O grande trunfo dos livros com histórias contemporâneas é que, em certos momentos, nos fazem lembrar de algum fato que vivenciamos ou do qual tivemos conhecimento. Não são poucos os livros assim, porém é raro um livro conseguir ser ao mesmo tempo tão sugestivo e instigante sem perder o realismo, a ponto de nos fazer se identificar com a história, como o livro Meu marido (Record, 2006, 188 págs.), indicado ao prêmio Jabuti deste ano e de autoria da escritora e psicanalista carioca Livia Garcia-Roza.
Livia estreou com o romance Quarto de menina (1995) e além de Meu marido também escreveu os romances Meus queridos estranhos (1997), Cartão-postal (1999), Cine Odeon (2001), Solo feminino (2002),A palavra que veio do sul (2004), também indicado ao prêmio Jabuti, e Restou o cão (2005).
Talvez por ser psicanalista, Livia se sente à vontade tratando dos conflitos que fazem parte do nosso século, como o conflito homem-mulher, que é abordado ao longo do romance pela ótica de uma única pessoa, a narradora Belmira.
Belmira é uma mulher prestes a completar trinta anos de idade que nasceu no interior de Minas Gerais. Oriunda de uma família simples, conheceu Eduardo (o marido que dá título ao livro) numa viagem de visita a uma prima que morava no Rio de Janeiro. Ela é uma mulher estável, tranqüila, que está sempre às voltas com a família interiorana e, principalmente, com o marido e com o pequeno filho Raphael.
Mas a história não gira em torno da narradora, e sim de seu marido. Eduardo é um delegado que tem como sonho frustrado ser pianista de boate e que, ao contrário da estabilidade da narradora, é uma pessoa completamente instável, de humor corrosivo, beberrão e inseguro. A história já começa com ele dirigindo bêbado na volta para casa com a esposa, depois de alguns uísques. Quando ficava assim, não gostava que a esposa dirigisse e nem que abrisse a porta e saía gritando pela rua que era alcoólatra. Belmira narra, ao longo do romance, várias situações em que o marido fica daquele jeito, no outro dia acordando de mau humor e logo saindo para trabalhar.
Durante esses episódios, aos poucos podemos perceber o quão submissa ela se colocava perante o marido, que falava sem parar, não apenas quando estava bêbado, mas sempre que tinha oportunidade, e Belmira apenas ouvia, dizendo umas poucas palavras. Eduardo, aliás, sempre se colocava de uma forma superior à esposa, dizendo que tinha que trabalhar para sustentar a família, sugerindo que o dinheiro dela não servia para nada. Algumas vezes, enquanto falava com ela, proferia palavras de caráter mais rebuscado, logo explicando o significado para a mulher: "Nunca escutou o verbo solancar, não é? Sua expressão revelou ignorância. Solancar é trabalhar arduamente com afinco, em serviço pesado. (...)".
Interessante é que apesar desse jeito instável, Eduardo é um excelente pai. Desde que Raphael estava na barriga da mãe ele já chamava o filho de campeão e cantava para ele o hino do Botafogo, seu time do coração. Sempre fizera de tudo pelo filho, se vestindo de gigante, contando causos da delegacia em que trabalhava e dizendo que era um xerife melhor que os do faroeste, fazendo o filho dar gostosas gargalhadas e se orgulhar do pai.
Apesar de descrever com cuidado o marido, o ápice da história se dá na ausência dele, nas insistentes viagens que Eduardo começa a fazer deixando mulher e filho sozinhos durante um bom tempo. Quando volta, fica pouco tempo e depois já vai viajar de novo. A mulher começa a estranhar o comportamento do marido e o filho chora à noite de saudade, mas a vida segue, com Belmira levando o filho para natação, dando suas aulas de inglês e notando o marido cada dia mais distante. Até que um dia ela começa a receber ligações insinuando que o marido estaria tendo um caso com alguma outra mulher e a partir daí a história muda de rumo e diversos conflitos, que não necessariamente serão resolvidos, surgem na história.
"O tempo passava e eu não ouvia nem via mais meu marido. Nosso casamento devia estar mesmo para acabar, e eu precisava pensar no que ia fazer. Com a vida que ele inventara, estávamos sempre em desequilíbrio, ou eles estavam juntos, ou nós, meu filho e eu, mas nunca mais os três, pai, mãe e filho."
Alguns críticos apontaram certos deslizes que a autora comete no livro, como a mãe interiorana de Bela falar palavras rebuscadas como "longínqua", além de o texto apresentar alguns poemas de rimas pobres como podemos ver na página 14: "Nessa noite, Eduardo demorava para chegar em casa; quando se atrasava, sempre telefonava"; porém, creio que esses equívocos sejam muito pequenos diante da obra em si, em que o mais interessante é a proximidade estabelecida com o leitor. Que mulher nunca ficou insegura por causa do namorado/marido? E que homem nunca se sentiu assim por causa de uma mulher? Essas são situações comuns e cotidianas que tornam o livro tão especial, como se fosse uma narração das entrelinhas da vida, em que a psicanalista ajuda à escritora a construir com audácia um enredo atual e instigante.
Achei o texto muito bom, de muito bom gosto, que faz com que as pessoas que não conhecem o livro ou a autora, se interessem em lê-lo. Como disse a Gabriela, quem nunca ficou inseguro por causa de outra pessoa?