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Quarta-feira, 7/11/2007
Clássicos Personnalité: Erudito, Jazz e Choro
Rafael Fernandes
+ de 4500 Acessos

O projeto Clássicos Personnalité consiste em uma série de concertos de câmara aliados à música popular mundial. A Taís foi ver a abertura, o tango e o primeiro sobre MPB. Eu vi o jazz e o choro. A idéia é realmente interessante: unir o que se costuma chamar de música clássica ao que se chama de música popular - conceitos repletos de preconceitos de ambos os lados. No dia 04 de outubro foi celebrada uma união já conhecida: o clássico e o jazz. Para tanto, foram escalados talentos de diversas gerações e culturas: da pianista croata Sanja Bizjak, de 19 anos a uma figura importante do jazz norte-americano, Lee Konitz, de 80 anos, passando por um de seus grandes parceiros, Ohad Talmor (saxofonista, clarinetista e compositor), 37, francês, filho de israelenses, radicado na Suíça e EUA.

Sanja, uma bela garota, elegante num vestido rosa brilhante, começou o concerto com Jeux d'eau de Maurice Ravel. Aos primeiros segundos a beleza e colorido da peça e execução foram capazes de trazer algo de sublime ao teatro. A partir dali, todo e qualquer problema do dia foi deixado de lado para uma profunda imersão no mar da música: a Arte cumprindo um de seus papéis. Em seguida a pianista executou os Estudos para Piano 8 e 9 do livro II de Claude Debussy, um grande teste para a técnica dos pianistas, incluindo inversões das mãos - a jovem croata saiu-se muito bem. Os Solistas Personnalité (Pablo de Leon, violino; Horácio Schaefer, viola e Roberto Ring, violoncelo) mais Luiz Amato (violinista) se juntaram a Sanja Bizjak para o encerramento da primeira parte da apresentação com uma peça de Gabriel Fauré, o Quarteto no. 1 para Piano e Cordas em Dó maior op. 15, com destaque para os dois movimentos finais: o Adagio e o Allegro Molto.


Lee Konitz em foto de Bruno Bollaert




Ouça um trecho de "Jeux d'eau" interpretada por André Laplante no disco Miroirs, Jeux D' Eau, Pavane Pour Une Infante Défunte

Após o intervalo, o quarteto de cordas voltou ao palco para acompanhar Ohad Talmor e Lee Konitz, que roubou a cena. Além de uma lenda do jazz, ótimo compositor e grande improvisador, tem extremo bom humor e conquistou a platéia logo de cara, quando tocou um clássico do jazz - "Body and soul". Em seguida, o grupo executou duas peças de Claude Debussy: Rêverie e Valse Romantique. Ambas podem ser encontradas no disco Play French Impressionist Music From The 20th Century, gravado por Konitz com o Axis String Quartet no ano de 2000. Após uma livre interpretação de outro clássico do jazz, "All the things you are", com um "duelo" de Konitz no sax alto e Talmor no tenor, que evidenciou não apenas o domínio de ambos em seus instrumentos como seu entrosamento, voltaram a tocar com o grupo, agora uma peça de Gabriel Fauré (professor de Ravel), L'absent - de uma melancolia retumbante, também presente no disco citado.


Ohad Talmor em foto de Roberto Cifarelli



Ouça um trecho de "L'absent", tocada por Konitz no disco Play French Impressionist Music From The 20th Century

Em seguida, foi convidado ao palco o violonista Daniel Ring para a música "Struttin with some barbeque", um jazz maroto. No bis retornaram apenas Lee Konitz e Ohad Talmor para um clássico do próprio Konitz, "Subconcious-Lee", em que novamente os músicos duelaram brilhantemente, trocando provocações melódicas. Ao final do concerto, percebemos que a separação entre erudito e popular realmente não passa de rótulo que nós, pobres seres humanos, criamos para nossa própria organização, afinal tudo é Música. Como já disseram, só existem dois tipos de música: a boa e a ruim. Neste concerto Personnalité, prevaleceu a boa.


Ouça um trecho de "Subconcious-Lee" numa gravação de 1949

E a seguir, um trecho (de vários) de um curta-metragem sobre Lee Konitz:


Já no dia 18 de outubro foi a vez da união do erudito com o choro - um "clássico" brasileiro. Para participar, além dos Solistas Personnalité, estiveram presentes o violinista israelense Hagai Shaham, a belga Christine Springuel (viola) e o brasileiro Watson Clis (violoncelo). Para a parte do choro foram convidados o excelente flautista Toninho Carrasqueira, filho de João Dias Carrasqueira (figura de extrema importância para o desenvolvimento da flauta no Brasil) e Maurício Carrilho, que, além de exímio violonista, se destaca como compositor e arranjador - é um dos grandes nomes do violão nacional.


Ouça um trecho de "Lux Aeterna", do Réquiem de Mozart na versão para quarteto de cordas de Peter Lichtenthal com o Kuijken Kwartet

Como de praxe, o programa de abertura foi erudito, com o Réquiem em Ré menor de Mozart, em versão resumida (apenas quatro movimentos) e num arranjo para quarteto de cordas escrito por Peter Lichtenthal (1780-1853). Antes da performance, Roberto Ring explicou que tal arranjo só veio à tona em 2006, ano de sua publicação; portanto, a apresentação da peça em quarteto era provavelmente a primeira em solo brasileiro. Para tanto estiveram no palco os Solistas Personnalité acompanhados de Hagai Saham - todos tiveram segurança ao tocar, mostrando como o Réquiem fica bem também em quarteto. A seguir, Christine Springuel e Watson Clis subiram ao palco para formar um sexteto e tocar uma obra de Brahms, o Sexteto no 2, op. 36 para cordas em Sol maior.


Ouça um trecho de "Poco Adagio", do Sexteto de Cordas no. 2 de Brahms numa gravação do The Nash Ensemble

É interessante colocar lado a lado o choro e o erudito. Exceções à parte, este estilo é conhecido pela rigidez, por seguir partituras, regentes, por ter uma série de procedimentos e regras a serem seguidos, enquanto no choro o que conta é a liberdade, a criação de momento, a descontração; uma rua ou um fundo de quintal já servem para uma boa roda de choro. E por isso, a segunda parte do Clássicos Personnalité foi interessantíssima para mostrar como em seu início o choro teve grande influência do erudito e em como pode se encaixar em seu contexto. A primeira peça foi "Ameno Resedá" (em arranjo de Maurício Carrilho), uma polca do maestro Ernesto Nazareth, incontestavelmente um dos pilares da música brasileira. Ele, como muitos outros compositores nacionais, transitou entre a dita música popular e a clássica, tanto no campo da composição quanto na "sociedade", digamos assim. Sua obra é essencial para o que vem depois na música popular brasileira. Mas ele não escondia certo ressentimento por não se firmar na seara erudita. O arranjo de Maurício Carrilho para violão, flauta e cordas reforça a tinta erudita, sem deixar de lado o popular do que o próprio Nazareth gostava de chamar de "tango brasileiro". Depois, veio a quadrilha "Flores do coração" (em arranjo de Paulo Aragão, do quarteto de violões Maogani) do chamado "pai dos chorões" Joaquim Callado, filho de escravos, morto em 1880, com apenas 31 anos; sua obra também é vital para o choro moderno, tendo chamado a atenção inclusive de Chiquinha Gonzaga. São dele os primeiros registros de partituras do choro. Em seguida veio "Implorando" (também em arranjo de Paulo Aragão), de Anacleto de Medeiros, filho de escrava liberta, compositor, instrumentista, orquestrador e regente.


Ouça um trecho de "Ameno Resedá", por Maria José Carrasqueira

Outro dos pilares da música moderna brasileira foi apresentado com o choro "Cochichando": Pixinguinha, de obra rica, vasta e visionária, pois colocou elementos jazzísticos em sua música, o que irritou muita gente lá pelos anos 20. Mas essas inserções não só influenciaram a bossa nova como fizeram com que muito de sua obra permaneça tão atual, não perde o frescor. A execução foi feita apenas por Carrilho e Carrasqueira, sem arranjo prévio, numa performance típica de rodas de choro, com trocas de idéias e andamentos e diálogos rítmicos e melódicos. Com as cordas de volta ao palco foram executadas duas belas peças de Maurício Carrilho: "Maricotinha chegando" e "Choro cubano", que fez jus ao nome, com grande influência da música da terra de Fidel. No bis, foi tocada "Corta jaca", de outra peça chave não só na música, mas também do comportamento feminino: Chiquinha Gonzaga. Toninho Carrasqueira resumiu bem o que é o choro e, afinal, do que é muito da música em si: a transformação da tristeza em alegria.


Rafael Fernandes
São Paulo, 7/11/2007

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