Georges Bataille (1897-1962) foi um exagerado. Sua proposta intelectual foi nada menos que desvendar a totalidade da condição humana. Mesmo que soubesse ser isso impossível, não poupou esforços em sua busca e, para tanto, dedicou-se à ficção e à filosofia, que por sua vez englobava os mais diversos ramos do conhecimento. E, enquanto é bastante comum que escritores tenham sua ficção invadida por sua história pessoal e por suas idéias filosóficas, podemos dizer que poucos conseguiram se igualar a esse francês no que toca ao seguinte ponto: nele, essas três esferas formam um triângulo que em nenhum momento consegue ser rompido.
Assim é que eu encontrei no prefácio escrito para sua novela Madame Edwarda (inédito no Brasil) a filosofia que norteia toda sua obra. E assim é que lemos nas "reminiscências" de Histoire de l'oeil (no Brasil História do olho, Cosac Naify, 2003, 138 págs.) as experiências pelas quais o autor passou na infância e que basearam a construção dessa história de outra forma estranhíssima. Volto já a esses pontos.
Antes, é preciso dizer que também na vida pessoal Bataille freqüentou os extremos. Se, filho de pais não religiosos, após a morte destes resolveu adotar o cristianismo, chegando a matricular-se num tradicional seminário em 1917, na década de 30 ele se tornaria um membro do Círculo Comunista Democrático. Isso para, no final das contas, ficar conhecido como o "novo Marquês de Sade" - só que um Sade surrealista!
Mas, à Histoire de l'oeil. Como é de praxe em Bataille, trata-se de um livro pequeno, que narra as aventuras de dois jovens de dezesseis anos (de dezesseis anos!) que saem em busca do prazer que os sentidos podem proporcionar. Os jovens - Simone e o narrador - se conhecem numa praia, e, a partir de então, passam a dar asas à imaginação.
Não se trata, no entanto, de um livro que possa ser classificado como pornográfico e ponto final (como o foi logo após ser lançado, em 1928). Bataille tinha uma visão peculiar da realidade, que, numa peça de ficção, deveria ser mostrada em seu extremo. Onde encontramos isso dito explicitamente? No citado prefácio a Madame Edwarda: "O que significa a verdade fora da representação do excesso, se assim não vemos o que excede a possibilidade de ver, o que é intolerável de ver, como o que, no êxtase, é proibido de ser fruído? Se assim não pensamos o que excede a possibilidade de pensar...?"
A realidade extremada inclui a inversão de papéis. Assim, em Histoire..., é a mãe que surpreende a filha (Simone) em atos, hum..., heterodoxos com seu colega (o narrador), quando na maioria dos contos e romances o que ocorreria, no máximo, seria a filha surpreender a mamãe com a boca na botija do papai ou de outrem. E qual a reação da filha ao ser surpreendida pela mãe? Ela ordena: "Faça de conta que não viu nada". E assim se fez.
E, quando um bando de pré-adolescentes se reúne, o resultado não é o que comumente se esperaria, mesmo se imaginamos alguma diversão entre eles. A congregação da meninada dá nisso: "Resultou um odor de sangue, de esperma, de urina e de vômito que fazia recuar de horror". De fato, os personagens de Bataille só atingem o prazer por meios não convencionais. Assim, pululam em cada página os líquidos vitais - não apenas suor, sêmen e saliva, como também muito sangue e urina. São eles que, digamos assim, lubrificam a máquina da novela, e a mantém seguindo em frente.
Nos extremos de Bataille, obviamente não poderia faltar o sacrilégio. Simone, o narrador e um senhor inglês amigo dela vão aprontar das suas na Espanha - lugar-chave na formação do escritor, pois foi lá que ele descobriu e se impressionou com a tourada (presente na Histoire...), e onde deixou-se apaixonar por Nietzsche. No país ibérico, dentro de uma igreja, o trio envolve em orgia um pacato padre, que, mesmo a contragosto, tem ereção, goza e morre. Na seqüência, tem seu olho arrancado pelo inglês, a pedido de Simone, que quer realizar a fantasia de enfiá-lo no próprio ânus. Antes de morrer, o padre teve de escutar a "missa" que o inglês rezou a Simone: "(...) essas hóstias que você vê são o esperma de Cristo em forma de petit gâteau. Quanto ao vinho, os eclesiásticos dizem ser o sangue. Eles nos enganam. Se fosse mesmo o sangue, eles beberiam vinho tinto, mas eles bebem vinho branco, sabendo bem que se trata da urina".
Todas as referências a olhos e ânus ficam mais ou menos esclarecidas no texto que o autor escreve ao final do livro. É onde explica que foi filho de um pai sifilítico que acabaria cego e de uma mãe que, com a doença do marido, começara a se comportar como uma louca, tendo que ser vigiada pelo filho. "Na puberdade", lemos, "a afeição que eu sentia por meu pai se transforma em uma inconsciente aversão". A imagem da brancura dos olhos que não mais enxergam passa a repugná-lo. E Bataille fecha esse posfácio com um parágrafo que ilumina Histoire de l'oeil: "Essas lembranças, geralmente, não me incomodam mais. Elas, depois de longos anos, perderam o poder de me incomodar: o tempo lhes a neutralizado. Elas não podem retornar à vida a não ser deformadas, irreconhecíveis, sendo, ao curso da deformação, revestidas de um sentido obsceno".
Daniel nos deixa mal acostumados, pois torna a resenha tão agradável, que a vontade é seguir lendo o original e comentando com ele (Daniel), que só faz enxergar onde, normalmente, nosso míope olhar não alcança.
Muito interessante o texto. Talvez, via O Erotismo, chamá-lo de pensador "do excesso" ou da "pletora", seria mais interessante do que do "exagero", precisamente por Bataille ter diante das vistas uma coleção de pensamentos "da falta". Muito interessantes também as considerações do Fucô sobre ele.
Muito boas as referências, especialmente das obras literárias!
um abraço,