Guillermo Arriaga, um dos convidados da 5ª edição da Festa Literária Internacional de Parati (Flip), colocou em pauta uma discussão - que há tempos andava meio esquecida e que agora parece tomar corpo novamente - sobre a autoria de um filme e o papel do roteirista na construção de uma obra cinematográfica. Escritor mexicano, Arriaga ficou conhecido no Brasil pelos roteiros que fez dos três filmes de seu compatriota Alejandro Gozáles Iñáritu - Amores Brutos (2000), 21 Gramas (2003) e Babel (2006).
A parceria chegou ao fim porque Arriaga não concorda que a autoria dos longas-metragens que roteirizou seja única e exclusivamente creditada ao colega cineasta. "Não concordava em ver Alejandro dizer 'a minha trilogia' porque aquelas histórias já existiam muito antes de serem filmadas, eu as criei", disse o escritor em recente entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura. Autor de três romances - Um doce aroma de morte (acaba de sair no Brasil), O búfalo da noite (lançado no país pela Gryphus Editora em 2002) e Esquadrão Guilhotina (inédito) - e do livro de contos Retorno 201, Arriaga desdenha a alcunha de roteirista, preferindo ser chamado de escritor.
Para ele, um filme não é apenas do diretor ou roteirista, mas de toda a equipe que ajudou a produzi-lo, já que o cinema é uma arte onde o que prevalece é o trabalho em equipe. O diretor seria apenas um dos alicerces da produção, não necessariamente o mais importante. A discussão é bastante antiga e tem fundo ideológico.
Antes de filmar Os Incompreendidos (1959) e inaugurar a Nouvelle Vague, François Truffaut defendia, como crítico da revista Cahiers du Cinéma, um cinema calcado na liberdade do autor (leia-se diretor), desde a concepção do roteiro e filmagens até a edição final. Truffaut, então um dos críticos mais corrosivos e detestados da França, ia contra uma escola cinematográfica em que a influência do roteirista era tamanha, que alguns diretores limitavam-se a fazer apenas o que estava escrito no roteiro, como se fosse uma cartilha. Para Truffaut e seu séqüito, um filme devia ter a personalidade de quem o dirige.
No caso da trilogia de Iñaritu/Arriaga, fica claro que o roteiro é parte essencial dos filmes e que os argumentos são, em grande parte, responsáveis diretos pelo êxito das películas. Filmadas de maneira não-linear, as três histórias são contadas de forma muito parecidas, com vários pequenos dramas correndo paralelamente à narrativa principal. Para quem leu a ficção de Arriaga, os filmes não deixam dúvidas de que ele merece, sim, dividir os louros da vitória com Iñaritu.
Cinema e literatura
É fato que a literatura sempre foi um importante alicerce do cinema, seja ele comercial ou não. Muitos dos grandes filmes da história cinematográfica são adaptações de romances. Pelo menos quatro dos maiores clássicos de Stanley Kubrick, apenas para ficar em um dos grandes diretores de todos os tempos, são adaptações literárias. Lolita (1962) foi feito a partir da obra-prima de Vladmir Nabokov; Laranja Mecânica (1971) é inspirado na narrativa de Anthony Burgess; O Iluminado (1980) deriva do livro de Stephen King; e 2001, Uma odisséia no espaço é um clássico da ficção científica de Arthur C. Clarke.
Muitos escritores também prestaram serviços à indústria do cinema. Talvez um dos mais célebres seja F. Scott Fitzgerald. O autor-símbolo da "Geração Perdida" tentou carreira em Hollywood e chegou a trabalhar no roteiro de E o vento levou. Já Budd Schulberg, parceiro de Fitzgerald, foi o responsável pelo roteiro de Sindicato de ladrões, de Elia Kazan. Schulberg é autor de Os Desencantados, livro inspirado na vida errante de Fitzgerald, e de um romance esquecido chamado O que faz Sammy correr?, em que narra a ascensão e queda de um jovem roteirista de Hollywood. Ambos, assim como o hoje cultuado John Fante, escritor de Pergunte ao pó, emprestaram seus dotes à indústria do cinema, mas sem a pretensão de serem reconhecidos como autores da sétima arte. O objetivo era apenas ganhar o dinheiro dos ricos estúdios. Época em que a classe dos roteiristas atingiu o auge de sua posição devido ao processo de industrialização do cinema, responsável por motivar, em grande escala, a formação de profissionais da área.
Com o sucesso dos jovens autores franceses o roteirista perdeu status e foi alçado a uma posição de menos destaque na indústria do cinema. Hoje dificilmente o nome de quem escreve um filme ganha letras garrafais nos cartazes de divulgação. Mas há exceções. Exemplo de roteirista que conquistou a condição de autor, Charlie Kaufman virou o jogo e fez com que seu nome fosse tão cultuado quanto o de qualquer cineasta de peso.
Autor de obras como Adaptação e Brilho eterno de uma mente sem lembranças, Kaufman usou sua fértil imaginação para criar tramas engenhosas e bem amarradas em que o que vale é a história bem contada e diálogos inteligentes, muito mais do que mil planos-seqüência.
Os trabalhos de Kaufman transcendem à idéia de autoria perpetrada pelos diretores da Nouvelle Vague. Os diálogos de Kaufman e suas idéias pouco ortodoxas lhe garantem a alcunha de "autor", a ponto de as pessoas aguardarem ansiosas pelo seu próximo trabalho.
No Brasil, Marçal Aquino é um dos roteiristas que já ganhou status semelhante. Os roteiros em que trabalhou, na maioria das vezes com o cineasta Beto Brant (O Invasor, Os Matadores, Ação entre amigos e Crime Delicado), têm forte conexão com sua obra ficcional. É um autor que conseguiu levar sua marca como prosador para o cinema. Assim como Arriaga e Kaufman. Mas, como se sabe, são exceções. A maioria dos roteiristas fica no anonimato e seus nomes escondidos entre os minúsculos créditos das fitas.
Porém, o cerne da discussão (quem é o autor de filme?) parece mesmo não ter resposta, já que não há parâmetros exatos que meçam a importância de uma boa história ante um bom modo de se contar uma boa história. Uma coisa está intrinsecamente ligada à outra e não tem jeito. Por ora, o que se tem certeza é que, justo ou não, um filme ainda é do diretor.
Entendo que o roteirista escreve a história e o diretor "conta a história" através das imagens. Se houver dois diretores contando a mesma história, um desconhecendo o trabalho do outro, certamente teremos dois filmes diferentes. Quando me aventurei num curso academico de cinema, o professor de roteiro, excelente roteirista no meu amadoristico julgamento, dizia que um diretor poderia contar mal uma boa hisória, mas dificilmente uma má história poderia ser bem contada por um diretor por mais talentoso que fosse. Não resolve a polêmica, mas indica que os dois pilares, diretor/roteirista, sustentam o filme. Quanto a equipe, não vejo polêmica. Cinema é luz. O diretor de fotografia é fundamental para contar a história através das imagens. Equipe é a base de tudo, mas quem diz onde a câmera vai ser colocada, para contar a história que o roteirista escreveu, é o diretor. E agora?
Existem inúmeras maneiras de fazer um filme, e cada um teria sua resposta diferente. No sistema de Hollywood, por exemplo, o diretor é literalmente um nada. É a peça mais substituível de todas. O roteirista é outro nada: um sujeito propõe alguma coisa, milhões mexem até chegar ao resultado final. A peça mais importante nesse contexto é o assistente de direção, que é quem garante que o filme sai mesmo. Mas também tem o filme em que um mesmo sujeito escreve, filma e monta. Tem o filme em que alguém resolve sair com uma câmera em cima do ombro. E assim por diante. De qualquer forma, cada vez mais o cinema "de autor", aquele que permite ao mesmo tempo as pontas soltas, as imperfeições e as genialidades, é coisa do passado. Não se pode mais brincar e arriscar a perder dinheiro. O controle é cada vez maior, o cinema está cada vez mais entregue a fórmulas. Se ele pode se perguntar quem é o autor, é porque o cinema não quer mais saber de autores.