No meu último feriado, a última coisa que fiz foi descansar. Tinha uma penca de livros para ler, amigos para encontrar, projetos para discutir, bagunças para arrumar, textos para escrever, visitas para receber, pesquisas para terminar. O tempo foi escorrendo de mansinho e me peguei no domingo à noite, jogada no sofá com o laptop no colo e a tevê ligada, mais ou menos prestando atenção nas reportagens. A tela, no colo, brilhava em páginas sobre "ócio criativo". Sempre lembro dessa expressão quando estou absolutamente esgotada e sem forças para fazer mais nada de interessante. E nesse fim de feriado em particular, de quebra, estava desanimada. Tinha que escrever justamente sobre eles, os feriados. Não saía nada que prestasse. Cansada, larguei o texto e fui dormir.
No dia seguinte, o sociólogo italiano Domenico De Masi, autor da teoria do ócio criativo, acabou por responder ao meu pedido de entrevista. Simpático, com uma voz extremamente jovial e que em nada lembra acadêmicos rançosos tradicionais, ele me conta que feriado, na História, é sinônimo de festa. Na Atenas de Péricles os dias festivos eram quase tão numerosos quanto os de trabalho. "Ainda assim, Atenas, que tinha 60.000 cidadãos livres e 250.000 escravos, produziu mais arquitetura, escultura, poesia, filosofia, historiografia e teatro do que praticamente qualquer outra cidade do mundo", diz De Masi.
Eram muitas, muitas festividades. Para todos os deuses e todos os gostos. A vida produtiva da cidade parava e os atenienses começavam seus feriados em julho com as festas Saturnais, às quais se seguiam as Synoikia, que comemoravam a unificação política da região da Ática. Logo depois, vinha o Panateniense, uma festança em que a população toda, e não só os cidadãos, podia participar, em homenagem à padroeira da cidade (sim, eles paravam tudo em nome do Pan!). Em setembro se celebrava os Mistérios de Elêusis, cerimônias de iniciação ligadas a Deméter (protetora da agricultura) e sua filha Perséfone, além das festas para Apolo, deus da cura, das doenças e também das profecias.
Aí vinha o mês mais rico em festividades, outubro: os rituais e as procissões em honra a Dionísio, mais três dias de Tesmofórias (de novo, Deméter... ô deusa festeira), e outros três dias de festas cívicas em honra a Zeus e Atena. À Atena operária eram dedicados os festejos que fechavam o mês. Durante todo o inverno corriam as procissões solenes em honra a Dionísio, chamadas Faloforias. Como o nome sugere, o símbolo principal da festa era um falo enorme de madeira, que representava a força vital. Janeiro era o mês dos casamentos, com mais festas. Em fevereiro: a Antesteria em honra ao deus do vinho, e mais festa, a Cloia, em honra a Deméter (ela realmente está em todas!). Nesse mesmo mês, aconteciam as Diasias em honra a Zeus. Em março, vinha a primavera, celebrada nos ritos para Atena e mais uma festa chamada Grande Dionísio (outro que não fica atrás em termos de agito) que durava cinco dias consecutivos com apresentações de ditirambo (canto coral grego), comédias e trilogias (seqüências de teatro de três peças). Em abril era a festa de Muníquia, em honra a Artemísia. Em maio se celebrava o Targelie, para Apolo. Junho, último mês do ano ateniense, tinha três grandes festas. Ufa! É muita festa, mas não acaba aí. "Nos meses que não mencionei, havia celebrações menores mas não menos numerosas e festivas", completa De Masi.
O sociólogo italiano conta ainda que as comemorações incluíam atletismo, concursos líricos, musicais, dramáticos e de beleza. Durante o Grande Dionísio, todos os atenienses assistiam ao ditirambo e a pelo menos 15 óperas teatrais, com cerca de vinte mil versos recitados e cantados. "Não se tratava, porém, da preguiça improdutiva que caracterizava as atuais 'férias de gerente': era uma reflexão alegre, da qual surgiu uma das maiores civilizações de todos os tempos. Se tratava do ócio elevado à arte." E assim era também como a Florença renascentista, cidade de 19.000 habitantes que produziu pintura, escultura, palácio, igrejas, poesia e sabedoria incomparáveis. "Também na Viena do início dos 1900, Otto, Wagner e Hoffmann, Freud e Musil, Klimt e Mahler, passavam a maior parte de seu tempo no maravilhoso Caffè Liberty, onde foram geradas algumas das obras mais extraordinárias do século passado".
A essa altura, minha culpa pelos feriados "improdutivos" já foi para o espaço. "Na atividade criativa, estudo, trabalho e tempo livre coincidem e se confundem. Como no carnaval do Rio, onde se produz simultaneamente riqueza, aprendizado e felicidade", diz De Masi. E quando a pessoa detesta seu trabalho? E quando o trabalho é massacrante e esgota o trabalhador? Nesse caso, o professor italiano critica a massificação do tempo livre: o lazer vem pronto, numa torrente de eventos culturais e de entretenimento que pode ser tão massificante e opressiva quanto o tempo de labor. "Hoje, por sorte, dois terços dos trabalhadores desenvolvem tarefas intelectuais de caráter flexível ou criativo. Para parte deles, é possível evitar a separação das atividades industriais com que se produz riqueza, das de escritório com que se produz saber e das lúdicas com que se produz bem-estar e alegria. Isso é o que eu chamo de 'ócio criativo'."
Aos trabalhadores que dependem de um ofício manual, repetitivo e cansativo e para empregados que desenvolvem tarefas burocráticas, Di Masi recomenda aproveitar as pausas prolongadas para o descanso físico, o divertimento intelectual, os relacionamentos sociais e o amor. Os que têm trabalhos intelectuais flexíveis e criativos não devem separar os dias entre trabalho e descanso. "Dia e noite, trabalho e vida devem ser dedicados sempre e só ao ócio criativo: o mix de estudo, trabalho e lazer." Ok, não é tão simples assim. O mercado de trabalho, mesmo para empregos maçantes (às vezes até degradantes) é extremamente competitivo e difícil. Mas que essa teoria dá uma pontinha de ânimo, dá. Ela é o desdobramento de uma mais antiga: a de que a mecanização e a tecnologia aplicadas à atividade produtiva permitiriam que as pessoas tivessem mais tempo livre. O que se vê, na prática, é que parte do serviço braçal é, de fato, ocupado por máquinas. Mas a força produtiva foi parar em subempregos, ou nem isso. Uma outra parcela se realocou nos trabalhos intelectualmente mais interessantes. O que não diminui o valor de um modelo que preza tanto a produtividade como a essência humana de quem produz.
"Eu não teria medo de dias de festa. Nos dias de trabalho se produz e nos dias de festa se consome. A economia atual precisa tanto de produção quando de consumo. Além disso, no dias livres se pensa, se conhece pessoas novas, se assiste a espetáculos mais estimulantes", diz o sociólogo.
Ai, que bom, De Masi. Assim eu fico mais animada com meus feriados.
De Masi estava na Oktoberfest de Blumenau-SC, este ano. Parece que anda por aqui, em projetos com o Governo do Estado. Mas pode. Encontrou um "filão" para ganhar e trabalhar pouco. Eu olho com um pouco mais de ceticismo para a História. É um percurso de miséria, opressão e, conseqüentemente, da necessidade de fuga, muito vinho, drogas, prostitutas, esportes sangrentos. Do jeito que vamos, não caminhamos para o ócio criativo, mas para o desemprego em massa, a informalidade e uma incongruência entre produção-consumo. Tanto que "neguinho", para ter um tênis legal, mete uma arma na cara. Fácil. Ócio criativo total, nem precisa trabalhar. Existe um império do lucro que molda o mundo, e (não sou esquerdista chato, apenas crítico) a vida não é prioridade para ele. Vejo a filosofia de De Masi como epicurismo, analgésico. Sou mais a favor da redução da jornada de trabalho para 4 horas diárias e, com isso, a multiplicação dos postos de trabalho. Política concreta. É o que penso. Abraço Verônica.