"O repórter não pode se achar maior do que a notícia". Esse é apenas um dos inúmeros ensinamentos que o meu querido mestre, Ewaldo Dantas Ferreira, me legou. Mais do que meu professor de técnicas de jornalismo na faculdade, foi ele quem me educou para a profissão, com palavras e atitudes. Se achava necessário usar uma reportagem sua como exemplo de algo que ele queria nos ensinar, ele contava o milagre, mas nunca revelava o santo. Depois de muito fuçar, questionar, pesquisar - sem internet, que não havia quando estudei - acabávamos descobrindo que o autor da tal reportagem era ele mesmo.
E olha que ele fez reportagens tão fascinantes que poderiam deixar qualquer jornalista vaidoso com muita razão. Alguns exemplos: descobriu o nazista Klaus Barbie na Bolívia e sua reportagem foi publicada em série, simultaneamente, no Brasil e na França; acompanhou a partida da Apollo 11 de Cabo Canaveral; cobriu conflitos armados nos mais diferentes pontos do planeta, como Irlanda, Israel, Angola e Moçambique; foi presidente do sindicato dos jornalistas e liderou a primeira e única greve da categoria; publicou matérias que mostravam mazelas do governo militar com tanta maestria que os censores em sua atividade robótica não conseguiam perceber o conteúdo que estavam aprovando.
Isso tudo serve para mostrar que seria muita pretensão, para não dizer que seria é mesmo ridículo, eu me gabar do meu currículo: primeiro porque ele não chega nem aos pés de quem realmente viveu e experienciou a reportagem, e segundo porque mesmo que ele assim o fosse, eu, repórter, continuaria sendo menos importante do que as notícias que transmito. Jornalista não pode ou não deveria virar marca. Digo isso porque esse texto nasceu de uma conversa por e-mail com os colegas deste Digestivo sobre a experiência nos veículos em que trabalhei até agora.
Aqui do meio da estrada da profissão - porque eu sei que ainda vou ralar muito nessa vida - eu acho que posso, porém, dizer algumas coisas para os colegas que estão chegando. Não são conselhos, são apenas vivências e reflexões que cada um pode aproveitar - ou não - como melhor entender.
1) Eu não sou jornalista - Lembro de um texto que li na época que estava ainda na faculdade, quando comecei a acreditar que pela profissão deveria sacrificar tudo e todos. O texto dizia que em determinada língua oriental, já não lembro qual, não se diz "Eu sou jornalista". Eles dizem algo que seria traduzido como "Eu estou jornalista". Isso porque, naquela cultura, uma frase como "Eu sou jornalista" para eles significaria que você é só isso na vida, nada mais. Você precisa se lembrar, para o bem da sua integridade física e emocional que, além de jornalista, você também é filho(a), pai (mãe), namorado(a), irmão (irmã), amigo(a), tocador de violão nas horas vagas, cantor de chuveiro, observador do tempo passar no banco da praça e muito mais. Acho que isso serve para qualquer profissão. Quem é uma coisa só vive limitado, tende a se achar mais do que os outros, e a acreditar que os seus semelhantes - os subordinados, por exemplo - também precisam deixar seus filhos, companheiros, pais, momentos de descanso e puro ócio merecido para trabalhar sem parar.
2) "Eu sou da Globo, tá legal?" - O comportamento de alguns colegas me lembra aquele personagem do Chico Anísio, o Bozó, que dizia: "Eu sou da Globo!". Passar por grandes veículos, sem dúvida, é interessante: você aprende e experiencia os bons e maus exemplos, coleciona causos e histórias para contar no boteco e para os netos, essa coisa toda. Eles dão currículo, certamente, as pessoas se impressionam muito em saber que você passou pelo veículo X ou Y. Mas veículo grande não é sinônimo de veículo bom, de veículo que faça mais reportagem, de veículo que te faça mais feliz na vida. Alguns são puro pacote bonito sem nenhum presentinho dentro. Hoje eu posso dizer que faço mais reportagem no pequeno veículo onde trabalho do que em alguns dos lugares grandes pelos quais passei.
3) O mundo dá voltas - Hoje você é da grande imprensa, amanhã é da pequena, hoje está na redação outro dia na assessoria de imprensa. Além de passar por vários veículos, também já estive em várias situações profissionais: já recebi convite para ir de um veículo para o outro, já fui preterida em processos de seleção, já estive em lista de corte e já fui demitida também. O que é bom para aprender que ninguém é insubstituível, assim como nenhuma empresa também o é. As empresas sempre tendem a fazer a gente acreditar que porque estamos em um país de economia sempre cambaleante e o mercado de trabalho é diminuto e selvagem, sempre estaremos morrendo por causa desse emprego, lamberemos o chão da redação se necessário e se formos demitidos toda nossa família até a quinta geração será dizimada e eles nos encontrarão pedindo esmola no Viaduto do Chá. Não é verdade: viver várias situações é bom para a gente nunca ficar se achando e também para aprender o princípio básico de cair e levantar.
4) Antigamente era mais fácil? - Nas décadas de 1960, 1970, quando o Ewaldo circulava nas redações, parecia mais fácil fazer reportagem. Ele tinha mais tempo para apurar e procurar as notícias, parecia haver mais vontade, liberdade e criatividade nos veículos. Hoje a reportagem parece estar, se não morta, em coma profundo. Grandes veículos compram fotos ao invés de mandar um fotógrafo cobrir um grande evento, fazem "reportagens especiais" sem levantar a bunda da cadeira, querem pagar uma merreca mesmo que você traga uma matéria da China. Eu já cheguei a ouvir do principal executivo de uma grande revista a seguinte frase, quando questionado sobre se haveria possibilidade de uma viagem para apurar uma matéria: "Para quê? Vocês (repórteres) têm mania de reportagem!". Mas no tempo do Ewaldo tinha ditadura e hoje não tem. Ele sempre dizia nas aulas: "mais do que defender a liberdade de expressão, a gente precisa exercitar a liberdade de expressão". E assim é, hoje teoricamente temos a tal da liberdade de expressão, mas não fazemos muita coisa com ela. Mea culpa, eu digo, não tive ainda a capacidade de achar um caminho diferente para exercer a reportagem como ela merece.
Adriana Carvalho, muito legal você ter citado o Ewaldo e a matéria sobre o Klaus Barbie que ele escreveu, salvo engano no Jornal da Tarde. A idade é uma merda - quando a gente tem quase 59 anos em junho - mas permitiu que eu acompanhasse diariamente as matérias sobre o carrasco nazista. Não perdi um capítulo. Simplesmente inesquecível. Beijos e até sempre. Aurélio Prieto, São Paulo Capital
Adriana, achei excelente o seu artigo e a lembrança do Ewaldo, grande jornalista. Só um pequeno reparo: a categoria entrou em greve duas vezes. A segunda foi em 1979, quando o Sindicato tinha à frente David de Moraes. Um abraço.
Adriana, a questão da reportagem, hoje, é talvez a mais debatida nos cursos de comunicação, entre futuros jornalistas e também no mercado - e, engraçado, é talvez a coisa que mais deixa saudade (mesmo naqueles que nunca fizeram reportagem de verdade) no público e na "ralé" das redações. Toda essa "conversação" me interessa e muito, desde os tempos de faculdade, mas precisaria de bem mais que mil caracteres para explaná-la. É bom quando jornalistas se abrem, da maneira como fazes, e contam um pouco do seu dia-a-dia, da sua vida. Desmistifica a profissão, que é tão massacrada, por um lado, e, por outro, tão mal cuidada por uma leva de profissionais (ou pseudo-profissionais). Com mais tempo, talvez compartilhe algumas idéias por e-mail a respeito disto. Abraços