Uma das coisas que sempre me incomodaram na imprensa brasileira é o exíguo espaço dedicado ao noticiário internacional. Quando comecei a estudar política internacional, no começo da década de 1990, isso chegava a me enfurecer, já que era uma época em que não existiam as atuais facilidades da internet e nem mesmo da TV por assinatura, que apenas se preparava para dar os primeiros passos no Brasil. À medida que os anos passaram, compreendi que essa situação está diretamente relacionada às dimensões do Brasil. Somos um país imenso, absurdamente complexo, e, por conta disso, muito voltado para dentro, para os próprios dilemas, desafios e dificuldades, que são inúmeros. O Brasil, pelo menos a mim, passa a impressão de ser um país voluntariamente desconectado do resto do mundo, como se fosse uma excrescência na comunidade das nações; uma terra à parte que, ao mesmo tempo em que se orgulha da sua identidade e das suas características únicas, ressente-se de não pertencer ao clube dos países desenvolvidos, demonstrando uma permanente preocupação sobre o implacável olhar estrangeiro, como se este estivesse sempre prestes a denunciar e ridicularizar as nossas idiossincrasias e mazelas. Por tudo isso, o brasileiro comum sempre encontrou uma enorme dificuldade de observar e, sobretudo, de viver além das nossas fronteiras. As impressões brasileiras sobre o resto do mundo - e, mais particularmente, sobre sua parcela desenvolvida - são historicamente marcadas por uma mescla de fascínio e ressentimento, alimentados por um patológico complexo terceiro-mundista, e uma generosa dose de paranóia.
Há exceções, é lógico. Sobretudo quando essas impressões partem de alguém com inteligência e senso crítico, imune a sectarismos e com a mente aberta para o pensamento e familiarizada com a multiplicidade humana. Era o caso, por exemplo, de Paulo Francis em suas, muitas vezes, demolidoras crônicas publicadas semanalmente na imprensa brasileira. É o caso, também, de Campos de Carvalho nas suas divertidíssimas Cartas de viagem, republicadas, no ano passado, pela José Olympio, e de João Ubaldo Ribeiro nas antológicas Crônicas de um brasileiro em Berlim, escritas durante o tempo em que o escritor baiano radicado no Leblon viveu na capital alemã. E é, igualmente, o caso de Paulo Polzonoff Jr. no seu A face oculta de Nova York (Globo, 2007, 128 págs.), que acaba de chegar às livrarias.
Paulo Polzonoff Jr., titular de um dos mais tradicionais e inteligentes blogs em atividade no Brasil e crítico literário de primeira estirpe, viveu um ano no coração de Nova York, entre 2006 e 2007 e aproveitou esse período para desbravar a cidade. Munido de um olhar atento, sarcástico e implacável, desnudou detalhes interessantíssimos do seu cotidiano que, à maioria das pessoas, certamente, passariam despercebidos. O resultado foi uma reunião de crônicas que, mais do que nos conduzir pela intimidade de uma Nova York despida do glamour de sua fama e de seus cartões-postais, nos abre uma importante porta para a compreensão da nossa própria existência. É como se a face oculta de Nova York revelasse a face oculta que habita cada um de nós, com a qual, por incontáveis razões que vão desde a autodefesa até a ilusão de estabilidade que a rotina nos traz, evitamos nos defrontar.
Isso acontece porque Paulo Polzonoff Jr. não se limitou a descrever mecanicamente as experiências vivenciadas durante a temporada na cidade e, sim, em fazer de cada uma delas objeto de reflexões bastante pertinentes, que fariam um bem enorme a boa parte dos brasileiros. O livro é, para usar um clichê, um balde de água fria tanto nos deslumbrados por tudo relacionado aos Estados Unidos, quanto nos adeptos de um patriotismo verde-amarelo empedernido, que adotam uma indiscriminada postura antiamericana. Uma das primeiras conclusões a que Polzonoff chega, logo nos seus primeiros dias em Nova York, é a de que a vida lá nada tem de extraordinária e que a excitação de se viver na metrópole mais importante do mundo logo é dissipada pelos rigores de um cotidiano que não difere muito do das grandes cidades brasileiras. A percepção de Polzonoff sobre Nova York é ácida e crítica no melhor sentido, embora, em nenhum momento, ele deixe de admirar e louvar as suas inúmeras belezas e qualidades, como a intensa vida cultural, o incomparável cosmopolitismo - que a torna um verdadeiro enclave babélico dentro dos Estados Unidos -, e, sobretudo, o Central Park que, a seu juízo, é o lugar mais bonito de toda a cidade.
O humor também é outra característica marcante do livro e está presente em, praticamente, todas as crônicas, ainda quando ele não é de todo evidente e encontra-se oculto nas filigranas do texto. É impossível conter a gargalhada quando Polzonoff descreve a ida ao lançamento de um livro de Paul Auster, no quarto andar de uma megalivraria em Manhattan. Era uma terça-feira e fazia um frio inclemente de dez graus negativos. Apesar de não ser um grande entusiasta da obra do escritor americano, Polzonoff foi assim mesmo e ao chegar ao local e deparar com o público pretensamente hype que aguardava Auster, deixou a livraria com a mesma presteza, ciente de que "estava no lugar errado".
Também um evento com outro escritor, desta vez Dennis Lehane, autor de romances policiais como Sobre meninos e lobos e Paciente 67, mereceu espaço no livro, mas o que surpreendeu Polzonoff neste caso foi a quase ausência de público e a aparente falta de importância de um escritor de sucesso, que vendeu centenas de milhares de exemplares de seus livros mundo afora e teve uma de suas obras adaptadas para o cinema pelas mãos do mais do que consagrado ator e diretor Clint Eastwood. Praticamente não havia pessoas presentes na livraria, onde Lehane deu uma palestra e autografou algumas poucas cópias de seu novo trabalho, Coronado. Apesar de desconcertante, a ocasião não deixa de funcionar como um consolo para muitos autores brasileiros, eternamente acometidos por uma vaidade desmesurada e por um rancor primitivo, alimentado pela escassez de leitores e pela ausência do reconhecimento do qual julgam ser mais do que merecedores. Pois se Dennis Lehane, escritor consagrado mundialmente pelo público e pela crítica, passou pela constrangedora situação de falar para uma platéia quase vazia em plena Nova York, não será vergonha alguma se o mesmo se der com algum autor brasileiro que, numa sessão de autógrafos ou palestra, for, por uma circunstância qualquer, surpreendido pela baixa afluência de público.
Escrito num texto ágil, fluente e muito bem construído, A face oculta de Nova York é um livro que se lê num só fôlego em menos de uma tarde. Quem esperar da obra um guia turístico cool com pátinas literárias sobre a grande metrópole norte-americana, vai se decepcionar. Embora ele possa, sim, orientar um potencial visitante da cidade a conhecer o seu outro lado - a tal "face oculta" do título - o grande mérito do livro, a meu ver, é nos fazer refletir sobre o nosso papel nos dias de hoje, sobre a nossa pouca relevância, sobre como o nosso ego é capaz de nos iludir, impedindo-nos, muitas vezes, de enxergar a nossa pequenez diante de um mundo vasto, complexo e esmagador. Como bem afirma Polzonoff, Nova York, com a grandiosidade de seus arranha-céus, com o frenesi diário dos seus oito milhões de habitantes oriundos do mundo todo, nos obriga a aprender que não somos importantes. Não sei quanto aos demais, mas essa noção, para mim, é um alívio. Uma benfazeja constatação da realidade, que torna a vida mais leve e menos dramática e ajuda a nos trazer a reconfortante certeza de que somos não mais do que um entre bilhões de habitantes mortais deste planeta que pode, perfeitamente, prescindir da nossa presença.
Gostei do texto, Luís. Fiquei animado a ler Polzonoff. Ele é LPB também? Só penso que Francis não era nada aberto para a multiplicidade humana em sua última fase.
Caro Luis, gostei muito de sua resenha e, apesar de ainda não ter lido o livro, concordo com você em um ponto muito verdadeiro: os brasileiros, em sua grande maioria, veneram os Estados Unidos e não crêem que a vida, na sutileza do dia-a-dia, demonstre um país que também tem seus problemas. As pessoas imaginam que viver nos EUA seja um apogeu. Viver lá é grandioso para se analisar os seres humanos, para se refletir sobre o capiltalismo, as tecnologias, o dinheiro e as aspirações das sociedades. Já fui criticada por, em meu livro, "Como é viver nos Estados Unidos?", apresentar a realidade do dia-a-dia e não a explendorosa imaginação brasileira sobre vida naquele país, mas é essa a nossa função como escritores, trazer aos leitores a realidade. Parabéns!