É incômodo quando vejo minhas convicções serem questionadas, mesmo porque geralmente elas são muito boas e espertas, mas começou a acontecer com uma certa freqüência de um tempo pra cá. Outro dia mesmo assisti Tropa de Elite e todo aquele meu papo de que só imbecil gostava de cinema nacional não fazia mais sentido algum porque o filme é ótimo. Percebem a gravidade? Um filme brasileiro bom. Onde já se viu, um filme brasileiro bom? Falei mal em outro texto no Digestivo Cultural sobre a atuação do Wagner Moura como o professor Higgins num espetáculo em São Paulo porque, bem, foi ruim mesmo, mas em Tropa de Elite ele está - como dizer isto sem parecer gay? - formidável. Formidavelmente impecável. Quer coisa mais incômoda que ter de dizer isto? Estou constrangido, vejam, ó, ó.
Mas não só esta minha convicção foi abalada. Uma outra, muito, muito mais sólida e mais bem fundamentada também foi. Escutem sem fazer barulho: existem filmes franceses agradáveis. Sim, estão lá, escondidos embaixo de toda aquela meleca existencialista. Antes de conhecer Jean-Marie Poiré, jurava que, se Disney fosse francês, Mickey seria algum sociopata com olheiras como meio de questionar os valores morais de uma sociedade pós-industrial hipócrita e exploradora, ao passo que agora vejo a possibilidade de um filme francês ser verde e divertido. É a minha autoridade intelectual esmorecendo diante das circunstâncias. Como dizer para meus filhos - que terei um dia - que eu gostei de um filme francês?
Bom, dois filmes, para ser exato, porque estou falando de Les visiteurs, que teve seqüência em Les couloirs du temps: Les visiteurs 2. São tão bons, tão legais que obrigo, por vezes agressivamente, todos os meus amigos a assistirem e gostarem. E eles gostam, claro, como se fosse possível não gostar. Oras, oras.
É sobre viagem no tempo, que parece, a princípio, e é até um assunto meio desgastado. Desde H.G. Wells até a trilogia De volta para o futuro, dá a impressão de que não há mais o que dizer sobre isto, mas Les visiteurs conseguiu ser um dos meus filmes prediletos nos primeiros quinze minutos. Foi fácil, fácil me convencer.
Lá na Idade Média, um cavaleiro recebe o direito de se casar com uma garota da nobreza por ter salvado a vida do rei da França. Receber uma garota da nobreza como prêmio por salvar o rei da França pode parecer miséria, pode parecer ridículo, uma vez que salvar um rei na França nunca foi das atividades mais simples de se fazer, mas o cavaleiro, conde de Montmirail, interpretado por Jean Reno, ficou satisfeito e feliz com seu prêmio. Até que ele foi enfeitiçado por uma bruxa má, que é o que as bruxas são, e acaba matando o nobre que era pai da garota. Para arrumar toda esta confusão, ele fez o que qualquer pessoa de bom senso faria: recorre ao mago do rei para voltar no tempo - e consegue, lógico, por que não conseguiria? Mas como o mago era atrapalhado, que é o que os magos são, deixou de colocar um dos ingredientes da poção e, em vez de enviá-lo ao passado, enviou o conde de Montmirail junto com seu servo para o futuro, nos dias atuais. Mil novecentos e noventa e pouco e tal.
Poderia resumir o resto do filme como eles tentando voltar ao passado, mas estaria jogando fora o essencial do filme, que é Jean-Marie Poiré contando o choque cultural entre alguém da Idade Média e a sociedade contemporânea sem nenhuma cena de estupro ou espancamento impressionante para isto. Apenas senso de humor. Cada cena tem um senso de humor tão preciso que me faz querer assisti-lo para sempre. E a atuação de Christian Clavier, o servo, também me faz querer assisti-lo durante não menos que a eternidade. É um dos melhores comediantes que já vi em vida, seguramente. E olhem que eu assisto regularmente a noticiários políticos.
Não apenas eu, como Hollywood gostou. Gostou tanto que comprou o filme e fez uma versão norte-americana chamada Just visiting, mantendo Jean Reno e Christian Clavier no elenco, mas colocando atrizes bonitas - sorry a indelicadeza - no lugar, como Christina Applegate fazendo a garota nobre. Acho que a idéia era apresentar uma boa obra para pessoas que, como eu, não assistiriam um filme francês nem debaixo de cinta. O roteiro permaneceu praticamente o mesmo, mantendo as melhores cenas e tirando algumas não tão necessárias. A continuação ainda não foi refilmada, mas é um dos poucos casos em que a continuação chega a ser melhor que o primeiro filme. O único detalhe é que ela deixa o final em aberto, como chamando um terceiro filme. Oremos.
Lembro de ter considerado bom outro filme francês também, o Amélie Poulain, do Jean-Pierre Jeunet, mas foi uma coisa particularmente estética e nem sei se eu realmente o considero bom. A rigor, não gosto, mas é um filme pelo menos bonito. A história é chatinha de tudo, mas é bonito de se ver, entende? Assim como outro de Jean-Pierre Jeunet, o Delicatessen, que é caótico do começo ao fim, chato daqui até o Japão, mas bonito, bonito. Cenas bem feitinhas e tudo que quase me fazem gostar. Mas com Les visiteurs e Tropa de elite não teve jeito. Fui derrotado. Gostei, gostei mesmo. Bons pra caramba. Podem anotar. Sério mesmo.
Embora discorde de você, politicamente, confio extremamente na sua análise, quando se trata de cinema, música ou coisas parecidas. Ainda não me dispus a assistir à Tropa de Elite, mas acho que vou, depois que li o seu comentário. Também esse: Les visiteurs, que deve ser o próximo. Valeu, Big Fish!!
Apenas como complemento: os filmes em questão foram lançados em DVD no Brasil pela Versátil, sob o título "Coleção Os Visitantes", com "Os Visitantes", que é de 1993, e "Os Visitantes II", de 1998. Quem se interessar pode checar neste link.