Há cerca de um ano um amigo da lida literária, amigo e grande escritor, Leonardo Brasiliense, me convidou para escrever a orelha de seu novo livro, que seria publicado pela 7 Letras. Exultei, seria minha primeira orelha, e comentei isso com ele, que insistiu dizendo que não poderia ser outra pessoa, já que o livro tratava-se de minicontos juvenis e meu estudo acadêmico, sobre minicontos, fora fundamental para seu trabalho. Escrevi três orelhas, ele escolheu uma e o livro saiu ainda no final daquele ano, um livro delicado, sóbrio, inteligente, um livro juvenil que transita sem dificuldade por pais e professores.
Já à época fiquei com muita vontade de resenhá-lo aqui para o Digestivo, cheguei a mencioná-lo no artigo "Pequena poética do miniconto", mas achei que não caberia falar de um livro que, afora ser de um amigo, tinha minha singela participação na orelha. Mas agora as coisas mudaram e me sinto à vontade: Adeus conto de fadas (7 Letras, 2006, 84 págs.) acaba de ser escolhido o Melhor Livro Infanto-Juvenil de 2006 pelo Prêmio Jabuti!
O livro é uma reunião de setenta e duas histórias com mais ou menos cem palavras (às vezes bem menos do que isso), forma ideal para uma geração que está sempre correndo, escreve blogs, assiste videoclipes e odeia coisas "enroladas". Mas o que surpreende é a explosão possível a partir daquelas miniaturas, verdadeiras pérolas pequenas e valiosíssimas.
Dilemas muitas vezes vistos como banais pelos adultos são levados a sério - sem perder o humor - e as histórias deixam transparecer conflitos existenciais e sociais importantes e difíceis: a filha é proibida de ir à festa porque os pais já fizeram muita festa e sabem da bandalheira, a BV odeia o beijo mas adora ter se livrado do apelido, o menino cada vez mais quieto um dia descobriu que não sabia mais conversar, a menina entra na farmácia sob olhar malicioso do atendente.
"Constrangida"
"O atendente da farmácia viu que eu entrei meio sem graça. Sorriu, malicioso. Eram dez da noite, e eu não tinha cara de doente. Ele até olhou para a porta, como procurando mais alguém. Quando cheguei perto da gôndola das camisinhas, o bobalhão desviou o olhar de mim, disfarçando muito mal. Fingiu que arrumava uns folders em cima do balcão, mas sempre com o sorrisinho idiota, que só parou, só se fechou quando pus na frente o pacote de fraldas."
Como se percebe, Leonardo não subestima a inteligência do seu leitor, utilizando com maestria a forma clássica do conto (história aparente/história oculta), ainda que numa forma em miniatura e para um público jovem. Jovem porque os conflitos são preponderantemente juvenis, e diga-se que o autor, casado, funcionário público, meio careca, mergulhou fundo nas revistas e assemelhados para tentar captar esse mundo sempre novo - nenhuma juventude é igual a outra. Mas há algo ali que vai além da juventude e torna-se universal, o que inclusive me fez sugerir, na orelha, que os leitores emprestassem o livro para seus pais e pedissem para eles lerem algumas histórias, como "Casa limpa", "Pesadelos", "Fim de semana na praia". Se inteligentes como o autor espera que o sejam, os pais também vão entender seus filhos um pouco melhor.
"Fim de semana na praia"
"O fim de semana estava ótimo. A turma foi pra casa do Luca, na praia. Só a galera, sem nenhum velho pra atrapalhar. A Vanessa ficou com o Daniel, com o Carlinhos e com o Luca, é claro. A Morgana, só com o Daniel. Rolou de tudo, principalmente cerveja, uma montanha de latinha amassada dentro da churrasqueira. A noite era dia e o dia era noite. E que praia que nada! Quem se interessava por sol e areia? Foi um fim de semana 'de arromba', como diriam os meus pais, porque na época deles já era assim... e acho que foi por isso que me fizeram ficar em casa."
Leonardo Brasiliense, nas entrevistas para a mídia local, revelou-se evidentemente surpreso com o Prêmio. Primeiro por não ser um autor famoso nacionalmente, nem regionalmente (só para se ter uma idéia, o segundo lugar em sua categoria foi o também gaúcho e imortal Moacyr Scliar). Depois, e isso ele tem enfatizado, por ser o miniconto um gênero novo, pouco conhecido e pouco estudado.
Não é exagero, dessa forma, dizer que este Jabuti é, para o Leonardo, em primeiro lugar, a consagração merecida de alguém que quase anonimamente escreve, lê muito, discute com os amigos; é um prêmio para a juventude inteligente, que saberá apreciar as pequenas pérolas, mas é, também, um prêmio para o miniconto enquanto forma, mais do que enquanto gênero, pois não foi na categoria "Conto" que o premiaram, foi na categoria Infanto-Juvenil. Ser mini, desta forma, não é um fim em si mesmo, e sim uma estratégia estética do autor para fazer ficção, seja ela erótica, metalingüística ou infanto-juvenil.
Agora muitos correrão para o site do Leonardo a fim de conhecer seus outros minis, inéditos, quem sabe uma editora comercial finalmente procure o autor e trate-o como merece um escritor com sua qualidade, mas, acima de tudo, aquele apreciador da literatura que escreve suas historinhas, escreve timidamente seus minicontos, verá valorizada sua produção e assim, aos poucos, se criará uma verdadeira linhagem de minis em nosso país, como já há nos países de língua espanhola. Eis o peso de um Jabuti.
Ele não é global, mas é fantástico (sem trocadilho)! O primeiro contato que tive com miniconto foi com o Augusto Monterroso. Ainda procuro o dinossauro no meu quarto, talvez em mim. Conheci também um pouco do gênero e notei o quanto é possível mergulhar profundo em poucas palavras. Estou voltando agora do site do Leonardo (sem fôlego) e gostei muito do que li. Pausa...Pronto. Ótima apresentação, Marcelo. Agora bicho, fica aí que eu vou ler o cara!