Acredito que um dos fatores da crise na indústria musical é o excesso de oferta. Quanto mais fica fácil gravar um disco (ou um EP, ou uma música...), mais gente grava (coisa boa e muito, mas muito lixo) e competem por espaço, renda e tempo escassos dos consumidores. Não é a única explicação da crise, claro, mas tem sua "culpa". Digo isso porque compro (principalmente) e ganho muitos discos e demora para ouvir tudo. E muitos dos que ouço gostaria de escrever e publicar algo aqui, assim que o disco sai. Mas não dá. O tempo não dá, o espaço idem. Mas, felizmente, um dos grandes baratos de escrever no Digestivo é a possibilidade de não se ater à tal da agenda - a necessidade de ficar só no momento e "matar" o que ficou para trás. Então, vão aqui discos lançados (ou relançados) entre 2005 e 2006 e que valem a pena serem citados - e ouvidos.
Obs: os 4 discos iniciais foram todos lançados pelo selo Olho do Tempo. Os demais por outras gravadoras. Todos independentes.
Délcio Carvalho - Profissão Compositor
Nascido em 1939, Délcio Carvalho já teve músicas gravadas por Noite Ilustrada, Elizeth Cardoso, Elza Soares, Clara Nunes, Bete Carvalho, entre outros. Seu maior sucesso é "Sonho meu", em parceria com Dona Ivone Lara, com gravações conhecidas de Clementina de Jesus (no disco Clementina, de 1979) e Maria Bethânia (Álibi, de 1978) e registro do próprio Délcio em seu disco anterior A lua e o conhaque, de 2000. Assumo que sua música é excessivamente "bamba" para o meu gosto, um tipo de samba tradicional que não me atrai, bastante característico da Lapa carioca (não à toa há uma foto do arco da Lapa no encarte). Mas o disco é muito bem feito, de grandes virtudes e as composições são bem cuidadas, bem resolvidas, fazendo jus ao melhor da tradição dos grandes sambas brasileiros, da qual Délcio é parte integrante, junto com diversos de seus parceiros no disco: Zé Kéti, Dona Ivone Lara, Agenor de Oliveira, Luizão Maia, Wilson das neves, entre outros.
Ouça "Vou sair daqui"
Agenor de Oliveira - É Banto
Agenor de Oliveira em É Banto também apresenta um samba bamba, mas de forma mais elegante do que Délcio - e aqui não há juízo de valor pró Agenor ou contra Carvalho, é apenas característica de acabamento artístico mais refinado, como bem resume Zélia Duncan no texto de apresentação: "Agenor se revela neste disco com despojamento e sofisticação". O sambista já tem 4 discos gravados: Cabeças, de 1983; Agenor de Oliveira canta Noel Rosa, de 1998; Bafafá, de 2002 e este É Banto. São muito boas as canções, como a faixa-título, "Pode parar", "A dor foi parceira", "A valsa e o piano" e "Meu coração faliu".
Ouça "É Banto"
Eduardo Neves - Gafieira de bolso
Um disco muito bacana. Como o próprio nome diz, é um disco de "música de gafieira"; um som com forte acento de samba jazz, mas com um gingado diferente, propício para dançar a dois - mas não só isso, claro - de influências diversas, com bastante intenção de música latina. A faixa de abertura é também faixa-título e já anuncia a intenção do disco. "Calango do mato" é ótima, assim como "Entre nós", "Putelo não chora", "Damas grátis" e tantas outras.
Ouça "Gafieira de bolso"
Marcos Sacramento e Carlos Fuchs - Fossa Nova
Já comentado pelo Julio, que escreveu tão bem que nem vou me alongar muito. O disco é bom mesmo; denso e pungente, tanto nas melodias e harmonias quanto nas letras - pra que gosta (eu gosto!) é uma ótima pedida. E só de piano e voz. Um refresco pra esses tempos de excesso. Entre tantos, vão meus destaques para "Um brinde à solidão", "Um brinde à palavra", "Rua dos varredores" e "O fim".
Ouça "Um brinde à solidão"
Pierrot & Colombina - Marcelo Quintanilha e Vânia Abreu
Um disco bem sacado e executado com músicas que se referem ao carnaval, rearranjadas para um clima mais intimista e pouco festeiro. Achei no mínimo interessantes os resultados de "Manhã de carnaval" (Luiz Bonfá e Antônio Maria), "Máscara Negra" (Zé Kéti e Pereira Mattos) e "No cordão da saideira" (Edu Lobo). O mais curioso é que é um disco em celebração ao carnaval, mas ao mesmo tempo é, de certa forma, contra a alegria exacerbada da "maior festa brasileira".
Ouça "Manhã de carnaval"
Gisella - Passagem
O encarte do disco conta a interessante história de Gisella - uma cantora de voz não muito grande, mas de um timbre bonito e interpretação segura: abandonou a carreira musical em 1992 para "seguir uma bem-sucedida carreira de executiva na área de comércio exterior". Quis retornar à música em 2003 e começou a planejar Passagem, de 2005, que acabou saindo bastante "mineiro": arranjos de Wagner Tiso e, das 13 faixas do disco, 12 canções (sendo 8 inéditas) são de compositores de Minas Gerais. E o clima do disco realmente remete à música mineira, ao Clube da Esquina, e isso é bom. É um disco muito bonito, bem cuidado, com uma banda ótima: Wagner Tiso (piano e acordeom), Celso Moreira (violão), Zeca Assumpção (contrabaixo), Robertinho Silva (bateria e percussão) e participações de Victor Biglione (violão de aço) e Zé Renato, que canta em "Lira do bem querer" (Celso Moreira e Murilo Antunes). A música que abre o disco, "Azul de passagem" (Flávio Henrique e Márcio Borges), mostra bem o que é o disco, com belas melodias e bastante climática. Outros destaques: "Canto de desalento" (Toninho Horta e Rubens Théo) e "Choro pra Alice" (Celso Moreira e Fernando Brant).
Ouça "Azul de passagem"
Mozar Terra - Caderno de composições
Nascido em 1950, o compositor, arranjador e pianista Mozar Terra tocou com Milton Banana, Caetano Veloso e Lúcio Alves, Joyce, entre outros grandes nomes da música nacional e atuou bastante fora do Brasil, em países como França, Dinamarca e Estados Unidos e Japão. Faleceu em janeiro de 2006. Caderno de Composições é seu último registro e reúne músicas gravadas com diferença de 10 anos: metade das 12 faixas foi gravada em 1991 e outra metade em 2001, ano de lançamento do disco (relançado em 2005 pelo selo Maritaca). Mas isso não compromete o disco, que soa coeso. Todas as músicas são instrumentais (com banda ou piano solo) de alta qualidade, muito bem executadas, que passeiam por diversos estilos da música brasileira. Entre os destaques, "Flor da serra", "Luzes de Vênus", "Ícaro", "Subterrânea" e "Fantasia para Lívia".
Rafael, tive a grata surpresa de perceber que Gisella é a cantora que começou a cantar em um bar que tive em Belo Horizonte (Beco da Lua). Que bom que ela voltou a cantar, pois tem um talento incrível. E, bairrismos à parte, ainda bem que o disco carrega uma carga de qualidade, com influências do Clube da Esquina e outros grandes mineiros. Viva! A música que estou ouvindo: "Azul de Passagem" é linda, linda, mesmo! Vou comprar o CD! Será que ela se referiu ao "Beco da Lua", como início de carreira? Os músicos que a acompanham são todos feras. Parabéns pela escolha. Abraço. Dri
Gostei muito da lista de lançamentos de CDs do Rafael. Muita coisa a gente nem chega a saber, devido à grande distância de uma boa distribuição. Mas aqueles que furam o bloqueio e aparecem mostrando a sua cara, e encontram uma critica real e positiva, vale a pena conferir...