COLUNAS
Segunda-feira,
5/3/2001
Baco está vivo e faz 4000 anos
Rafael Lima
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Na quarta capa do livro "Quatro Peças de Tema Grego" está escrito, bem nos moldes das edições da José Olympio daquela época: "Gregos com alma carioca invadem o teatro". O livro é uma coletânea de peças de Guilherme de Figueredo, entre as quais se destaca "Um Deus Dormiu Lá em Casa", texto mundialmente traduzido, encenado no Kremlim e na China, que transformou Mariinha Portocarrero em Tônia Carrero e provou a Paulo Autran que ter largado o Direito tinha sido uma opção correta. De tudo isso eu sabia quando abri o livro. O que eu não sabia é que já na década de 40 havia alguém emprestando bossa aos mitos gregos, ao juntar elementos clássicos e modernos.
Achava que era absolutamente original a idéia de Eddie Campbell, ao resgatar o deus grego Dionísio, Baco para os romanos, em inglês Bacchus, para protagonizar suas histórias em quadrinhos. Neil Gaiman já tinha utilizado divindades de um sem número de mitologias em Sandman, e ainda que as tratasse como pessoas normais, sempre deixava uma aura de reverência pairando sobre cada um deles. Inclusive porque ninguém vai se meter a bancar o engraçadinho com alguém que dispara raios de energia pelos dedos. Stan Lee, na década de 60, tinha trazido toda a família nórdica para a Marvel, transformando Thor, Loki e outro chifrudos em super-heróis, com uma linguagem teatral muito inusitada para algo tão pop como quadrinhos. Mas nenhum deles conseguira alcançar o equilíbrio de Eddie, ao retratar aqueles outrora tão poderosos seres, agora envelhecidos, decadentes, humilhados. Humanos.
Na primeira página da primeira história de Bacchus, um meliante dialoga com um velho imenso trajado como um velho lobo do mar, de quepe e tudo, com uma quantidade imensa de rugas - pense no rosto do Marlon Brando de Apocalipse Now! rasgado pelo vento e pelas marés -, vizinho seu de cela na cadeia: "Por que cê veio parar aqui, ô coroa?" "Bebedeira e baderna" "Ha ha ha....Você parece velho o bastante para saber como é" "4000 anos chegam?" "Qual é o seu nome, falando nisso?" "Baco, o deus do vinho" "Vocês deuses não eram imortais?" "É mesmo" "Então como é que você ficou tão acabado assim" "Muito vinho, mulheres e música".
Nas próximas páginas o leitor descobre que apenas alguns dos então nobres heróis e deuses gregos (Hermes, Teseu, ou melhor, Joe Theseus) ainda estão vivos - não é por acaso que o título é Imortalidade Não é para Sempre - e sofrem as conseqüências de querelas e mal-entendidos começados há 4000 anos. Exatamente essas rixas primordiais, além de lendas e desencontros clássicos são inseridos em flashbacks onde se conta, por exemplo, como Zeus perdeu todo seu poder para The Eyeball Kid, um ser de 10 pares de olhos, filho de Argus, o monstro de 1000 olhos, que seguiu uma carreira de fora-da-lei ao longo da História, ganhando esse codinome no Velho Oeste.
As duas primeiras histórias (Imortalidade... e Os Deuses dos Negócios), além de definir um background para os personagens principais, fazendo uma verdadeira limpa, conjugam com talento mitos clássicos e sequestros de avião, problemas conjugais e filosofia, EyeBall Kid e Joe Theseus, equilibrando diálogos e cenas de ação no que provavelmente é o estilo de narrativa mais fluente nos quadrinhos de hoje. Particularmente especial é o uso das splash pages - aquelas páginas inteiramente ocupadas por um único quadrinho - seja em cenas de briga, quando a revista parece tremer nas mãos com o estrondo dos murros, seja num comovente recurso narrativo, quando após se jogar ao mar, desgostoso, Theseus ouve uma voz ao fundo lembrando-lhe de sua origem divina, e vira-se, deparando-se com a imensa imagem de Netuno a lhe proteger: "Poseidon, my father, god of all the seas!". Um deslumbre.
Essa mistura de ação e filosofia é posta de lado por Eddie nas histórias seguintes, depois de gastar algumas páginas contando o que teria acontecido com o seu elenco após o reencontro. Parte da graça aqui é observar as experimentações de técnica e estilo: do nanquim puro para retículas, passeando pela colagem; uma história inteira inspirada nos moldes de apelo visual da Image Comics. Mas o filé está mesmo em Doing the Islands e 1001 Nights of Bacchus.
A primeira se resume a um passeio pelas ilhas gregas de Bacchus e Simpson, professor de História e fiel escudeiro, onde Bacchus relembra passagens marcantes de sua vida, teoriza sobre a colheita da uva, e joga conversa fora. A segunda, parte de uma britânica aposta: os fregueses de um pub protestam quando toca o sino da última rodada, alegando que o próprio deus do vinho, emburrado, como de costume, num canto, não deveria ser contrariado. O barman topa permanecer soltando a cerveja enquanto eles conseguirem manter Bacchus acordado narrando histórias. É o mote para a melhor sequência de histórias de bar já vista, onde se recria o ambiente etílico com a mesma verve de um conto do Veríssimo, com a mesma naturalidade de uma novela do Bukowski.
O mais interessante é que depois de uma dúzia de histórias longas, Eddie Campbell parece ter se dado por satisfeito e abandonou os personagens gregos. Abandonou até os fictícios - mesmo Alec MacGarry, seu alter ego nos quadrinhos, e toda a trupe do pub King Canute, recordações proustianas dos tempos de iniciante, quando trabalhava cortando chapas de aço com uma guilhotina, foram postos de lado. A crônica passa a ser o tom, e assim somos convidados a penetrar na intimidade da família Campbell, conhecer seus filhos, entender os problemas de se levar um estúdio de quadrinhos dentro de casa, enfim, fortalecer a típica cumplicidade leitor-autor.
É hilariante, por exemplo, o choque entre o fleuma anglo-saxão de Eddie e a descontração ibérica na visita a convenções de quadrinhos espanholas. "Nada funciona na Espanha" tem um começo antológico: "A esteira das malas no aeroporto demora horas para começar a funcionar. Quando finalmente se decide, a primeira coisa que aparece é um tubo de xampu." Todo o processo de venda dos direitos de From Hell, graphic novel de 600 páginas sobre os crimes de Jack o Estripador, para Hollywood também aparece devidamente registrado sob a ótica particular do autor. Até aquela vez em que ele esqueceu um lápis quando tinha ido fazer um bico como desenhista de tribunal rende uma boa piada.
Eddie Campbell's Bacchus é auto-publicado todo mês, com aproximadamente 50% de material novo, 25% republicações de coisas antigas e 25% de amigos. No final de 99 saiu a edição completa de From Hell, em parceria com Alan Moore, depois de quase 10 anos e 2 editoras. Um filme da Touchstone está sendo produzido com Johnny Deep e Heater Graham. Portanto, quando o filme estreiar nos cinemas, não bronqueie com a açucarada que a Disney deu na violência ou com alguma incongruência do roteiro. Melhor pensar no cheque que comprou a casa nova na Austrália onde a família Campbell reside e de onde Eddie gera suas deliciosas histórias todo mês.
Rafael Lima
Rio de Janeiro,
5/3/2001
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