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COLUNAS

Terça-feira, 6/5/2008
Rubem Braga e eu
Rafael Lima
+ de 14600 Acessos

Nos anos em que acompanhei, trepado no cangote, a coluna semanal de Millôr Fernandes para o jornal O Dia, só o vi abrir a página para reverenciar morto uma vez: em 1995, nos cinco anos de falecimento de Rubem Braga. Conheci Rubem Braga a vida inteira. Li Rubem Braga a vida inteira. Não tem ninguém que eu tenha admirado mais do que Rubem Braga, dizia Millôr.

Rubem Braga não foi só capaz de arrancar uma declaração dessas do Millôr. A narrativa de sua vida, convertida na biografia de Marco Antonio de Carvalho, Um cigano fazendeiro do ar (Globo, 2007, 592 págs.), arrancou do exigente Daniel Piza a entrada na lista dos melhores livros do ano.

Há pelo menos cinco anos eu ouvia falar nesse livro ― quem me contou foi o Bruno Garschagen, logo depois de se mudar para o Rio; o Bruno era amigo do autor e está incluído na lista de agradecimentos. A própria história da feitura daria outro livro, no qual o autor se endivida duas vezes, cruza o país de cima a baixo atrás de entrevistas, se enturma com os amigos sobreviventes de Rubem e descobre algumas histórias imperdíveis.

Lembro especificamente do Bruno me contando, às gargalhadas, do convite feito a Sérgio Buarque de Holanda para ir a Cachoeiro do Itapemirim iniciar um jornal. Sérgio já era um intelectual de renome, sem ter escrito Raízes do Brasil, e ficara conhecido como Doutor Progresso. Mas ao chegar em Cachoeiro, caíra de amores pela cachaça local; e o jornal, nada de sair. Bruno também viera de Cachoeiro, sem que tivesse nascido por lá, o que talvez corrobore aquela história que a Lucia me contou, segundo a qual Cachoeiro do Itapemirim é a capital secreta do mundo. Quando você descobre que, além de Rubem Braga, Roberto Carlos e Carlos Imperial vieram de lá, uma teoria da conspiração imediatamente se forma.

Mais de uma vez tentei arrancar alguma história do Bruno, durante aquele período em que o livro estava pronto mas ainda sem editora, só que ele se negava a contar, no máximo dizendo que "o Rubem não era fácil". Castigo: Bruno foi morar em Lisboa, perdeu o lançamento no Brasil ― e eu acabei lendo o livro antes dele. Quando a gente se esbarra na internet num desses programas de conversa em tempo real, o assunto é invariavelmente a biografia.

Li resenhas que se queixavam de o livro dedicar muito espaço à infância de Rubem e a Cachoeiro, como se o escritor não tivesse feito de lá um dos principais assuntos de suas crônicas, e infinito de sua nostalgia. A mim, chamou atenção a extensa parte que cobre a década de 1930, período de formação pessoal e descoberta, quando Rubem publica seu primeiro livro, O Conde e o Passarinho. E um grotesco painel político que misturava integralistas, fascistas, comunistas e tipos insólitos como Alceu de Amoroso Lima, Jackson de Figueiredo, Cardeal Leme (hoje nome de prédio da PUC-Rio), Carlos Lacerda (então comunista), Luis Carlos Prestes, Getúlio Vargas, Lourival Fontes (chefe do serviço de censura), Jorge Amado e, correndo por fora, o cangaceiro Lampião. Exatamente o painel no qual Rubem Braga encontrou seu lugar, xingando integralistas e brigando com comunistas, num sectarismo que afastava ate amigos de longa data, como Moacir Werneck de Castro. Precisamente o mundo que meus avós encontraram, no Rio de Janeiro; lendo a biografia de Carmen Miranda, escrita por Ruy Castro dois anos antes, não se tem idéia do que acontecia. Não é preciso entender de política para acompanhar o surgimento dos artistas do rádio e do samba, mas sem essa compreensão não se entende o porquê das acusações de americanização que Carmen sofreu. Ruy não ataca o problema pela raiz. Marco Antonio, sim.

É nesses momentos que o livro cresce, e junto com ele a figura de Rubem Braga, já no capítulo de abertura, que narra sua participação como repórter de guerra, surpreendente pelo jogo de cintura e iniciativa que demonstra, sobretudo para alguém cujos movimentos morosos valeram o apelido de urso.

Estão lá suas poucas frases célebres ("Ela melhorou de marido mas piorou muito de estilo", sobre o segundo casamento de sua ex-esposa com o também escritor Antonio Olinto). No período como correspondente de guerra, na Itália, ao constatar a diferença de fuso, disse: "o Brasil é muito atrasado mesmo, enquanto na Itália é de tarde, no Brasil ainda é de manhã". Pensei muito nessa frase ao me mudar para a Austrália, 12 horas a frente...

Sem se ater a detalhes bastante banais nas biografias que andam se popularizando no Brasil, do tipo listar onde foi a primeira vez do biografado e com quem, Marco Antonio preocupa-se em revelar os motivos que levaram Rubem a se tornar embaixador no Marrocos (indicação de Jânio, por quem nutrira confiança) e no Chile (um favor de Café Filho, amigo de tempos mais duros) ou a se mandar para Porto Alegre: um caso que terminara em gravidez com Bluma Wainer. Aliás, é estranho o padrão que Rubem desenvolve ao longo da leitura, sempre se envolvendo, ou tentando se envolver, com mulheres casadas: Bluma, esposa de Samuel Wainer; Tônia Carrero, esposa de Carlos Thiré; Ligia, esposa de Fernando Sabino e Danuza Leão só não entrou nessa lista por conta da abissal diferença de idade. E por mais extraordinário que seja o capítulo que esclarece o caso com Tônia Carrero, já que por décadas o que se dizia é que havia somente uma amizade entre eles e uma nunca consumada paixão platônica, o melhor é que a história começa com uma carta a um amigo comum, com todo o jeitão do estilo de Rubem, e no final a assinatura revela: Newton Braga, o irmão. Fora Newton quem primeiro se mudara para Belo Horizonte, estabelecera uma base de amigos e arrumara o primeiro emprego como jornalista de Rubem. O emprego no qual o irmão mais novo praticamente recriaria o gênero da crônica e conheceria os amigos ― do irmão mais velho ― que seriam seus amigos, décadas depois. Newton era o verdadeiro Rubem, segundo Carlos Lacerda.

Tem mais. Quem comprou o livro atrás de folclore envolvendo literatos não sairá decepcionado; eu gosto especialmente do período em que Rubem Braga convive com Graciliano Ramos numa pensão no Catete. Rubem recém-casado, duro e liso; Graciliano ainda careca do termo despendido como prisioneiro na Ilha Grande. Juntavam-se no quarto para beber cachaça e papear; naquele ambiente zoeirento, Vidas Secas foi escrito. Rubem ficou conhecido toda a vida por seu jeito arredio, caladão, mal-humorado; Graciliano foi notório por sua secura, rispidez, mal-humor. Certa feita Joel Silveira levou-lhe um conto para avaliação. Graciliano leu de cima a baixo e, sem emitir uma única palavra, rasgou o papel em pedacinhos. Ou seja, deram-se, Rubem e Graça, incrivelmente bem. Mesmo que de vez em quando Graciliano pesasse a mão:

"... certa vez, grávida, Zora escorregou e caiu sentada em um dos degraus da escada. Não chegou a sequer ser um tombo, mas ainda assim Graciliano avisou a Rubem: Minha primeira mulher levou um tombo desses. O bebê não nasceu nem no nono, nem no décimo, nem no décimo primeiro mês. Saiu um bolo cheio de vermes. Tá bom, Graça, não conta isso pra Zora, pediu Rubem. Graça contou."

No pós-guerra, finda a ditadura de Vargas, os tempos eram de tal otimismo que escritores e artistas até se permitiam disputar uma pelada nas areias da praia. Fernando Sabino já contara essa história, mas nunca como aqui:

"Nos fins de semana, Rubem se reúne com os amigos, todos intelectuais e boêmios, em peladas onde sobra entusiasmo e faltam técnica e fôlego. Num desses jogos, Di Cavalcanti foi o goleiro do time, baixinho e gordote, e não aceitava gols do adversário: afirmava que as bolas passavam por cima de uma inexistente trave. Vinicius, conhecido na roda como Menisco de Morais, alegava uma séria contusão aos dois minutos da porfia e saía célere em direção às senhoras que assistiam ao jogo. E Schmidt, gordo, suarento, ao dar o pontapé inicial em um dos prélios, caiu na areia ― levando a interrupção da partida para que os adversários pudessem recuperar o fôlego de tanto rir. Braga, zagueiro enérgico, deu uma traulitada no único bom jogador ali atuando, um médico, o que deixou a todos encabulados."

Melhor só mesmo essa eleição de diretoria da Associação Brasileira de Escritores:

"As discussões se tornaram tão violentas que, ao final, Drummond e o romancista paraense Dalcídio Jurandir se engalfinharam ('um puxa de cá, outro de lá ― uma cena engraçadíssima, dada a escassa musculatura de ambos', contaria Moacir Werneck de Castro, mais tarde, ele próprio um cavalheiro) em torno da posse do livro de atas.

Mário Pedrosa atacava violentamente os fascistas, os comunistas, os liberais, a todos, enquanto José Lins do Rego berrava: 'Abaixo os comunistas! Abaixo os comunistas!', até ver a cara zangada de Graciliano Ramos sentado pouco atrás: 'Não é com você, não! Não é com você, não!'. Logo depois, Rubem agarraria o disputado livro de atas: 'Não sou contra vocês porque são comunistas: é porque são burros! Burríssimos!'
(...)
Graça levantou-se e se dirigiu à porta do salão. Esperou que a atenção se voltasse para ele e então berrou: 'Vão todos para a puta que os pariu!'"

Marco Antonio de Carvalho investiu dez anos de sua vida nessa biografia, a ponto de, como ele cita nos agradecimentos, começar a tomar como pessoal qualquer menção a Rubem Braga que encontrava na imprensa. Curiosamente, não era um apaixonado por crônicas e tinha em comum com Rubem Braga pouco mais do que ter nascido na mesma cidade. Deixou que o projeto do livro tomasse conta de sua vida, encarando-o com a disposição de quem resolve um trabalho de Hércules.

Não viu o livro ficar pronto; sucumbiu a um ataque cardíaco meses antes do lançamento.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no seu blog Na Cara do Gol.

Para ir além






Rafael Lima
Perth, 6/5/2008

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