* Em setembro-outubro de 1997, eu escrevi um texto chamado "A Poli como Ela é..." - uma crítica à faculdade pela qual eu então me formava, que acabou indo parar na coluna do Luís Nassif na Folha, e que me estimulou a continuar escrevendo - dando, por conseqüência, origem a uma newsletter (1998), depois a um site pessoal (1999) e, em última instância, ao próprio Digestivo (2000). Nestes anos todos, mantive contato quase nenhum com a Poli, mas o texto continuou vivo por conta da internet - o que trouxe, até mim, e-mails de jovens politécnicos solidários à "causa". Não tenho a menor idéia se as minhas reclamações continuam valendo para a Poli, mas eu achei por bem aproveitar a efeméride - justamente "histórica" na minha guinada para a internet -, a fim de discutir algumas noções (erradas? certas?) sobre ensino superior, vida universitária e formação profissional. Como me frustrei - e a "A Poli como Ela é..." é incontrastável nesse aspecto -, confesso que a universidade, seu lugar e sua função, foi um tema que me perseguiu um tanto, nos anos posteriores. Desde "A Poli...", o objetivo - até aqui - é clarear o caminho para as gerações vindouras.
* Se vale a autocrítica tardia, um erro comum a mim e a muitas pessoas é esperar demais do intervalo de tempo que vai da saída da escola até o início da vida adulta (até o "primeiro emprego", vamos considerar assim). São, em média, cinco anos em que esperamos resolver pelo menos três grandes coisas: as lacunas da nossa formação; as dúvidas vocacionais e a questão do "nosso lugar no mundo" (ou no mercado de trabalho, em tons mais pastéis); e as vastas emoções da nossa vida sentimental. Não há, obviamente, faculdade (ou universidade) que dê conta, sozinha, dessa problemática ampla. Até porque: 1) dadas as quantidades de conhecimento hoje disponíveis, qual formação não será, para sempre, "lacunosa"?; 2) quando a estabilidade se foi, os empregos (e as profissões) não são mais o que eram antes (e as dúvidas existenciais estão presentes como um mantra), quem vai nos mostrar "nosso lugar no mundo", além de nós?; e 3) numa época em que a felicidade deve ser suprema, a "aventura" constante e o prazer sem limites, como não se frustrar se a felicidade, de repente, for parca (ou nenhuma), a aventura não for lá essas coisas e o prazer, simplesmente, fragmentado ou passageiro?
* Se as nossas expectativas são desproporcionais, qual será o resultado do "choque", inevitável, com aquilo que, na faculdade (ou universidade), vamos encontrar? Falando por mim, não encontrei a formação de meus sonhos - se é que encontrei alguma formação (pessoas próximas me consideram "engenheiro" para algumas coisas, mas parece uma constatação mais subjetiva do que objetiva). Ainda na faculdade, não considero que "descobri" minha vocação (nem "por vias tortas"); descobri, no máximo, aquilo de que não gostava, ou o que não me interessava naquele momento, ou, ainda, o que talvez viesse a me interessar algum dia mas não apresentado daquele jeito. Depois, saí e arranjei um emprego (e, depois, outro) - mas me senti eternamente deslocado até "jogar tudo pro alto" e, de certa forma (bem particular, eu concordo), "começar tudo de novo". Hoje, sei que tenho um lugar ao sol - mas a Poli, especificamente, não me deu indicações em que pudesse confiar. Muito menos na minha "vida sentimental". Os politécnicos (e as politécnicas)-padrão atrapalharam meu desenvolvimento nessa área, creio. Se encontrei a Carol (logo depois da formatura), foi por conta de "processos" outros - que aconteceram fora da Poli.
* Continuo reclamando, é verdade, e continuo igualmente longe de enxergar uma solução satisfatória, para encurtar a distância entre o "ideal" (de todo candidato a universitário) e a "realidade" (de toda, ou quase toda, universidade). Naturalmente, não queria estar na pele de professores, chefes de departamento ou reitores. É provável que se tivesse me engajado nesse ambiente (não politicamente, mas profissionalmente), talvez enxergasse melhor o papel de cada um (os alunos também têm o seu, é claro) sob um prisma menos teórico, menos ligado à minha experiência (não exatamente bem-sucedida) na Poli e, portanto, mais proveitoso para todas as partes. Tentando agora evitar a generalização, a leviandade e a arrogância, solidarizo-me com os "acadêmicos" (as aspas são para soar o menos pejorativo possível), como profissional do conhecimento - numa era em que a informação não está mais concentrada em nenhum "lugar", não é mais "propriedade" (ou privilégio) de nenhum grupo e, logicamente, coloca desafios para todos.
* No meu tempo de Poli, o approach "de cima para baixo" de professores, chefes de departamento e até de reitores (com quem tive algum contato) nunca me cheirou a boa coisa - hoje, se continua, é algo totalmente anacrônico. Num país em que a educação ou é inexistente ou é falha, o diploma universitário continua valendo mais para fins protocolares - na prática, não é, numa "crescente" conforme o tempo passa, garantia de nada. Se as universidades não serão mais "ilhas de conhecimento", nem o diploma uma espécie de salvo-conduto para poder trabalhar, então precisam, urgentemente, se reinventar. Se na minha época de estudante universitário, eu sentia que não era ouvido e que freqüentemente estava falando com as paredes, hoje, paralelamente, ainda constato que os acadêmicos mantêm uma distância regulamentar da vida social (real?). E penso que frustrar levas de estudantes, soltar papers no vazio e produzir artiguetes para a mídia impressa (ou regurgitar comentários como "especialistas" na-hora-do-desastre) seja muito pouco para quem se julga, normalmente, tão importante...
* Nunca dei aulas (nem estou me candidatando, por favor), mas não tenho, evidentemente, ilusões quanto aos "estudantes" - até porque me lembro bastante bem de meus colegas. "Diálogo de surdos" é uma boa metáfora para a "conversa" entre as duas pontas. Quando entrei na faculdade, o mercado estava, coincidentemente, descobrindo o "jovem" como consumidor, e rapidamente começava a colocá-lo num pedestal. De modo que chegamos ao "ensino superior" depois de muita adulação, cheios de idéias próprias sobre o que deveriam nos ensinar e "armados" para rebater contrariedades com críticas salvadoras (preservando sempre a nossa posição). A primeira metade da década dos 2000 não foi tão pujante quanto a primeira da década de 90, mas não tenho esperança de que algo tenha "melhorado". (Falo da postura do jovem de hoje.) Com o sistema ruindo em muitos aspectos - vide a decadência dos antigos "players" da economia cultural (pense, por exemplo, na indústria fonográfica) -, é bem provável que o jovem se sinta ainda mais poderoso do que antes. (De novo, não queria estar na pele de professores, chefes de departamento, reitores...)
* O agravante - meus colegas de jornalismo (que dão aulas) me contam - é a chamada "mercantilização" do ensino. Eu - exemplo recorrente aqui - estudei na USP: reclamava um bocado, mas podiam perfeitamente objetar que eu não deveria reclamar (pois não pagava). Eu não ia necessariamente concordar, mas era um fato ("de cavalo dado não se olha os dentes", não é isso que dizem?). Hoje, para completar, além das crises existenciais de qualquer "profissional do conhecimento", além da prepotência do jovem estudante cercado de "opções mais interessantes", há que se enfrentar a relação cliente-prestador de serviço. O cliente é quem paga a "mensalidade" (o estudante); e, no limite, o "produto" - que, espera-se, seja entregue sem sobressaltos - é o diploma. Se o cliente sentir que está sendo prejudicado - na realização de seu objetivo maior -, pelo prestador de serviço, vai reclamar; e o que será sacrificado, conseqüentemente, é o nível do ensino. Em outras palavras: a autoridade - de quem antes dava formação - agora é subvertida pela força de quem paga a conta.
* E se acadêmicos e estudantes, segundo a minha lógica, têm a sua parcela de "culpa", existe uma tradição muito forte no mercado de trabalho de fazer "tábula rasa" dos conhecimentos previamente adquiridos, mesmo os mais técnicos e de aplicação menos "questionável". Talvez nasça daí uma reação, por parte da academia, de frontalmente contrapor as "exigências" do mercado com um currículo mastodôntico. Ou seja: se estudantes e professores pouco conversam sobre seus anseios e aspirações, a academia e o "mercado" conversam menos ainda. A resistência da primeira é mais orgulhosa que estóica (ou digna de admiração), e termina por afastá-la, ainda mais, da sociedade a que ela, supostamente, "serve". (Raciocínio quase automático: se você não gosta do seu curso superior, espera, pelo menos, que ele te prepare para o mundo exterior - então, qual não será a sua surpresa quando descobrir que, ignorando as demandas do mercado, nem isso ele faz?)
* Para não dizer que não falei das flores, às vezes encontro a academia mais "aberta", e menos "conservadora", em relação as "novidades" do que o próprio "mercado". O mercado - quando confrontado com o novo (com o jovem, se quiserem trocar a palavra) - teme ser condescendente demais, e ceder distraidamente posições. A academia, por outro lado, não se sente ainda ameaçada (possivelmente porque, no Brasil, o negócio do ensino superior siga em expansão...). O mercado não pode "errar", porque, se erra, "perde"; já a academia deve errar (tentando...), até porque faz parte da sua "dialética". Pode soar como ranço paternalista esperar - como estudantes esperamos - que a academia resolva nossas contradições internas; mas, na linha do tempo, essa fase é a "última chance" para arriscar sem perder muito. (Os jovens estão trilhando novos caminhos, cabe à academia compreendê-los, devolvendo-lhes sentido - antes que o mercado devore-os sem que realizem suas potencialidades...)
* É incrível mas, algumas vezes, ainda pensei em voltar a "estudar". Por questões de tempo (e de atribuições diversas), nunca me foi possível. (Embora eu aprenda sempre; e minhas "pesquisas" não cessem jamais.) Como um resquício - análogo ao cristianismo, de nossa primeira formação (Nietzsche) -, parece que vamos continuar acreditando, ainda por muito tempo, que o "verdadeiro" conhecimento está nas universidades, e que só é possível desfrutar dele atravessando as malhas do "ensino superior"... E, por essas e por outras, continuaremos preocupados com os "destinos" dos estudantes e dos cursos superiores... Pelo que vimos aqui, é atribuir muita responsabilidade a uma "instituição" que passa por tantas transformações e que tem, em seu cerne, graves problemas. (Quando me convidam a falar aos estudantes, eu sempre aceito - porque obtive insights valiosos em eventos "off". Meu conselho é: não esperem nada, arregacem suas mangas, ninguém virá nos salvar.)
O que mais me impressiona nessa história toda sobre o Ensino Superior é a falta de agilidade das instituições em absover as mudanças do tempo atual. Como me formei em Direito, posso dizer que a maioria dos temas tratados no curso é prosaico, sem aplicação na realidade. Por outro lado, as Faculdades que cuidam especificamente das inovações exageram e acabam transformando o curso numa verdadeira doutrina pura, descarregando conceitos pré-moldados. Não há meio termo nessa história, nem sequer discussão. Estamos numa realidade repleta de Rui Barbosas, populistas, tempos de Fla x Flu monetarista, completamente distante do mundo social. A única discussão é: Universidade precisa dar lucro? Ah, como disse no jornal de ontem um sujeito de uma associação de universidades particulares sobre o resultado pífio delas no exame da OAB, no Estadão, "Formamos um ser humano melhor, mesmo que ele não exerça a profissão. Por que um taxista não pode ser bacharel em Direito?". Preciso dizer mais alguma coisa?
Ninguém vem nos salvar mesmo. Algumas pessoas até "nos salvam", sem querer, porque surgem em nossa vida. De algum modo se tornam significativas, nos afetam e transformam para melhor, mas não necessariamente vieram para isso. Julio, está muito bom seu texto, desabafo, reflexão sobre educação "superior" e as expectativas aí depositadas. Cada vez se exige mais dos alunos, profissionais sem lhes oferecer condições para corresponder ao exigido. O saber valorizado não é o vivencial e criativo, e sim o tradicional, estabelecido e aceito como verdadeiro, que servia a quem o construiu, ao tempo e situações em que foi descoberto ou inventado. O próprio termo "educação" se reporta a um saber imposto, transmitido como adequado a se aprender-memorizar e propagar. Educar também significa adestrar, é isso que as escolas e universidades fazem, porque o intelectual curioso, criativo e desconfiado das certezas cunhadas por outros é considerado perigoso, uma ameaça à ordem das coisas postas, podendo gerar instabilidade.
Continuando, não há espaço pra muitos desses seres no mundo, que funcionam à base de hierarquias, de acordo com o domínio e o uso de uns sobre outros. A insatisfação só pode ser geral, com muita crise nos afetos e na própria existência. Não estou defendendo que não existam regras e respeito a elas, ou que criar novos conhecimentos seja uma obrigação, não. A educação deve ser resultado de um processo, mais fácil de ocorrer quando se instiga a criação, quando se cultiva a dúvida e se informa o aluno a respeito do modo como os saberes são constituídos. Deve-se deixar claro que o saber escolar/universitário não é o único e nem o melhor, apenas um tipo, certamente importante, de conhecer e saber, voltado mais para o mundo do trabalho do que para a vida.
Julio, parabéns pelo texto. Traduz muita coisa a muita gente. Eu entrei no Jornalismo como opção de última hora, mas gostei desde o início. Aprendi muito, fiz amigos que mantenho até hoje, aproveitei biblioteca, recursos, laboratórios, expandi horizontes. O baque veio com a entrada no mercado, feito de falhas, de erros grosseiros, de gente despreparada (e que se acha preparada), de salário baixo (o maior motivo de desânimo). Tanto que tem gente que tá se agarrando, como pode, à universidade, tentando ser docente, porque é ainda uma das melhores remunerações (e uma vida mais tranqüila). Redação é coisa pra recém formado, disposto a se esgotar em dois anos. Depois passa pra assessoria. Até tentar um negócio próprio, migrar de ramo, virar vendedor, enfim. Atualmente curso pós em Fotografia, com foco na docência e pesquisa, por interesse e gosto, embora o caminho das pedras seja longo e dolorido (passa por indicações, puxa-saquismos, etc., a gente sabe)...
Fazer pós em foto, num país onde fotografia ou é sinônimo de publicidade ou, pior, de casamento, comunhão e aniversário, não deixa de ser um suicídio financeiro. Querer atuar academicamente nisto, ainda mais; pode parecer coisa de idiota... Qualquer amigo que foi para a área de automóveis, vendas, aluguéis ou administração, certamente gargalharia na minha cara. Mas, enfim, a gente quer sonhar, quer encontrar uma luz no túnel que não passe, necessariamente, por certas engrenagens do mercado... mesmo sabendo das conseqüências. Com quem atua na academia, acaba acontecendo o mesmo. O ranço para com "o mundo lá fora", às vezes, é mais uma necessidade de carapaça, de se saber protegido, porque se conhece as dificuldades... E o fato é que conhecer, num sentido amplo, não faz viver melhor (às vezes, conduz ao fundo do poço). É mais uma questão de "esperteza", malícia, sorte e outras coisas indomáveis...
É muito bom que formados continuem pensando no ensino superior, como você faz nesse artigo. Um problema da academia brasileira é a falta de contato com os profissionais que passaram por ela.... Nem a universidade tenta escutá-los, nem eles tentam falar para a universidade. Coisa relacionada ocorre com as empresas, que preferem aplicar testes seletivos irrelevantes aos formados do que olhar para o desempenho dos candidatos na escola. Sem feedback de quem já estudou, a universidade perde sua ligação com o mundo.