supermercados. Posso sentir que, dentro dos frascos, aqueles xampus, aquelas moléculas inteligentíssimas, estarão sorrindo com um certo desdém.


Guga Schultze
Belo Horizonte, 14/3/2007

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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
14/3/2007
09h16min
Fantástico, Guga. Eu queria ter escrito este texto, cara, mas não sou careca. Vou inquirir meu marido sobre as sensações dele ao cruzar os corredores de xampu do Extra, muito embora eu não seja mulher de desfilar nessa seção. Aliás, quase não entro nela.
[Leia outros Comentários de Ana Elisa Ribeiro]
14/3/2007
14h52min
Olha, Guga, hilário! Me deu até vontade de ir lavar o cabelo com meu "esleves" vermelho tão querido. Bom demais!
[Leia outros Comentários de Claudia Serretti]
15/3/2007
00h42min
É surpreendente a leveza e as costuras do seu texto; depois das polêmicas envolvendo seu interesse por PF, nada melhor que um choque de talento e competência na "concorrência" de prosa rala. Criativo e dinâmico sem apelar para os exageros burlescos que alguns acreditam ser humor; grande texto. Bravo, Guga Schultze!
[Leia outros Comentários de Carlos E. F. Oliveir]
15/3/2007
13h03min
Nossa, quanta sensibilidade para ler todas essas sensações. Parabéns pelo texto. Você diz que os cabelereiros não sabem tanto quanto as moléculas do xampu, e eu tenho certeza que eles não manjam tanto quanto você. É a primeira vez que acesso o site, primeio texto que eu li. Me apaixonei. Obrigada.
[Leia outros Comentários de Isabella]
15/3/2007
14h21min
Guga, super divertido o texto. Morri de dar risada. Parabéns!
[Leia outros Comentários de Adriana Carvalho]
15/3/2007
14h57min
Olha só, realmente o texto é de primeira. Essa magia envolvendo as mulheres e certos objetos de desejo existe mesmo. É uma coisa meio surreal. Vc conseguiu produzir um texto intenso, com toques de humor, com toque de verdade e muita sensibilidade. Ontem fui a um supermercado e passei em um corredor desse e me peguei lendo as embalagens dos xampus e cremes e gastei um bom tempo assim. Lógico que o seu texto me veio à cabeça e ri sozinha, no meio de umas mulheres meio loucas, acompanhadas de uns homens meio carecas. Beijo, adorei. Dri
[Leia outros Comentários de Adriana]
17/3/2007
17h42min
Guga, ótimo texto! Muito engraçado! Quando raspava o cabelo (O que acotecia até bem pouco tempo) o que mais gostava, depois do vento no couro cabeludo, era a despreocupação com o que usar para lavar a cebeça. Podemos imaginar a angustia de nossas dignissimas, diante de tamanha variedade de propriedades e cracteristicas nas prateleiras dos mercados. Um abração.
[Leia outros Comentários de Dedé]
19/3/2007
08h50min
Xampu e creme anti rugas nunca deixarão de ser reinventados. Sempre aparece mais uma fórmula mágica. O pior é que as mulheres acreditam piamente nestes químicos. Impressionante! Às vezes, quando esqueço de passar naquele labirinto do supermercado e não compro xampu, resta-me lavar o meu cabelo com sabão de coco. E fica jóia! Seu texto me fez rir demais. Viva!
[Leia outros Comentários de Marco Aurélio]
23/3/2007
09h48min
Genial, Guga! Nunca soube que Xampu tinha alma, ainda mais sarcástica. Você descobre cada coisa... Não gosto mais deles, fiquei com medo e, a partir de hoje, só lavarei meus restos de cabelo com sabão de côco, assim como o Marco Aurélio.
[Leia outros Comentários de Henrique Boschi]
27/3/2007
20h24min
Guga, tinha me esquecido do tanto que eu gosto dos seus escritos. O texto sobre os xampus é muito divertido. É verdade mesmo, é daquele jeito que as coisas acontecem. Como você sabe disso? Beijos. Beth
[Leia outros Comentários de Elyzabeth Ferrari]
5/7/2007
11h53min
Muito bom, Guga. Nesse sentido somos umas bobas mesmo, sem uma gota de inteligência (a do produto é maior que a nossa), acreditando em promessas milagrosas ou mirabolantes dos fabricantes de xampus e cremes (espertos, eles; xampu com poder de agir em parte específica do cabelo é uma descoberta fantástica, nos deixa doidas pra testar), tudo pra tentarmos ficar mais bonitas para os nossos homens, que adoram cabelos cheirosos, macios, sedosos (olha a sutileza), portanto, a culpa é de vocês, que nos deixam sem um pingo de juízo e senso crítico. Incrível o seu humor nesse texto, gostei demais! Com afeto, Cristina
[Leia outros Comentários de Cristina Sampaio]
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