Em artigo recente na revista Carta Capital, o crítico José Onofre lamentava o atual estágio da literatura mundial. Segundo ele, hoje o que há, salvo raras exceções, "é uma organização das palavras sem o sentimento verdadeiro que deveria estar por trás. Falta aquela sensação que se tem diante de uma casa escura, uma estrada vazia, um cheiro de fogo".
Bem, entre as exceções a essa fraqueza certamente está Marco Lacerda. Pena que esse experiente jornalista que é também ficcionista, por obrigações do primeiro encargo, tenha tão pouco tempo de sobra para dedicar ao segundo. As flores do jardim da nossa casa (Terceiro Nome, 2007, 224 págs.) é apenas seu terceiro livro, precedido por Clube dos homens bonitos e Favela High-Tech, que é o mote de um filme a ser lançado ainda este ano.
Ler As flores... prova-se um interessante exercício. De início, seu subtítulo é "Autobiografia não autorizada". Assim que me chegou um exemplar do romance, porque é assim que a editora o cataloga, tomei a decisão de não ir atrás de saber da vida do autor, para poder separar direitinho o que é e o que não é ficção no livro. Há fatos relatados que, conhecendo detalhes básicos da biografia do Marco, sabemos ser autobiográficos, outros que podem ser autobiográficos, alguns que obviamente são ficção, e outros que provavelmente o são. O melhor remédio para esse jogo, tanto para o leitor como para o resenhista, é tratar o personagem principal do livro como simplesmente "o narrador".
Pois bem. Nas primeiras páginas, o narrador está em seu apartamento em São Paulo, no dia do seu quadragésimo aniversário. Esperava subir alguém chamado Caio, e de repente, da portaria, lhe avisam que um Caio pede autorização para subir. Ele concede, mas o Caio que sobe não é Caio nenhum, e sim um assaltante junto com um comparsa. Ele é feito refém, amarrado à cama. Depois de algum tempo, reconhece um dos bandidos. Trata-se de Benício, de quem anos atrás fora grande amigo, quando ainda moravam em Belo Horizonte.
Então começa o flashback. Enquanto é mantido sob ameaça de morte, nosso narrador vai lembrar de sua infância, juventude e início da vida adulta, que se desenrolam em um Brasil conturbado, aquele dos anos 60, 70 e 80, sem se furtar a generosas descrições do milieu político-cultural em que está inserido. O, vamos lá, Lacerda-narrador, descreve passagens da história brasileira com a qualidade do bom repórter que é.
Seus primeiros anos, passados em Belo Horizonte, foram marcados pela relação complicada com os pais - o pai, um alcoólatra amargurado que espancava a esposa, mas que no começo mostrou-se amistoso com o filho; a mãe, um ser passivo, que acreditava estar nada mais que cumprindo o papel que lhe cabia em uma sociedade que definia o lugar e o enredo a ser seguido por uma mulher, de subjugação, de resignação, de renúncia a qualquer prazer.
Ainda na infância, o narrador tem sua primeira experiência homossexual, sendo estuprado por um garoto poucos anos mais velho. O pai toma conhecimento do ocorrido, leva o filho a apenas uma visita ao psicólogo, e tudo parece ficar entendido entre eles - que aquilo não se repita. Dias após, quando o menino vinha da casa de um amigo e encontra o pai na rua, voltando para casa, bêbado, este lhe alerta: "Só se comete o mesmo erro uma vez na vida". Aquele drama da infância iria tornar-se um elemento a mais no longo e surdo conflito entre pai e filho.
Anos depois, nosso protagonista, já um jovem, inicia sua carreira jornalística meio sem querer, via Estado de Minas. Na Belo Horizonte da época da Ditadura, o mergulho nas drogas e em mais experiências homossexuais, num submundo de hippies e loucos. Foi quando conheceu Benício, que trabalhava como frentista num posto de gasolina apenas para dar satisfação à mãe, e cuja renda vinha mesmo era dos programas que fazia pela noite, com homens endinheirados e de todas as idades.
Como esse vigoroso jovem Benício foi parar, anos depois, como casual assaltante de um ex-amigo? Como e por que ele "não sairá com vida" dessa estória? Sim, porque ele não sairá com vida, somos avisados logo na página 33. Quem ler As flores..., encontrará as respostas.
Quando o jovem jornalista recebe um convite para trabalhar no Jornal da Tarde, de São Paulo, não perde a oportunidade de se mudar para aquela metrópole em constante ebulição. Também lá, presencia repressão, experimenta drogas e mais "sexo proibido", vê a Jovem Guarda que embala jovens e adultos, entrevista Caetano Veloso, vê um show de Ney Matogrosso: "No palco, Ney era uma figura estranha, meio homem, meio mulher, rosto coberto por uma maquiagem que tornava impossível reconhecê-lo de cara limpa. Cantando, mostrava os dentes afiados de fera criada com carne crua. Dançando, era uma mistura de Nijinski e Rodolfo Valentino."
O narrador fará suas primeiras viagens internacionais, primeiro para Cuba, como correspondente de uma revista brasileira de moda, e depois para São Francisco, Califórnia, como aventureiro. Lá, foi testemunha da violência da AIDS, uma praga que diariamente arruinava punhados de vida, e participou de atividades comunitárias e espirituais levadas a cabo por integrantes do movimento zen, o que mudaria sua vida para sempre.
Algo que pode desapontar alguns leitores: umas boas dezenas de páginas lá pelo meio do livro são pura reportagem, com a descrição do Brasil dos anos de chumbo. Isso pode não agradar os mais puristas, que não gostam de blocos de ficção e de não-ficção unidos numa mesma obra. Mas a verdade é que com alguma sensibilidade se compreenderá que tais páginas não quebram, e sim adicionam ao ritmo que Marco Lacerda busca dar à narrativa, que prende a atenção, diverte e emociona muito. E quantos romances com tais características você leu nos últimos tempos?
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Trecho do livro
"Me envolvi com Benício a ponto de me sentir extraviado num destino alheio. Confiava em sua figura maciça, na cara onde sobressaíam um olhar intenso, curioso, e uma barba indomável: mal ele acabava de raspar, tinha-se a impressão de ver uma nova camada de pêlos sombreando-lhe o rosto. Respeitava a autoridade de sua voz em noitadas em botequins de subúrbio, entre ladrões, traficantes, gigolôs, todos garotos como ele, que varavam a madrugada falando aos gritos e ao mesmo tempo, e amanheciam em volta das mesas, cegos pela bebedeira, dormindo com as cabeças penduradas para trás, entre copos pela metade e restos de comida. Sentia-me em casa ao redor desses garotos solitários e brutos, unidos entre si por um elo inconfessável de ternura, a quem as canções sertanejas umedeciam os olhos e davam uma saudade remota do único ser humano capaz de lhes inspirar algum respeito, a mãe. Aos primeiros raios de sol penduravam as mochilas nas costas e se despediam com gestos e frases próprios do grupo, hasta la vista, mano, e desapareciam nos becos fétidos daqueles bairros esquecidos, levando com eles a contradição de sua miséria bem vestida, e só voltavam a se encontrar nas páginas dos jornais, no noticiário policial, onde o cadáver de um deles, mais dia menos dia, aparecia perfurado de balas."