Estou apaixonada pelo Alexandre. Dumas. Meu marido sabe. Mas não liga. Também é fascinado por ele. Leu os clássicos romances de capa e espada pelos quais Dumas se tornou famoso. Quanto a mim, descobri Alexandre pela obra com a qual ele achava que se consagraria na posteridade: o Grande dicionário de culinária (Jorge Zahar, 2006, 340 págs.). Na gastronomia, para alguns, o livro é considerado um ícone, colocado ao lado de A fisiologia do gosto de Brillat-Savarin. Outros dizem que não passa de uma compilação de obras e receitas da época, resultado das horas de ócio de Dumas. Na literatura, não conseguiu superar a fama dos Três Mosqueteiros ou do Conde de Monte Cristo.
Discussões à parte, o que eu posso dizer é que uma pessoa precisa ser mesmo muito mal humorada para não se deliciar com a leitura da obra, recém-traduzida e lançada no Brasil, ainda que com mais de cem anos de atraso em relação à sua primeira edição, e imperdoavelmente não editada na íntegra para tornar o livro comercialmente viável (há que se frizar que não fomos originais nesse quesito: na França também há versões da obra que subvertem seu formato original).
A editora Jorge Zahar decidiu separar a obra em dois livros: um com verbetes que compõem propriamente o dicionário e outro, que ganhou o nome de Memórias gastronômicas de todos os tempos (seguido de Pequena história da culinária) (Jorge Zahar, 2005, 148 págs.). Novamente, apesar da indignação com o fato de pegar a obra original de um medalhão da literatura universal e dar a ela nova ordem, títulos e intertítulos que sabe-se lá se não causaram alguma azia ao autor em seu descanso eterno, ainda assim as Memórias gastronômicas... foram, para mim, uma leiga em Dumas, um delicioso aperitivo, degustado com voracidade.
Esse pequeno volume é um relato dos hábitos à mesa (os bons e os maus) dos séculos XVIII e XIX, incluindo os de famosos como: Napoleão Bonaparte, que segundo Dumas só não era um gourmand porque temia ficar gordo; seu antecessor Luis XVI, que vivia para comer (sem modos) e não perdeu a fome nem sob a iminência da morte na guilhotina (ao contrário, devorou sem cerimônia um frango inteiro, com as mãos); e de Luis XVIII, sucessor de Bonaparte, para quem um cardápio magro (sem carne vermelha, para os dias de abstinência do calendário católico) significava uma ceia que só de entrada servia 32 receitas diferentes! Luis XVIII, aliás, tinha todo um séquito para atender seus caprichos gastronômicos (como a figura de um degustador oficial de pêssegos) e só não demitiu o mordomo-chefe de Napoleão, depois de sua queda, porque soube que ele havia sido o criador da maravilhosa mistura de morangos, creme e champagne.
É muita pretensão minha querer analisar o texto de Alexandre, o Delicioso, mas eu tenho que me conter para não cutucar a velhinha sentada do meu lado no metrô e dizer: "A senhora sabia que o Alexandre Dumas é incrivelmente espirituoso, divertido e engraçado?". Chega a transbordar o hedonismo do autor. Como quando ele lamenta o fato de algumas aldeias da Bretanha por onde passou não possuírem nenhum "vinho potável" para servir aos visitantes. Em Pequena história da culinária, que se segue às Memórias gastronômicas... o bom é se deixar levar pelo texto, sem se importar se todos os fatos descritos são rigorosamente históricos ou não, principalmente considerando que o relato começa na maçã de Eva. A graça da prosa é mais importante do que sua veracidade.
Tanto em Memórias... quanto no Grande dicionário... é incrível notar a quantidade de comida e a variedade de bichos que o velho mundo e países de outros continentes pesquisados por Dumas (incluindo os sul-americanos, como o Brasil) costumavam devorar.
"Cardápios magros" como o de Luis XVIII impressionavam até mesmo Dumas, mas as longas ceias, que em algumas residências começava às cinco da tarde e se estendiam por muitas horas, eram comuns. O próprio Alexandre lamentava o fato de que à beira do século XX esse costume estivesse se extinguindo. Começava-se com as entradas, depois partindo para os primeiros, segundos e assim-por-diante-pratos e, para dar uma pausa no meio de tamanha orgia alimentar, serviam-se os entremets, que vinham a ser... mais comida! Depois arrematava-se a refeição com algumas dezenas de sobremesas, frutas e muito vinho. Obviamente isso se dava nas casas da nobreza, antes e depois da queda da Bastilha. Não pense que porque a Maria Antonieta mandou os pobres comerem brioches e perdeu a cabeça alguém (com dinheiro) deixou de comer.
Com relação aos bichos, basta folhear aleatoriamente os 615 verbetes e 400 receitas da edição brasileira do Grande dicionário... para encontrar relacionados como ingredientes culinários: elefante, tatu-bola, burro, grou (um pássaro - aliás, qualquer coisa com penas não escapava da panela naquela época), pantera e cachorro. Dá a impressão de que os comensais da época sairiam salivando se visitassem um zoológico. Porém, mais do que inusitado, o que torna mais divertido o Grande dicionário... é que ele não é um dicionário de verdade. Alguns verbetes são descrições do item em questão, outros são lembranças, passagens curiosas, anedotas envolvendo o ingrediente. Alguns são mais curtos, outros mais extensos. Apesar de Dumas dizer no verbete água que durante 50 anos de sua vida só bebeu esse líquido, o verbete vinho é o que ocupa mais espaço (21 páginas) na edição nacional.
P.S.: Quem quiser ler o e-book do Grande dicionário..., em francês, pode acessar este link, da Pitbook.com. Quem fizer questão da edição original, de 1873, também em francês, e tiver uns muitos euros para gastar, clica aqui.
Quer dizer que Alexandre Dumas era chegado nos prazeres de uma boa mesa... é uma boa saída para as angústias da criação literária, sem dúvida. Que os jovens escritores, em vias de publicar, aprendam a extrair de seus saquinhos de cheetos alguma inspiração extra. Mas o que está realmente delicioso aqui é o texto da Adriana, uma fina iguaria. Abraços!