Que o ensino universitário nunca esteve tão ao alcance de todos desde o governo FHC, todo mundo já sabe. As faculdades particulares pipocaram de tal jeito que basta ter disposição (e coragem) para financiar, em inúmeras prestações, o tão sonhado diploma. E em termos de pagamento de prestações, ninguém é mais fiel do que as classes baixas, como já descobriu o dono das casas Bahia e de outras grandes redes de eletrodomésticos voltadas para o povão e que estão espalhadas pelo país.
A comparação entre as lojas de eletrodomésticos e as faculdades particulares voltadas para o povão, entretanto, termina aí. E termina de forma sórdida: no geral, faculdades particulares são empresas quando querem e formadoras de pensamento quando convém. Já as lojas de eletrodomésticos não têm essa segunda opção.
Como empresa, o funcionamento de uma faculdade particular é simples: abrem-se vagas para um vestibular qualquer; se o número de candidatos não é o suficiente para lotar três turmas logo no primeiro semestre letivo, milagrosamente abrem-se novas vagas e realiza-se outro vestibular. Cada turma deve ter ao menos 65 alunos. Isso dá um lucro bom, já que, dependendo do curso, a mensalidade de cinco alunos já paga o salário de um professor.
Como formadora de pensamento e escondendo-se sob o manto sacerdotal da cultura e da educação, a coisa é bem menos simples: a reclamação de alunos, professores ou qualquer outro ente dessa cadeia capitalista-educacional só tem fundamento para a instituição se ameaçar os lucros da empresa. Se não pesar na conta da pessoa jurídica, que o sujeito se vire.
O ensino superior particular brasileiro se rende, cada dia mais, às exigências econômicas sem nenhum pudor ético. E assim vai sendo ampliada a oferta de cursos que estão na crista da onda. Medicina, Jornalismo e Fisioterapia já eram. E o Direito só "não foi" porque ainda é preciso entender as leis para fugir de impostos e de cobranças, de indenizações e outras coisas que possam atrapalhar o crescimento de uma empresa. A bola da vez está com a Administração, a Economia e todas as variações do mesmo tema: Marketing, Gestão disso e daquilo, Processos gerenciais, RH, Logística e toda uma pataquada de fundamentos teóricos voltados para a velha forma de vida em sociedade: a venda e o comércio.
Há alguns anos, tive o desprazer de ter nas mãos um manual do CDL - Clube dos Diretores Logistas de BH. Era uma espécie de cartilha fornecida aos pobres-coitados que faziam aqueles cursos de vendas. Numa linguagem irritante e artificialmente alegre, o manual listava princípios de uma venda bem sucedida. Segundo a cartilha, um bom vendedor é aquele que não deixa o cliente sair da loja com as mãos abanando. Se o cara entra numa loja de artigos de pesca, por exemplo, em busca de um abridor de latas e a loja não tem isso, deve-se dizer ao cliente que produtos enlatados contêm conservantes que fazem mal à saúde. Daí para convencê-lo a mudar os hábitos alimentares e começar a caçar e pescar o próprio alimento como os ancestrais faziam, é um pulo. O exemplo é exagerado, claro, mas é por aí que a coisa funciona, na base da manipulação escancarada, acreditem. Mas o pior é não admitir essa manipulação e tentar engambelar a todos com eufemismos.
O que me deixa estarrecida é ver que essa lavagem cerebral está saindo das cartilhas e indo parar em salas de aula. Não com essa simplicidade, logicamente. No ensino superior, ela adquire um tom sóbrio e complicado. Na academia, manipulação tem virado "conquista de cliente" ou "oratória". Mesmo revestido de novidade, o óbvio ainda mostra sua face: o que interessa é vender. E os cursos de Administração, Economia, Marketing e todo o resto da família que anda pululando em todas as esquinas ensinam a otimizar o funcionamento da empresa, reduzir custos, fidelizar o cliente etc. E fazem isso tudo com uma tal de "sinergia" absurda. É sinergia pra cá e pra lá, como se empregados, patrões e clientes vivessem em êxtase.
O fato é que há cursos e cursos, faculdades e faculdades. Mas há quem não perceba essa diferença e, quando dá por si, já está dentro de uma sala de aula, lendo livros de auto-ajuda empresarial para aprender a ser um bom líder ou para lidar com pessoas difíceis no trabalho.
Certa vez, observei uma professora de Psicologia Organizacional preparar suas aulas. Ela se desdobrava com os alunos em dinâmicas de grupo, brincadeiras, jogos e mais um punhado de atividades, digamos, lúdicas, para fazê-los aprender que uma boa interação entre os colegas reflete no andamento da empresa. Por que não assumir de uma vez que há colegas de serviço que têm vontade de se matar? E qual é o problema nisso? Não é mais sensato dizer "você não precisa gostar do seu colega, mas resolva suas diferenças fora da empresa. Aqui dentro, é o rendimento que importa"?
Há cursos que iludem alunos dizendo que devem amar seus colegas de trabalho, que os patrões são pessoas ótimas e que a tal Responsabilidade Social não é só mais um engodo. Iludem ainda dizendo que é preciso (e possível) se tornar um líder. Se isso fosse verdade, as faculdades formariam tantos caciques-líderes que seria difícil achar índio dando sopa por aí e aceitando o posto de empregado de uma empresa.
Muito provavelmente, essa legião de estudantes de baixa renda, aspirantes a executivos, continuará pobre e iludida. E nem é preciso muito para acordar desse devaneio: há muitos donos de faculdades particulares que sequer conhecem a área da educação. E é aí que mora o perigo: a educação como comércio.
O mais triste é saber que a maior parte dos alunos/clientes dessas faculdades é formada por gente que ganha uma mixaria num emprego de oito horas por dia, quando não fazem hora extra. Se somarmos duas horas para o deslocamento entre a casa e o trabalho e outras duas para o almoço, é possível perceber que essa gente passa metade do dia engordando o lucro do patrão. E a hora para estudar? Geralmente, de 18h às 7h da manhã. Dormir para quê?
Alguns estudos dizem que 85% dos executivos são infelizes. Isso é uma generalização, claro, mas chega a ser engraçada se pensarmos na quantidade de gente que entra nesses cursos.
Que seja. Se nada der certo, ao menos o aluno aprenderá a publicar e vender um livro de auto-ajuda ou um manual de sucesso empresarial. Mas veja bem: eu disse publicar. Sim, porque aprender a escrever são outros quinhentos. E faculdades a que me refiro não se importam em formar semi-analfabetos.
Muito bom seu texto e suas colocações. Incluo em tua lista de fatores ilusórios o multi mega empresário bem sucedido Roberto Justus, responsável pelo programa de auto-ajuda empresarial "O Aprendiz", que é assistido, em sua maioria, pelas mesmas pessoas de baixa renda que enchem as salas de administração das faculdades citadas. Como resultado disso, é comum as pessoas acharem que todos podem ser executivos de sucesso, sem que para isso seja preciso saber escrever ou desenvolver uma vivência e cultura geral. Basta ser empreendedor e pró-ativo.
Olá, Pilar. Parabéns pelo texto! Escrever deveria ser o requisito mínimo necessário para o ingresso em qualquer universidade, mas já não é. Estudo em uma universidade que está entre as 37 piores divulgadas na última semana e afirmo que a posição é mais que merecida. O aluno que quiser estudar lá precisa apenas ter o ânimo de se tornar devedor adimplente. Se um aluno faz uma prova de vestibular hoje e não passa, pode voltar lá no dia seguinte e tentar novamente e assim sucessivamente. É muito simples. E não precisa iniciar o curso em fevereiro ou agosto. Pode iniciar em abril ou outubro, por exemplo. E são esses que tiveram a infelicidade de estudar em uma época que não se reprova, não se cobra presença e é possível se formar sem saber escrever. Na minha sala, pessoas escrevem “serto”, “umano”... Ah, e se reprovar em Direito Civil I esse semestre, pode continuar o módulo II no semestre seguinte e pagar para acessar a DP pela internet. Se não puder pagar no semestre seguinte, continua e faz quando puder.
Vivemos os dois extremos. De um lado as faculdades particulares, oferecendo algo de qualidade duvidosa. Do outro, as universidades "públicas", que vivem num mundinho à parte, distantes da realidade. Infelizmente, é muito cômodo para todos que tudo fique como está.
Se não me engano (li em algum lugar, há algum tempo) essa "onda" já começou com o criador do Universo, um cara chamado Milton Friedman, da Escola de Chicago (o pai desse tal de Neoliberalismo). Dizem que lá, quando a História já tinha acabado (Fukuyama), nos idos de 1990, já se distribuía fitas cassetes (tipo Shoptime, essas coisas) com programas completos para executivos e governos "enxugarem" suas máquinas — coisa garantida. Tem um outro termo para essa turminha também, os Yuppies. São eles os responsáveis pela "revolução" que estamos vivendo, segundo os próprios. É um mundinho de face sorridente e boboca, mas cheio de caninos raivosos por trás... O pior é que esse linguajar de "executivo" tem contaminado diversas áreas — e a minha área (o jornalismo) é uma das que caiu nessa, com esse mundinho assessoria de imprensa. Tem um autor, o Baumann (O Amor Líquido), que mostra como usamos isso até nos relacionamentos. Dizemos: estou "investindo" nessa pessoa. Dia desses, em vez de namorar, compramos...