O brilho do sangue | Rafael Rodrigues | Digestivo Cultural

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Sexta-feira, 21/9/2007
O brilho do sangue
Rafael Rodrigues
+ de 5600 Acessos

Todo homem, ou a maior parte da espécie, deseja ter total controle sobre a própria vida. Mesmo aqueles que crêem em destino e pouco agem, preferindo esperar tudo acontecer sem nenhuma interferência sua. Não agir é também uma ação. Optar por não decidir é, querendo ou não, tomar uma decisão.

É esse tipo de homem que vemos na maioria dos contos de O brilho do sangue (Record, 2006, 144 págs.), estréia de Diter Stein nas prateleiras das livrarias (não se engane com o nome estrangeiro: Diter é brasileiro, descendente de alemães, nasceu em Petrópolis, em 1952). Um livro de contos que, ao contrário do que diz a orelha escrita por José Castello (crítico que respeito e muito admiro, é bom deixar claro), não pode ser lido como um romance. O fato de um personagem, um prédio negro, estar presente em mais de uma história, não faz do livro uma narrativa única. Nem mesmo o fato de um personagem de um conto lembrar ou mesmo ser o protagonista de outro. As histórias são independentes. Juntas, elas não formam uma só história. Portanto, não podem ser lidas como capítulos de um romance, mesmo que não-linear.

Nos contos, os personagens criados por Diter são colocados em situações, no mínimo, absurdas. Esse "absurdo" pode ser chamado de "fantástico". Mas, a rigor, a classificação dos contos não é relevante. O importante é eles serem bons. E são.

São histórias bem escritas, bem desenvolvidas e que se encerram no momento certo. O conto, ao contrário do que dizem alguns, não é um gênero fácil de ser escrito. Nada pode sobrar ou faltar em um conto. Num romance, as faltas e sobras podem ser compensadas e ofuscadas por qualidades outras em trechos maiores da história. Em uma história curta, é difícil esconder as falhas. Elas são mais fáceis de serem notadas, e qualquer pequeno deslize põe um conto a perder. Diter Stein conseguiu encontrar o meio-termo para todas as dez histórias que compõem O brilho do sangue.

"O gráfico", conto que abre o livro, reúne quatro personagens peculiares. Um Homem, que se comunica por "gráficos, tabelas ou uma curva qualquer que achasse adequada. Ouvi-lo e entendê-lo eram coisas para poucos"; uma Mulher sensual, cujos "pensamentos, idéias e certezas eram suas nádegas e peitos"; uma Menina, "de movimentos suaves e lentos"; e um prédio negro, onde os três outros personagens moram. Um dia, se encontram na calçada e olham, ao mesmo tempo, para o prédio. Esse encontro casual muda a vida de todos. Já o prédio, "continua impassível, no mesmo lugar". É um conto original e bem escrito. Arrisco dizer que foi um dos contos mais "estranhos" que já li. Mas de uma "estranheza" elogiável, pois é notável que o autor se preocupou em bem escrevê-lo.

No segunto conto, "A auditoria", temos contato com um jovem empresário que cometera suicídio. Após sua morte, a empresa que dirigia, herança do pai, é alvo de uma auditoria. O auditor responsável, ao investigar as decisões do jovem empresário, percebe que quase todas foram brilhantemente calculadas, a fim de gerar lucro para a empresa. Mas, a partir de determinado momento, decisões estranhas eram tomadas pelo jovem empresário, e precisavam ser esclarecidas. O fim da história pode até ser decifrado ao chegarmos perto do ponto final, mas o impacto que a auditoria tem sobre o auditor é, talvez, a história escondida do conto.

"O grande crash", história bem mais extensa que as outras, nos apresenta a um homem que, certo dia, resolve deixar a esposa, com a esperança de tornar-se padre. "Não gostava da coisa em si, mas via grandes vantagens. Pelo que sabia, padres não tinham família como todo mundo tem." A justificativa para a mudança radical é a de que ele queria tomar sozinho suas próprias decisões, coisa que já não conseguia fazer, após tantos anos com sua mulher decidindo tudo por ambos. Jamais teria forças para se impor. Ele queria ser só, ser dono de si. E é o que acontece, depois de ir a um mosteiro e saber que não existe possibilidade de ele ser padre. Sua nova vida segue tranqüila, exatamente como ele planejara - ele cria uma rotina, que seguia à risca todos os dias, e até uma espécie de Bíblia, que o ajuda nos momentos mais angustiantes. Até o dia em que conhece Lílian, uma prostituta, e novamente ele precisa agir de maneira radical, ou mais uma vez estará perdido, dependente de alguém.

Outro conto longo, "O médio", é o melhor do livro, na minha opinião. Nele, conhecemos "Ox, o médio": "Era uma vez um homem. Não era bonito nem feio, nem alto nem baixo, nem velho nem moço. Era eficiente, era discreto, era silencioso. Era um médio. Cauteloso, estava sempre atento a não deixar dúvidas quanto à sua imagem de pessoa média." A obsessão de Ox em passar despercebido era tão grande, que preocupava-se até em "não se destacar dos outros médios pelo fato de ser tão médio". O maior perigo, para Ox, eram as mulheres. Constantemente se apaixonava por alguma e a conquistava. Se assim continuasse, não conseguiria ser "médio". Afinal, um sedutor pode ser tudo, menos um "médio". Para tal problema, encontrou a seguinte solução: faria com que um colega de trabalho se apaixonasse pelas mulheres que ele quisesse e o ajudaria a conquistá-las. Dessa forma teria seus desejos realizados, através do colega. Ox leva sua obsessão a tal nível que o outro não faz outra coisa a não ser servir de escape para seus desejos carnais. Até o dia em que isso chega ao fim, e a esperança de um recomeço surge para apenas um deles.

O brilho do sangue é um livro diferente, original. Não há inovações de linguagem ou de estrutura (e precisa?). Mas é um livro peculiar em nossa literatura recente. De qualidade literária difícil de ser encontrada, hoje. Sem floreios ou exageros. Um livro corajoso, porque vai até o limite da criatividade, quase chegando ao nonsense. Mas não chega, pois todas as histórias têm algo a dizer. E dizem.

Uma pena que um livro tão bom não chame tanto a atenção dos leitores nas livrarias. A capa, feita pelo próprio autor, poderia ser mais chamativa e mais bem trabalhada. Aproveitando o título e caindo até num clichê, poderia ser uma mancha vermelha e brilhante, sobre um fundo negro ou branco.

Mas nada que ofusque a qualidade de O brilho do sangue, um livro que merece um lugar especial em nossa literatura.

Para ir além






Rafael Rodrigues
Feira de Santana, 21/9/2007

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