De fora, ouço o barulho da água caindo e as gargalhadas ressoando ecoadas. O vapor quente embacia o vitrô. Sinto a doçura do cheiro enjoativo de xampu. Sou capaz de entrar lá sem que ninguém me veja, por uma das frestas entre os vidros. Esgueiro-me, depois me dilato de excitação. Sim, aqui é um paraíso intocado pelo homem - as meninas molhadas ensaboam-se amolecidas e com pensamentos perdidos em bolhas de esquecimento.
Contemplo-as de cima, vislumbrando emaranhados de cabelos molhados, pêlos sugados em reviravolta encaracolada pelo ralo. Uma das fileiras de chuveiro tem portas, a outra respira livre. Mas pouco importa a tentativa de se esconder, posso entrar em todos os lugares. Sobrevôo seus corpos açucarados pelo sabonete de chocolate. Se pudesse pousar minhas mãos em seu ombro, beijar sua nuca num ziguezague escaldante, infiltrar-me entre suas coxas como a água que escorre branda, ou ainda recostar-me em seu ventre orvalhado... certamente elas me repeliriam com veemência.
Gotículas de água preenchem os corpos quentes, recém-saídos do banho. Visualizo cada poro, limpo ou sujo, fechado ou aberto. As pequenas sem havaianas coloridas salpicam apenas a pontinha dos dedos no chão embaciado de água preta. Elas não andam, antes deslizam à maneira de românticas heroínas. Enroladas em mínimas toalhas brancas, ou mesmo nuas, percorrem o vestiário até chegar à sua bolsa. Elas tapam o sexo com calcinhas brancas micro. Ainda com os seios desnudos, reviram a bolsa em busca de cremes miraculosos, que espraiam pelos braços estendidos, em massagem vigorosa nas pernas e barriga, numa chacoalhada tremelicante. Ai! Até parece que tem repelente...
O traçado intrincado verde-azul que reveste suas peles alvas é charada invencível. Nem que tateasse com brutalidade suas veias, poderia desvendar o avesso de meticulosa casca. Mapa-múndi cravejado de pintas.
Em balanço circular, faço cócegas em suas pernas e pés descobertos, suave pena sonora que sou. Freio no impulso do amor e mordida. Persigo-as, escondendo-me nos armários semi-abertos, por debaixo dos bancos de madeira molhados. Quero fazer do azulejo frio nossa macia cama invisível, deitá-las em levitação de mágico ilusionista e encruzilhar minhas longas pernas com as delas.
O bico do peito é trampolim rumo a oceano, onde cavalgo em acrobáticos pulos. Quando enfim, me afundo, permaneço em púlpito ao som de seu discurso universitário vazio. Não me importa sua intelectualidade, o que me interessa é a quentura das carnes sanguinolentas. Agora é a hora, lá fora está frio e não as alcançarei mais. Na sala de aula, as meninas estão lacradas, corpo e mente, é noite, a cidade amortece meus sentidos ralos.
A fala entre as meninas é zunzunzum perfazendo o ar irrespirável de vapor d'água. Seu corpo rijo - volutas em que volteiam meus olhos - basta-me para ensandecer meu esqueleto-esponja. Delas, o espelho, espelho, espaço vazio em que se travestem mulheres com delineador, gloss e secador. Dê-me pedaço desta boca brilhosa, desta rosácea que se entorna em cintura perfeita...
Procuro o que não se encontra, o que se depara pelo acaso e, ainda assim, continuo minha busca. O perigo não me desestimula, sei que a vida é curta. Aprendi a conviver de forma pacífica. Opaca. Se me for permitido clareza nesta clandestinidade.
Pois, não tenho medo da morte. Sei que minha vida é fraca e inútil. Sequer elas, as meninas, vão se recordar da minha presença invisível, ou incômoda; apenas fazer o favor de me afundar no esquecimento completo. Repito: não tenho medo... Tenho ganas póstumas. As de agora, carnais. É como o destino se apresenta - amo o que quero comer, mas o que amo também me come, me repisa. Coisas terrenas e comezinhas, as cartas disseram ser meu fraco.
De nenhuma valia são os desejos contidos naqueles corpos enlanguescidos. Tudo será pouco ou nada. Prazer efêmero, como todos. Saudade constante, pois nunca o que se tem parece o suficiente. Não apenas uma, todas. As meninas que também não se satisfazem. As meninas cruas e sós, em estado de dicionário, trazem suas decepções e pesares para a ducha. Vida íntima exposta em vitrine embaciada.
A imagem de uma sobrepondo-se à imagem das outras - complementares imersas no brilho reflexivo -, torna-se uma só. Será minha. Gigante, poderoso, um só ser cintilante oscila. A caça recebe contornos mais indefinidos, e ainda que o alvo figure claro, fito-me, insignificante como a ferrugem grafite impressa na chapa metálica.
Durante um vôo rasante, ela revolve o cabelo molhado. Reflexo lento, a picada se desfaz em vento. Fino chicote afiado me abate. Minhas asas se esfacelam entre as reentrâncias caleidoscópicas no solado de sua sandália.
um insetinho romântico espreitando as uspianas. salivante, ávido por sucções libidinosas. aquele pescocinho alvo ali seria um ótimo alvo... mas não será desta vez que o pobre arrotará sangue nobre e aguado. chinelo no safado, no alado voyeur! parabéns pelo escrito, Elisa, muito bem elaborado!
Elisa: estava eu pronta para dizer que só uma mulher poderia descrever a sensibilidade do vôo, que não é do besouro, quando me lembrei de Nelson Rodrigues escrevendo com pseudônimo feminino. É a verve de quem empunha a pena, suponho. Parabéns! Cylene Gama