Você já ouviu falar de O lado frio do travesseiro (Mundo Editorial, 2006, 296 págs.)? Vamos lá, esforce-se: não leu nada no Estadão, na Folha, n'O Globo? Possivelmente não, e talvez não seja por acaso: O lado frio do travesseiro, romance da espanhola Belén Gopegui, ousa, numa só tacada, questionar o papel da mídia, acusar os Estados Unidos de manter organizações golpistas e assassinas e ainda saudar a permanência do Estado socialista de Cuba, o que não impediu que se tornasse best-seller na Espanha.
Lançado em 2004, o romance vendeu incríveis 18.000 exemplares em apenas dois meses, permanecendo várias semanas na lista dos mais vendidos e provocando debates nas principais cidades espanholas, sempre avalizados pelos meios de comunicação que, segundo a irônica apresentação de Iroel Sánchez, "cometeram o erro de entrevistar, ainda que apenas com perguntas maniqueístas, quem não aceita curvar-se ao discurso dominante".
Mas não pense que a autora saúda Fidel Castro ou Che, louva as conquistas da revolução, o analfabetismo zero, a saúde pública: a grande ousadia de Belén é simplesmente lembrar de Cuba, da pequenina ilha, do seu regime e dos sonhos que ainda agarram-se em suas margens. Em tempos de China pseudo-comunista, de uma China exemplar para o capitalismo e atemorizadora para o grande Tio Sam, a autora assume o papel da personagem mártir Laura Bahia e permite dizer, por exemplo, que Cuba é "a possibilidade de um lugar não submetido à lógica dos benefícios, que sempre traz atrelada a lógica da beneficiência".
A ponta desse iceberg é uma trama simples, entre romântica e policial, em que uma agente secreta da segurança do Estado de Cuba e um agente internacional norte-americano são escolhidos para intermediar determinada operação, supostamente para ajudar a derrubar o regime de Castro, já que os norte-americanos não sabem que Laura, a agente cubana, trabalha para o Estado de Cuba. Em meio aos encontros secretos, apaixonam-se e vivem tórridas noites de amor antes do final surpreendente, trágico, frio:
"Não foi o orgasmo em sua intensidade nem em sua certeza, escafandro de mergulhador, bola de neve arremessada que num momento explode, e os flocos, muito lentamente, se dispersam. Foi logo depois. (...) Laura observava a pele muito branca de Hull, e não queria se mexer. Foi então que começaram a compreender que precisavam um do outro; que se passassem muitos dias sem se ver, os corpos, soltos, perdidos, ficariam à deriva."
Não trata-se, exatamente, de uma história original, tampouco surpreende o arranjo político e todas as suas artimanhas, mesmo reveladas de forma tão cruel, ainda que verossímil. O leitor sabe desde o início que Laura foi morta, mas o leitor precisará entender o porquê, em nome do quê, e sem dúvidas o leitor que não perceber os intertextos políticos da trama fechará o romance sem entender o que representava para Laura aquela operação, aquela ilha, aquela idéia.
Talvez fosse útil ou aconselhável, nesse ponto, que o leitor conhecesse um pouco sobre a história recente de Cuba, especialmente depois da queda da URSS, que seria a financiadora do projeto de Fidel. A pequena ilha, de 11 milhões de habitantes, entrou em grande crise para se estabilizar razoavelmente, em meados da década de 90, a partir de acordos comerciais e certa abertura política, apoiando-se principalmente na ascensão política da China. Dessa forma, os Estados Unidos voltam a olhar para a ilha ― quando sobra tempo, ocupados que estão com o Oriente Médio ― e chega aos noticiários informações de espionagens e execuções sumárias por parte de Fidel, amplamente repudiadas pela grande imprensa, que as classificou como afronta aos Direitos Humanos. E Belén, aliás, não se furta a inserir esse episódio no romance.
Verdade que a literatura contemporânea ou não é muito afeita a romances desse feitio, debruçados na história, ou os transforma em best-sellers pasteurizados como os intermináveis Cabuls, mas houve um tempo, no começo do século XX, especialmente, que os romances debruçavam-se nos fatos reais com naturalidade e seus escritores eram verdadeiros atores do jogo social. No Brasil, Monteiro Lobato talvez seja o exemplo mais célebre, mas Viana Moog com Um rio imita o reno é o caso mais singular: tratando do espinhoso tema do racismo germânico, foi publicado em 1939, no calor da hora, da dramática hora em que uma guerra está ocorrendo. É ao mesmo tempo uma peça de ficção, uma reflexão e uma obra de arte, um romance que enfrenta os riscos de discutir o mundo tal como este se apresenta.
Naturalmente, uma análise da obra, ainda que breve e rasteira, não poderia deixar de abordar os aspectos estéticos, as opções da autora para contar a história de uma e não de outra forma, mas comentar sua escolha é, de certa forma, antecipar seu final, um final de epílogos seqüentes. Talvez O lado frio do travesseiro ficasse mais potente se narrado como Pessach, de Cony (olha outro exemplo de romance debruçado na realidade político-social do seu tempo), em primeira pessoa, ou a partir de um narrador em terceira como o proposto no começo da obra. A mescla de ambas as soluções talvez apenas enrede ainda mais uma trama já complexa e não se justifica nem pela tal polifonia, pois vemos em ambos os momentos a autora, sua ideologia e suas bandeiras. O que muda é que, quando narrando a partir das cartas de Laura, Belén permite-se maior lirismo, talvez excessivo, enquanto o "escritor espanhol classe média" que conta a história da heroína a pedido de um amigo e colega dela é bem mais concreto e atento às conspirações políticas.
Muitos acusariam, e acusarão, O lado frio do travesseiro de panfletário, mesmo com a escrita habilidosa e a trama fluente de Belén. Muitos achariam graça, e acharão, do romantismo ingênuo de Laura Bahia. Muitos desdenhariam a obra, e desdenharam, por considerar o tema fora de moda, inadequado. Ou assunto para páginas de jornais e revistas, não para livros, muito menos para romances literários. Mas talvez seja exatamente pela ideologia, pela ingenuidade romântica e pelo anacronismo do debate que faz-se um romance e não uma grande reportagem ou um vídeo pro YouTube. Mas a idéia de resgatar o romance enquanto meio de comunicação social, enquanto instrumento de luta na arena política, fortalece o texto de Belén e o torna, no mínimo, instigante. Foge do pensamento único ao mesmo tempo em que se apóia no que há de mais clássico no romance europeu e no cinema hollywoodiano, a intriga, o amor, a traição, o crime. Contraditório tal qual sua protagonista, tal qual a ilha, tal qual o homem e seus sistemas políticos. Sejam quais forem.
bom texto, Marcelo. acho que ninguém discorda que Cuba precisa de democracia. agora, pra que serve, por exemplo, o tal do bloqueio econômico (além de angariar votos dos cubanos da Flórida para os candidatos que o defendem?)? essa medida é uma besteira, como atestam as votações na ONU. na última, apenas EUA, Israel, Palau e uma ilha dessas votaram pelo bloqueio. nem a França de Sarkosy, nem a Arábia Saudita aliada do W. votaram a favor. ridículo.
Nunca entendi muito bem o encanto de Cuba, o fascínio que a ilha exerce sobre alguns intelectuais, escritores, essa turma. A não ser a Cuba dos anos quarenta, cinqüenta, ou antes ainda, dos casinos e night-clubs, praias, rumbas e mambos. Alguém já me disse que isso só existiu na cabeça de imperialistas e pequenos burgueses de m. Ok, sem problemas. Mas política cubana... não aguento 5 minutos de um Renan Calheiros, quanto mais as 6 horas de praxe de um discurso de Fidel. De forma que meu interesse por Cuba é quase nulo. Ainda que o livro dessa espanhola seja ótimo (assim como é o texto do Spalding), me parece carta marcada, num jogo que já terminou.
Me dá revolta no estômago ler essas coisas escritas por gente que precisava ter nascido cubana, ser condenada a jamais sair da ilha. Só aceito ler as maravilhas de Cuba a partir dos cubanos que estão lá e que lá ficaram. Dos demais, para mim não dá para nem considerar. Não sei se considero cretino ou patético, no mínimo hipócrita e desonesto. A ditadura prossegue. O cárcere prossegue. Justificativas prosseguem de gente que não vive e não viverá, muito menos para sempre, lá.
A Ilha, uma pedra no caminho de muitos. Não sei até que ponto a ditadura de Fidel seja justificada, mas que é fascinante ver um pedaço de terra tão pequeno incomodar a tantos é inegável. Não me sinto disposta a ler esse livro, embora seu texto seja bem convincente. Cuba, com sua magia à Las Vegas, antes da revolução, e sua história de resistência-pós Fidel, não deixa de ser encantadora, sem dúvida, um mistério. Mesmo com a China, o Oriente Médio e os países em ascensão Cuba não deixará nunca de ser referência na história da humanidade. Não creio que o tema Cuba seja anacrônico, talvez menos midiático, no momento. Parabéns pelo texto. Um abraço, Adriana