Já disse aqui, algumas vezes, que não gosto de viajar. Isso não quer dizer que tenha ficado a vida inteira pregada na mesma areia, mas que tenho certa dificuldade de fazer distância das minhas coisas, dos meus, de um cantinho com meu cheiro nas pilastras.
Acho muito engraçado como as pessoas falam sobre viagens. O discurso é mesmo muito interessante. Em geral, contam vantagem e escancaram os dentões para dizer que foram para a praia (no caso de quem mora no sertão), que conheceram o Sul, que foram ver trio elétrico ou, o máximo, que fizeram intercâmbio quando tinham 15 anos. Acho engraçado.
O discurso das pessoas também repete que viajar é bom, é curtição, é cultural, é gostoso. Dizem que aprendem horrores quando estão fora do chão materno. Se for no exterior (digo, nas terras estrangeiras), aprendem outras línguas, outras culturas e até voltam com sotaque, mesmo quando a viagem dura uma semana.
Até acredito nisso quando alguém vai morar em outro país (mesmo em outra cidade). Morar mesmo, de mala e cuia, passar uns apertos, ver que o mundo é esquisito de qualquer ângulo que se olhe neste globo. Ou sacar que coisa boa e coisa ruim não são privilégios mais de uns do que de outros. Perceber que, embora em proporções diferentes, gente sem educação prolifera em qualquer idioma. Ou identificar peste e sacanagem atrás de qualquer roupagem. Também tirar conclusões que poderiam ter sido tiradas em cima do muro da vizinha.
Viajar por 15 dias, não. Aprender "outras culturas" é um negócio muito mais sofrido. Talvez se possa ter noção de que existe o outro, e ele é diferente de mim. Mas não creio nessa atenção tão etnográfica que as pessoas dizem ter quando viajam.
Conheço pelo menos uns 100 mineiros que viajam algumas vezes ao ano para fazer, noutras plagas, o que fazem aqui. Ou que se retiram de casa, de prancha e balaio, para reencontrar a vizinhança (a mesma daqui) noutro lugar. Conversam os mesmos assuntos, têm as mesmas antipatias, comem as mesmas coisinhas, talvez com pequenas inserções de frutos do mar, que dizem adorar.
E isso não é privilégio de mineiro. Não mesmo. É por essas e outras que nem todo mundo sai do lugar para fazer imersão. A palavra é esta: imersão. As pessoas não imergem em quase nada. Sequer nas páginas do jornal. Estão muito mais preocupadas com outras miudezas. No que nem sempre estão erradas.
Raiz ruim
Tirar esta pobre coitada de casa é uma manobra arriscada e difícil. Há que passar uns meses me convencendo, outro mês me preparando psicologicamente, ainda uns dias me persuadindo de que é preciso levar mala, uns outros dias me mostrando que está tudo comprado e preparado e algumas horas agüentando meu mau humor dentro do carro, do ônibus ou no avião.
Viajei um bocadinho no ano passado. Este ano as viagens ainda vão começar. Mas, em todas as vezes, me tiraram de casa por alguma causa bacana. Em algumas delas, estavam me pagando. Nem sempre bem, é verdade, mas valia a pena. Quase sempre foi viagem para trabalhar, mas não deste trabalho de todo dia. Era para aprender a fazer coisas, estudar um método novo, conhecer um medalhão de alguma coisa, apresentar uma produção, ler poesia pra platéias interessantes. Daí, com a sensação de que estava sendo útil, eu aproveitava para passear pelas ruas, andar de ônibus na cidade, comer alguma coisa legal, observar as pessoas. Não há, para mim, nada melhor e mais etnográfico do que observar as pessoas. Os tipos, na verdade. E os lugares mais interessantes para se fazer isso nem sempre são esses dos cartões-postais. Embora também possam ser.
Eu chego de viagem com fotos, em geral de pessoas. Os monumentos às vezes são apenas o cenário bem ao fundo. Também chego com os olhos um tanto preocupados. Preciso retomar de onde parei. Prefiro investir no meu parapeito. E nem sempre teço comentários sobre o que vi ou ouvi. Só quando são de fato transformadores.
Às vezes eu fico irritada com as pessoas que repetem discursos. Não sabem bem por que dizem isto ou aquilo. São ecos. Nem sempre estavam felizes, alegres ou dispostas. Precisam agradar. Quando acho alguém que emana autenticidade, morro de amor. E alguém que pode respeitar a vontade alheia de ficar quieto, morro mais.
Livro para puxar a orelha
Semana passada parei um pouco e me concentrei na leitura de umas crônicas de viagem. O motivo da leitura era o trabalho, mas logo me enfronhei na obra e só saí dela quando a última página suspirou. Eram as crônicas de Luís Giffoni, escritor mineiro discretíssimo, mas nem tanto que fosse um obscuro. Além de não passar desapercebido em seu bem mais de metro e setenta de um porte altivo e simpático, tem 17 livros publicados e nem sei quantos prêmios arrebatados a várias academias, inclusive um Jabuti, que é o mais pop para ser mencionado.
Giffoni lançou, em 2005 ou 2006, Retalhos do mundo, uma coletânea de textos sobre viagens a vários lugares da Terra. Não cheguei a ler e, quando procurei, o livro já estava esgotado. Tudo bem que as tiragens no Brasil não são lá nenhum susto, mas esgotar um livro não é pra quem quer.
Desta vez, resolvi encarar a viagem virtual. Comprei O reino dos puxões de orelha e me embolei no sofá bonina, a fim de saber por que razões o livro tinha esse nome esquisito.
A leitura, ainda trôpega e indecisa, começa pelos Estados Unidos. Logo o único lugar do mundo que eu evitaria de passar as férias. Ou de passar qualquer coisa. Bobagem, né? Afinal, eles são tão bons para nós. Mas adiante: Giffoni, a esposa e três filhos entraram num carro alugado na costa leste dos EUA e foram, no volante, até o Oceano Pacífico. Uma espécie de "descoberta do Oeste", com direito a blitz da polícia e lugarejos mal-assombrados.
O pitoresco da viagem é que a família encontrou uma cidadezinha chamada Junction bem na conexão entre as estradas que levam para cima, para baixo e para os lados do país do Tio Sam. Pessoas esquisitas se misturavam aos tumbleweed, aquelas plantas secas que rolam pelo chão, como uma bola de gravetos. Todo filme de faroeste tem esse negócio.
Quando percebi, estava imersa nas viagens de Giffoni. Sem me sujar, sem fazer mala, sem poeira no sapato. Viajando nos relatos dele, como viajo nos de Caminha e nos de outros navegantes.
Na leitura do Reino, tive absoluta certeza de que não irei a Fernando de Noronha e nem ao Peru, embora as lendas sobre Machu Pichu me pareçam um tanto mais atraentes do que as tartarugas marinhas. Ainda assim, um bom contador de histórias, como é Giffoni, já me deixa bastanta satisfeita sobre lendas peruanas.
Manatu Bakara foi hilariante. Depois de uma saga para chegar à localidade, o viajante depara com um cenário maravilhoso onde manda um rei gordo e cego. O fim do mundo (ou o começo) conserva a tradição segundo a qual as moças devem ser defloradas pelo rei. Cruz-credo. Má sorte a delas. Por isso mesmo, correm em direção aos estrangeiros para que eles lhes façam o favor de consumir com aquela lasquinha insossa à qual foi dada importância de selo de qualidade. Parece que Giffoni não passou batido pelas atiradinhas.
Mais adiante, Tailândia, Egito e Itália. No primeiro país, o autor experimentou a massagem famosa no mundo inteiro, especialmente em legendários filmes pornôs. E não é que é verdade? As moças se esfregam pelo corpo do massageado até relaxar a alma do felizardo. Pena que a esposa de Giffoni também estava no recinto.
No Egito, ainda impressiona o cenário das pirâmides, mas o melhor de tudo, como quase sempre, são as pessoas. O moço que alugava dromedários para dar rolé vale o livro inteiro. Uma graça. Trapaceiros existem no mundo inteiro. Aliás, nem é preciso ir muito longe.
Na Itália, como era de se esperar, Giffoni foi investigar os familiares. Encontrou o clã. E foi muito bem recebido. Mais uma vez, as pessoas.
Crônicas de viagem são um gênero de texto, às vezes literário, outras vezes nem tanto, muito antigo e encantador. O autor mineiro acerta na mão ao pintar cenários e pessoas com a graça de quem está mesmo de passagem. Viajante, de fato. A leveza da linguagem é a outra metade responsável pela imersão do leitor na obra. Giffoni publica seus livros pelo selo Pulsar, dele mesmo. Controle total sobre obras, distribuição e esgotamentos. Vale a viagem. E, em tempo: Giffoni não conta vantagem, ele sabe viajar, com pouca grana, sem frescura e falando 5 línguas. Arriba!
Ainda em tempo
Quem achar Manatu Bakara no mapa ganha o livro do Giffoni!
Mais em tempo
Em decorrência do sucesso da série Leituras, leitores e livros, publicada em 4 partes no Digestivo, a partir de hoje, abro esta coluna ao leitor. É só enviar mensagem dizendo que livros você está lendo e farei um comentário aqui.
Ana, que surpresa??? Adoro viajar, tanto virtualmente, pelas linhas literárias, quanto pessoalmente, pelas reais estradas do mundo. Outro dia ouvi a Lya Luft dizer que traduziu os livros da Virginia Wolf antes de conhecer a Inglaterra. Só depois de visitar os lugares mencionados pela autora é que percebeu as sutilezas despercebidas quando da tradução. Lamentou pelo empobrecimento que causou ao texto, pois concluiu que só quem sentiu o cheiro poeirento das livrarias poderia transmiti-lo com fidelidade. Concordo com ela. É claro que os discursos repetidos de viagem são enfadonhos. Alguns até se justificam pela inexperiência e excitação do viajante que urge em dividir as descobertas, outros, insuportáveis, decorrem de simples necessidade de aparecer. Todavia, viajar sempre me deu a idéia de enriquecimento. Essa me parecia ser uma opinião unânime. Agora me dou conta do equívoco, por isso a surpresa. Enfim, que vivam as diferenças...