A primeira imagem é a de uma imensa bunda, que toma a tela rebolando e se chacoalhando enquanto sua dona caminha pela rua. Estamos no universo de Lourenço Mutarelli, escritor e quadrinhista adaptado aqui pelo diretor Heitor Dhalia. Estamos no mundo de O cheiro do ralo. E quem não se dispuser a entrar nesse mundo, não terá uma boa experiência. Mas quem topar, sai perturbado.
Porque é muito fácil desgostar de O cheiro do ralo. Filme degradante sobre degradação, linguagem seca sobre a secura. É um objeto estranho na atual cinematografia brasileira, nada se assemelha a ele. E como qualquer objeto estranho, deve ser olhado e avaliado com estranheza - e é justamente disso que trata o filme: a estranheza de um homem torpe que encontra a própria humanidade na bunda de uma balconista de lanchonete.
Para mal ou bem, o filme é marcado pelo jeito muito próprio como o diretor Dhalia se coloca no encadeamento da narrativa e das imagens - ainda mais considerando o trabalho de afetação que foi Nina (2004), seu primeiro longa-metragem, em que a falta de sutilezas na construção da personagem principal e o contraponto excessivamente perverso simbolizado pela velha interpretada por Myriam Muniz o tornavam um filme de razoável fraqueza.
Não é o que acontece em O cheiro do ralo. Selton Mello se entrega ao protagonista auxiliado pela forma como Dhalia o filma. Os trejeitos, as nuances, as manias e o olhar e corpo sempre encurvados são catalisados pela câmera, sem que isso se torne uma espécie de caneta de cor pulsante a reafirmar as condições estranhas características do personagem ou mesmo do ambiente que o cerca. O tal homem é Lourenço (homônimo do autor da história), vivido por Selton naquela que deve figurar, até prova em contrário, como a grande interpretação desde que se tornou ator. Lourenço é a alma do filme, e para isso precisava de um intérprete à altura.
O filme se estrutura de forma cíclica: o protagonista toma café, vai para o escritório, onde compra e nega objetos, justifica o mau cheiro como vindo do ralo do banheiro, dorme, volta a tomar café e assim adiante. A recorrência de diálogos e situações dá o tom de deboche e tragicomédia, mesmo quando o enredo envereda por caminhos cada vez mais profundos. Ri-se da forma como vão se acumulando as situações, e não dos envolvidos. Há, de fato, algo de muito político na colocação do comprador perante seus vendedores, em todo aquele jeito de abusar do poder - algo já existente em Nina e reafirmado agora.
Veja acima o trailer de O Cheiro do Ralo
A política de O cheiro do ralo se manifesta em aspectos dentro e fora do filme. Fora, pela insistência de Dhalia em levar às telas trama tão controversa, bancando na base da cooperação o dinheiro necessário à empreitada. O orçamento de filmagem foi de R$ 300 mil, captado junto aos próprios realizadores - ninguém de fora quis bancar um projeto com o nome em questão e sobre tema tão "desagradável" com protagonista detestável. Outros R$ 300 mil foram usados para finalização. Apenas quando o filme causou frisson no Festival do Rio e, em seguida, na Mostra de São Paulo, ambos no segundo semestre de 2006, é que alguém apareceu para ajudar O cheiro do ralo a, de fato, existir junto ao público. A distribuidora Filmes do Estação adquiriu os direitos da fera.
Já dentro do próprio filme, a política está nas relações entre forte e oprimido, sendo que este último sempre vai se dar mal por conta da imponência do primeiro. Pode parecer um tanto afetado o jeito como Dhalia coloca Lourenço perante seus "subordinados", mas aí reside a graça da brincadeira toda: um ser tão detestável vai se moldar apenas com a parte mais "grandiosa" do corpo feminino. O que seria mais coerente, e também irônico, do que isso, afinal? Não se trata de maldade que chega à redenção, e sim de complementação a uma mente inicialmente doentia.
Dhalia não é cínico de insinuar que Lourenço vai se tornar um novo homem após realizar o maior de seus fetiches. Aquilo surge na vida dele como algo a mais dentro de seus mecanismos de dominação - porém, é o único desses mecanismos que ele não consegue realmente dominar. Ele deixa-se render. O encontro entre o usurário e a "bunda" guarda em si um instante quase apocalíptico: é quando, pela primeira vez, Lourenço se vê numa posição inferior - literalmente, inclusive, pois ele precisa se ajoelhar para alcançar o sonho.
A política, ali, se inverte: o poder está com o oprimido, e resta ao outro se render a esse poder se quiser, em seguida, continuar poderoso. Nesse jogo de peso e contrapeso está a complexidade da narrativa do filme. E o próprio Dhalia entra na jogada: ele se ergue após o fiasco de Nina para se firmar como um cineasta a ser mais bem acompanhado a partir de agora. O cheiro do ralo não é uma redenção, e sim uma complementação. O cheiro do ralo equivale, para Dhalia, à bunda que tanto fascina Lourenço.
Também é muito fácil gostar de O cheiro do ralo. A pretensa tensão entre opressor e oprimidos(as) se dilui na trilha sonora animadinha, no figurino lúdico, na fotografia leve. Não seco, mas ornamentado. E "degradantes" talvez sejam as salas de cinema, afogadas em gargalhadas que não percebem política nenhuma na grande bunda, mas que se identificam com o fofo Selton Mello, incapaz de nos fazer desperceber sua voz e seus olhos de menino, obstáculos tão grandes à boa caracterização de um personagem assim amargo e mesquinho. O cheiro do ralo é um filme divertido, talvez, mas discordo em absoluto de que coloque de forma relevante e aprofundada a questão política da opressão. Muito pelo contrário, aborda-a (no mais das vezes) de maneira superficial o bastante para, no máximo, render uma risada gostosa e descompromissada da audiência. O maior mérito do filme foi o de ter captado tão bem a atmosfera hedonista e supérflua tão presente em considerável parte da atual literatura brasileira...
Ótimo texto, Marcelo. Mas você tem certeza de que um personagem torpe numa história torpe é uma novidade no cinema nacional? Bem, não vi o filme. Também não sei se vou ver.
Talvez o maior valor de "O Cheiro do Ralo" seja provar que ainda é possível fazer cinema, com boa história e bons atores sem necessariamente torrar rios de dinheiro governamental. E concordo que também não é tão difícil gostar de "O Cheiro do Ralo", é um filme simples, com um ar cool, um roteiro com ótimas frases e personagens diferentões, permeando um universo onde Lourenço é o Rei.
Eu me admiro com esses "comentadores". Todo mundo fica arrumando mil pretextos para fazer uma crítica "cabeça" do filme. Política, falta de política, opressor, oprimido, superficialidade, hedonismo... Mas, no final, todo mundo se embasbaca mesmo é com a política da bunda. Bunda, bunda, bunda. Ensaia-se, desvia-se, disfarça-se e se chega na... bunda. E é isso mesmo, uma bunda majestosa e dominante, num filme muito original, divertido e absorvente, no bom sentido. Assisti fascinado, sentindo que, apesar de esse Selton Mello quase estragar tudo, como sempre, esse sim é um filme muito melhor do que essas leguminosas a que vamos assistir no fim de semana nos Cinemarks dos shoppings.