Aqui estou. Sou ruiva, fiquei magrinha sem dieta nem exercício, uso uma touquinha estranha na cabeça. A blusa justa deixa a barriga à mostra e a calça de cintura baixa revela parte do cofrinho. Céus, definitivamente não sou eu. Ando cambaleando, bato nas paredes, dou ré. Alguns caras passam por mim e puxam conversa. Chega outra ruiva de cabelos espalhafatosos e com pouca roupa. Não, não estou entre as primas da Rua Augusta do lado do Centro. Também não estou bêbada. Sou mais um ser divino que desceu à terra (essa é afinal a definição hindu de "avatar") virtual do Second Life.
Conforme já comentei com os companheiros deste Digestivo, às vezes eu me sinto uma velha. Até duas semanas atrás nunca tinha ouvido falar desse hobby (alguns o definem assim). Surpresa foi saber que o negócio já existe desde 2003 e tem mais de 4 milhões de pessoas cadastradas! Gente de todo o mundo que assume literalmente uma segunda personalidade, um outro corpo, compra com dinheiro de verdade coisas de mentirinha, faz amigos, namora, transa, casa. Freqüentam shows, estudam, fazem negócios. Acham uma pechincha pagar o equivalente a apenas um dólar por um carro virtual (da Volkswagen, empresas de verdade também estão no jogo). Para mim, por um carro que não existe, ainda é dinheiro demais.
Disseram-me para experimentar. Só assim poderia comentar com propriedade. Achei legal. Até voar eu voei. Descobri que lá tem teletransporte. Meu grande sonho utópico de consumo! E a ruiva semipelada veio falar comigo, disse que é alemã, me pediu para ser sua amiga. Foi divertido. Mas só por meia hora. Depois de ficar zanzando e conversando com ídolos de pedra num cenário meio praia, meio castelo medieval, meio selva, eu enjoei. Definitivamente não nasci para jogos ou hobbies de computador.
Eu não gosto, mas tem muita gente que gosta. Até aí tudo bem. Mas alguns passam do limite. Reportagens do IDG Now contam que mais de mil brasileiros passaram o ano novo no Second Life. Já ocorreram processos no mundo real por conta de discussões em negócios imobiliários no ambiente virtual.
É um hobby, mas parece que muitos levam a sério a vida de mentira. Como diria o Obelix, irredutível gaulês dos quadrinhos, esses romanos são loucos! E não são os únicos. A criação de cidades virtuais (na internet e fora dela) e até mesmo países é uma realidade (que paradoxo!) desde os anos 1960. O fenômeno chama-se micronacionalismo e, segundo Wikipedia, começou a ganhar popularidade quando um indivíduo de origem norte-americana, chamado Marc Eric Ely decidiu criar seu próprio país, o Ely-Chaitlin. Hoje estima-se que haja mais de 400 micronações em todo o mundo (aliás, seus criadores pertencem a este nosso Planeta Terra, mas suas "nações" ocupam territórios que vão além da nossa estratosfera e da nossa imaginação).
Esses "países" têm suas próprias constituições, tribunais e leis. Muitas são dominadas por "imperadores" ou "monarcas". Até uma "ONU" as micronações têm: chama-se LOSS (Liga dos Estados Secessionistas). O Sacro Império de Reunião, por exemplo, é uma das micronações brasileiras mais famosas. Parece que se trata de um regime parlamentarista, já que há uma "sacra majestade imperial", de nome Cláudio Primeiro, e um "premier", Carlos Fraga, cujo lema é "Morte à Inatividade". O Sacro Império, diz a página, fica a leste de Madagascar. Para se juntar aos 130 cidadãos do "país", você precisa preencher um formulário e aguardar a resposta do "Ministério do Turismo e Imigração". Segundo as perguntas e respostas mais freqüentes do site da "nação", a graça disso tudo é participar de uma simulação de vida política. Os tópicos são debatidos por e-mail. Se quiser participar, reserve um bom espaço na sua caixa de mensagens, porque receberá cerca de 50 delas por dia.
Se ser e viver de mentirinha, além de discutir política de mentirinha, é pouco para você, que tal então tocar guitarra de mentirinha? Air guitar (ou guitarra de ar) é um, digamos, esporte, que tem história (remonta aos anos 1970), regras e até campeonatos. Como assim? Você faz de conta que toca guitarra, faz de conta que coloca um case de guitarra nas costas e sai por aí tirando uma de rock star e imitando seus ídolos que tocam de verdade. Desde 1996 é realizado o Campeonato Mundial Anual de Guitarra de Ar em Oulu (sim, fica em nossa galáxia, mais precisamente na Finlândia). Os participantes são avaliados em três quesitos: mérito técnico (ou seja, a mímica de tocar), presença de palco e, pasmem, uma coisa chamada airness, definida como um critério subjetivo (não diga!) que pretende analisar o quanto a apresentação é "uma obra de arte e não uma simples simulação de tocar guitarra". Também tem gente que pratica air piano, não sei se tem air bateria, mas é capaz de dar para formar uma banda...
Eu continuo não entendendo esses romanos. Por que não tocar guitarra de verdade? Porque não gastar mais tempo vivendo de verdade ou praticando política real? Eu sou do tipo que gosto de picar tomates em vez de abrir caixinha de molho e jamais vou sair com uma coleira na rua para passear com cachorro invisível...
Puxa, ainda existe alguém que pisa no chão mesmo. Pés no chão! Parabéns, Adriana Carvalho. Vi esse second life como uma fuga da realidade, vier de mentirinha as frustrações, mais uma droga que empana a vida. Viva você! Que belo artigo!
Xanadu, Eldorado, Paraíso, Macondo, Cidade do Sol, País da Cocanha e mais inúmeros de lugares onde suspendemos a opressão de um domínio, de uma rotina que deprime. Quem não terá sonhado um lugar sem regras as que impuseram limites que assustam. Second Life é só uma fantasia, mais uma alegoria da realidade, que estabelece um torpor e desacelera as urgências e como todo conteúdo; distorce a noção de realidade pode exercer uma obsessão viciante. Cotidianamente nos furtamos da realidade; quem identifica se, plenamente, nesta convenção? Acreditamos em inúmeras propostas alternativas à realidade e nem por isso somos tolos; ou somos? Vivenciamos uma expectativa post-mortem que estabeleceu sólidas conjecturas, que estão de tal forma inseridas na nossa situação, que nem o racional ousaria contestar. A percepção pode ser considerada uma representação possível de uma situação real. Que vida, com certeza, vivemos? Qual é nossa First Life? Onde está a certeza de mundo real?
hahaha... esses romanos são mesmo loucos. A gente pode ver no YouTube umas coisas do Second Life, mucho loco. Eu não vou lá, mas por razões contrárias: sinto que eu poderia ficar fascinado com a vida virtual mas, infelizmente, tenho mais o que fazer. Sou prisioneiro desse nosso mundo cotidiano, tão cotidiano que chega a ser uma aberração. Né não? Outra coisa me ocorreu: toda a literatura não é uma espécie de Second Life? O texto tá excelente, Adriana. Abraços.
Oi, Adriana, adorei o texto e o enfoque dado. Fiquei pensando no comentário do Guga e lembrei de uns livros que um amigo de infância adorava (e que eu tentei ler). Simplesmente odiei! A trama caminhava e, num nó, o leitor decidia o que iria acontecer, indo para a página relacionada ao fato escolhido. Cada leitura era um conto (ou vários), dependendo das escolhas. Era chato! Talvez a gente busque mesmo uma visão particular que nos toque como humanidade (na poesia, na prosa, nos filmes, na vida...).
Beijos
Depois de deixar meu comentário aqui, topei com este post no blog de uma amiga. Ele traz um vídeo do Saramago falando sobre o Second Life. Achei que valia para alimentar a discussão...
Texto muito interessante. As vezes fico pesando se sou tão ultrapassado, por não saber de assutos como este. Não é por falta de usar a internet. A fuga tem sido mais importante do a luta pela mudança do que é real.