Já me perguntaram por que, em meus textos, pareço pegar no pé de autores que praticam pós-modernismos. Pois bem. Eu realmente tenho um problema com isso. Não com a literatura pós-moderna em si — gosto de vários escritores que, mal e mal, se encaixam no rótulo —, e sim com os "truques" lingüísticos e estruturais que às vezes acompanham o gênero. Um trabalho tão excessivo no uso da linguagem que a narrativa em si, além dos personagens, fica em segundo plano. Tanta pirotecnia acaba por tornar o texto vazio, cerebral demais e sem a emoção para fazer um fundamental contraponto.
Eu acho que há um limite. Um ponto imaginário que os autores deveriam mirar: até esse ponto, a experimentação não só é bem-vinda como se faz necessária. O problema é que muitas vezes esse ponto-limite é ultrapassado, o que resulta em obras mais semelhantes a experiências masturbatórias que agradam apenas ao próprio criador delas, não provocando prazer algum no leitor. O leitor. Ele não deveria ser a parte mais importante do processo, afinal? Sobre o ponto-limite, um exemplo: é mais ou menos a diferença entre Ulisses, criativo, cheio de vigor formal, e que também instiga e dá prazer, e Finnegans Wake, ilegível, um mero pedaço de nada destinado a enfeitar estantes sem nunca ser digerido para valer. As obras-primas de Faulkner ou Borges também acertam no ponto-limite.
Em seu primoroso discurso apresentado ao receber o Prêmio Nobel, Saul Bellow, utilizando Joseph Conrad como base, fez uma defesa da literatura de personagens. Bellow atacou Alain Robbe-Grillet, principal artífice do nouveau roman, por proferir que "o romance de personagens pertence inteiramente ao passado". Uma forma obsoleta, a seu ver, mais adequada ao pessoal do longínquo século XIX. O futuro, dizia Robbe-Grillet, era escrever com completa objetividade e concretude. Com ausência completa de adjetivos e total onisciência, como num roteiro cinematográfico (ou um telegrama...). Ao invés de indivíduos, sinal claro do domínio burguês nas letras do passado, entidades. "Coisas". Curiosamente, elegeu Flaubert como modelo. Usar o criador de Emma Bovary, Bouvard, Pécuchet, Frédéric Moreau e Felicité para atacar os personagens: não deixa de ser engraçado.
Inútil dizer que as teorias de que o romance está morto pululam a todo momento por aí. Com cinema, televisão e internet, quem vai ter tempo para se dedicar a uma leitura de 500 páginas? Se isso é verdade, imagine um cidadão médio lendo 500 páginas de um tratado pós-moderno, um daqueles que exigem um guia para explicar a multiplicidade de referências? Eu acho o contrário: esta é uma época propícia para o romance. Ora, não é raro vermos dois ou três blockbusters correspondendo a três quartos das salas de cinema do país. Harry Potter, Homem-Aranha, Shrek, mesmo com suas qualidades: o que dizem sobre nós hoje? Há referências neles, é claro, e o filme dos sempre ótimos Simpsons vem aí para corroborar isso. Entretanto, salvo algumas exceções em outras artes, é a literatura que deveria estar falando sobre a nossa vida, sobre o modo que vivemos hoje. Registrando para as próximas gerações um entendimento do que passou. É por acreditar nisso que critico as tais pirotecnias, nada atraentes a não-leitores. É preciso recuperar o principal aspecto da literatura, o prazer de sermos outros naquelas páginas, e ao mesmo tempo nos vermos ali. Talvez com isso as pessoas não precisassem se entreter com o Second Life... E podem me xingar por isso, mas considero muito mais relevante a edição dos contos "caretas" de Bernard Malamud do que as 500 páginas do "inventivo" novo (e chato) catatau de António Lobo Antunes.
Não estou pregando um retorno à maneira como se escrevia romances há cento e poucos anos atrás. Seria patético escrever como Machado de Assis ou Tchekhov no século XXI. E também não se trata de fazer apenas realismo: a quantos exemplos podemos recorrer de obras alegóricas ou fantásticas que nos fizeram e fazem entender melhor a condição humana? Kafka, Gogol, Rulfo, vários, vários. Em suma, o essencial é atingir o ponto-limite que comentei acima, entre o experimentalismo e a legibilidade, entre o cerebral e o emocional. Uma literatura de sangue, suor, lágrimas — e idéias, pois sim. Amós Oz e Orhan Pamuk dizem muito mais sobre a vida hoje em seus confrontos de idéias literários do que dando entrevistas ou participando de ativismos políticos. A seu modo, ocupam, ou deveriam ocupar, os lugares de gente como Thomas Mann e Dostoiévski no passado. Sabe, a época em que os escritores captaram e influenciaram nossa maneira de ser e pensar (Einstein dizia que Dostoiévski o influenciou mais do que qualquer cientista). Concordo com Harold Bloom quando ele fala sobre Shakespeare ter "inventado" o homem moderno.
E nem é demérito da literatura. Os autores estão aí, falando sobre nós, em termos de política, arte, ciência, filosofia e relações. O problema é que o público não chega até eles. Esse lapso na comunicação faz os apocalípticos repetirem a história de fim do romance. Quem são as "nossas" vozes? Além de Oz e Pamuk, Saul Bellow, Philip Roth, Ian McEwan, Thomas Bernhard, W.G. Sebald, Javier Marías, Kenzaburo Oe, Cormac McCarthy, John Updike, J.M. Coetzee, Ernesto Sabato, José Saramago, Don DeLillo, Juan José Saer, A.B. Yehoshua, Gabriel García Márquez, Imre Kertész, os nossos Raduan Nassar, Milton Hatoum e Bernardo Carvalho — e tantos outros. Não duvido que alguns desses sejam acusados de "ultrapassados" por um leitor moderninho. Ora, para você também não faltam trabalhos que, além da preocupação com uma grande história e de trazer boas figuras humanas, apresentam um meticuloso trabalho formal: Os Emigrantes, de Sebald, Ver: amor, de David Grossman, Os detetives selvagens, de Roberto Bolaño. O equilíbrio entre suor e neurônios de uma linhagem legada por Dom Quixote, passando por Tristram Shandy, Luz em Agosto, Fogo Pálido, Mason & Dixon. Também é importante ser atemporal. Ainda que seguindo o exemplo de Tolstói, de falar sobre sua própria tribo para ser universal. Não consigo imaginar uma narrativa de Alice Munro tornando-se datada.
Não peço com isso que a literatura tome uma posição central na vida humana contemporânea. Pelo contrário. Seu lugar é o da poltrona sob o abajur. Na cabeceira, antes do sono. No ônibus, já que precisamos agüentar os engarrafamentos. Não como pregação política-pública ou um fenômeno coletivo: apenas a transformação particular, pessoal e intransferível que um livro pode provocar com sangue, suor, lágrimas e idéias, diferente para cada leitor. Uma silenciosa e necessária revolução.
O que vou dizer já foi dito por muitos mas não custa repetir: a literatura se faz com boas histórias. Isso, no entanto, não se nota em parte da atual literatura, preocupada em ser "diferente".
Jonas, gostei muito da sua abordagem nessa tema bastante dificil e controverso. No entanto, gostaria de acrescentar que parte do estilo de determinado autor está ancorado na sua fluência, na sensibilidade com os valores do seu tempo, que também é referência importante na análise do contexto de determinados autores e seus escritos. Quando limitamos nossa análise a este ou aquele modelo, estamos ignorando o diálogo daquela visão contemporânea na qual se constituiu o registro do momento e da tensão em que a sociedade vivia naquele momento e não escapou da sensibilidade do escritor. Os modernistas são uma onda que já teve força e atualmente se constitui em espuma. Já teve ótimos momentos e serviu para lapidar em parte inúmeros escritores que você citou que, de certa forma, não ficaram indiferentes a revolução modernista e tudo que se seguiu. Um ótimo texto. Um tema apaixonante que necessita de um diálogo mais intenso em busca das posições diversas e, quem sabe, das riquezas dos contrastes.