Um dia, conversando com um amigo meu, ouvi a idéia reveladora: "Ninguém gosta de ler, as pessoas gostam do que lêem". Não concordei, lembrando de que, desde que fui alfabetizada, lia com prazer o que me caísse na mão: romances (bons, ruins e péssimos), revistas (por mais velhas que fossem, e sobre qualquer tema), placas na rua, bula de remédio, manual de instruções, o que aparecesse no meu campo de visão. Desconfio até que ler tenha sido uma terapia involuntária, de tanto que me aliviava nos momentos ruins e me fazia sentir bem nas horas alegres. Ao que meu amigo rebateu: "Mas você não fica lendo aglomerados de palavras jogadas ao acaso, certo? Ou letras combinadas sem sentido. Você gosta de ler palavras formando frases e frases formando textos. No fundo, o que você - e todo mundo - gosta são dos conteúdos, não da leitura". Eu não queria acreditar, porque achava que gostava de ler e ponto final. Mas não é que ele tem razão? Meu amigo, Cadu Elmadjian, é um sábio.
Ler demanda esforço. Toda língua escrita é uma codificação, um sistema de signos. Algumas línguas têm escritas um pouco mais complicadas, como os ideogramas orientais, presentes no mandarim ou no japonês. Imagine o que é aprender a ler em um sistema em que cada idéia tem um signo correspondente! Pode levar toda a vida aprender a ler e escrever. Com todo esse esforço mental que a leitura demanda, reconheço que algumas pessoas serão mais hábeis e rápidas que outras no processo de decodificação. E que quanto menos energia for gasta nele, mais sobra para se gozar do conteúdo. É por isso que se fala da importância do hábito da leitura. Mas duvido que se forme um leitor treinando apenas a habilidade de compreensão da leitura. Isso é apenas uma parte do processo de aprender a ter prazer e dependência dela. Para isso, há que se oferecer o melhor a esse leitor em formação.
Mas o que é o melhor, quando se trata de livros? Há muitas listas "obrigatórias", os chamados cânones. Duvido deles, pelo menos na função de fazer gostar de ler. De que adianta levar os clássicos a leitores que estão a quilômetros de distância da possibilidade de compreensão e entretenimento que eles podem oferecer? Mas listas temáticas podem ser divertidas. Não me atrevo a fazer lista nenhuma, mas convido meu leitor a passear no meio das prateleiras onde estão meus livros mais queridos. Para mim, não há pista melhor de como os livros podem fazer alguém amar a literatura. Vamos lá?
Quando eu era criança - Comecei antes de aprender a ler: minha mãe lia para mim de noite. Olhem só que chique: um dos livrinhos era a Odisséia para crianças, ilustrada, e desde cedo aprendi a conviver com ciclopes gigantescos e mulheres que transformavam homens em porcos, imaginário de que os desenhos de hoje em dia não chegam aos pés. Outro livro muito querido é Longe é um lugar que não existe, de Richard Bach (o mesmo autor de Fernão Capelo Gaivota, vejam só). Esse título é uma frase tão poética que nunca mais desgrudou da minha cabeça, e até hoje acho bonito demais. Depois vieram a Série Vaga-Lume, que li com assiduidade e avidez, e a coleção de Monteiro Lobato. Na primeira, há pérolas, livros para todos os tipos de mini-leitores possíveis. Para citar os mais antigos, O caso da borboleta Atíria e Éramos Seis, que não podiam ser mais diferentes entre si, mas que são ambos livros maravilhosos para descobrir o mundo da leitura. A série existe até hoje, com uma vitalidade impressionante. Um dos últimos lançamentos é Morte no Colégio, do Luis Eduardo Matta, colunista aqui. E Monteiro Lobato, com Reinações de Narizinho e todos os outros livros que vieram na seqüência, que me foram maravilhosos em todos os sentidos. Mas admito que para as crianças de hoje, são chatos e politicamente incorretos. Se você não é mais criança, pode usar essas dicas para adotar um pequeno leitor, dando livros de presente e, o mais importante: lendo junto e tornando isso um momento de prazer.
Leituras de escola - Sempre odiei leituras paradidáticas. Quando você é adolescente, ninguém escolhe por você seus jogos de vídeo-game, seus programas de televisão, suas músicas preferidas e, hoje em dia, nem que roupas você deve usar. Por que, então, a escola se sente no direito de indicar livros? Na maior parte delas, a leitura obrigatória é a mesma para todos os alunos de um determinado ano, mas isso não leva em conta que as pessoas são diferentes e têm gostos diferentes! Isso quando não são livros para o vestibular, em geral muito mal-trabalhados no que se refere a adquirir o hábito de ler e o prazer da leitura. Mas das péssimas escolhas dos meus professores, salvam-se umas pérolas. Uma trilogia é imperdível para adolescentes: A hora do amor, A hora da luta e O diário de Lúcia Helena, do Álvaro Cardoso Gomes,que conseguiu a proeza de fazer livros para adolescentes que não subestimam a inteligência do leitor. A ilha do tesouro e O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson, são clássicos e têm tudo o que um adolescente precisa para gostar de lê-los - inclusive versões recontadas com um vocabulário e estrutura de texto mais acessíveis. É o caso também do Frankenstein de Mary Shelley, recontado deliciosamente por Ruy Castro. E já que estamos falando de monstros e piratas, vale lembrar do Drácula de Bram Stoker - esse sim um livro eletrizante (hoje, livros indiscutivelmente soporíferos são assim descritos pela crítica...). Basicamente, esse foi o "lado B" da minha formação, e se você se interessou, recomendo que não deixe de ler a ótima coluna do Guga Schultze sobre o assunto. No "lado A", eu descobri os autores que iam ser importantes alguns anos depois.
Livros de gente grande - Consigo separar muito bem meu julgamento do que é bom e do que me agrada, e vou lendo de tudo um pouquinho. Mas quem não consome produtos culturais profissionalmente deveria se dedicar apenas ao que considerar agradável. Candidato a leitor, não se iluda! Não há bobagem maior do que se forçar a leituras inúteis e arrastadas de algo de que você não está gostando, principalmente se a motivação for a indicação de outra pessoa. Os livros têm o dom mágico de achar seus leitores quando chega a hora. Por isso, garimpe sempre novidades, experimente coisas novas, mas não se obrigue ao tédio. Os autores que me acharam nos últimos anos foram bem óbvios: Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto (um poeta raro e excelente, muito maior do que sua obra mais conhecida, a Morte e vida severina), J.J. Veiga (que merecia ser muito mais lido), Fernando Sabino e tantos outros, amigos que repousam em silêncio nas prateleiras esperando por mim. Mais recentemente, tive uma surpresa maravilhosa chamada Raduan Nassar. Possivelmente você já ouviu falar nas obras dele, que foram parar no cinema: Um copo de cólera e Lavoura Arcaica. Mas foi por um conto muito breve, muito lindo e muito triste que ele me ganhou: "Hoje de noite". Vale a pena procurá-lo na Internet para ler.
Esses são alguns livros que me conquistaram e me abriram o apetite para muitos outros mais. Mas, no fundo, sabe o que eu queria mesmo? Que você ignorasse essa lista e fosse passear em alguma biblioteca ou livraria, descobrindo o seu próprio cânone - os livros fundamentais da sua vida. Eles estão ali, esperando por você.
Achei ótimas as indicações e ótimo o texto, Verônica. E não se obrigar ao tédio é um dos melhores conselhos que um leitor experiente pode passar para alguém. (E muitíssimo obrigado pela gentileza...) Abraços!
Muito bom seu artigo, Verônica, parece que a idéia do texto estava o tempo todo no meu inconsciente, quando li, deu aquele estalo! Pena que não tivemos os mesmos professores no ensino médio (acho que não) porque não me lembro de nenhum professor pedindo esses livros, mas vou dar uma olhada, preciso voltar a ler alguma coisa (cansei das bulas de remédios hehehe).. bjs
Gostei muito de suas indicações no texto acima e gostaria de saber em que livro está o conto de Raduan Nassar, "Hoje de noite" e como conseguir acessá-lo na Internet. Muito Obrigado, Mauro Gorenstein
Bacana esse texto, não só pelas menções, mas principalmente pela humildade de saber-se não dono da verdade. Estive nesse final de semana na Flap (Festa Literária Alternativa à Parati – nome provisório), e como me assustei com alguns debatedores. Produziam máximas, e acreditavam nelas: “Alguém que começa lendo Paulo Coelho, nunca conseguirá ler algo, sequer, bom!” “Quem não gosta de um Machado, não gosta de ler!” Além dessas, outras que eu precisaria rever anotações para colocá-las de forma fiel.
O primeiro livro que consegui levar a cabo foi Falência das Elites, de Adelaide Carraro - nada acadêmico. Depois me apaixonei por Jorge Amado, Cecília Meireles e Chico Anysio. Clarice e Machado só caíram no meu gosto na maturidade, quando já havia decidido viver de escrita. Num país com tantas diferenças culturais e sociais como o nosso, fico estarrecida quando os que talvez possam exercer algum poder, têm uma visão tão pobre das possibilidades que podem vir de nossa pluralidade. Parabéns.