Tivesse Martín Kohan feito um romance da resistência à ditadura militar argentina, poderíamos até ter um bom livro, mas seria difícil diferenciá-lo do montante de bons romances sobre o período. A intenção com Duas vezes junho (Amauta, 2005, 148 págs.) não foi, no entanto, concorrer frontalmente com os infinitos, além de romances, filmes e estudos históricos sobre aquele que foi um dos mais sanguinários regimes políticos da América Latina. Nele, o autor se concentra em seguir vidas comuns despedaçadas pelo rolo da violência pura travestida de ideologia.
Há muitos pontos interessantes nesse romance de 2002, o quarto desse argentino nascido em 1967. Um deles é que, com a exceção de uma personagem, as figuras centrais do enredo estão todas do lado dos militares, e não do lado dos perseguidos pelo regime, como é mais comum. Não há nem mesmo qualquer referência à nomenclatura dos "inimigos da pátria", tais como vistos pelos "defensores da pátria" — "comunistas, "ateus", "subversivos", categorias nas quais entravam qualquer um que expressasse qualquer forma de oposição ao regime, por mais liberal e moderada que fosse.
Para ter uma idéia de como o livro acontece, vejamos como ele abre:
"O caderno de notas estava aberto, no meio da mesa. Havia uma só frase nessas duas páginas que estavam à vista. Dizia: 'A partir de que idade se pode começar a torturar uma criança?'"
Essas linhas já são o primeiro dos subcapítulos, que por sua vez formam dezenove capítulos em duas partes. Pulamos de uma cena a outra numa velocidade impressionante, e há vários flashbacks ao longo do caminho. Mas ainda assim, paradoxalmente, ficamos com a impressão de que nada muda e nada mudará.
A frase no caderno de notas foi vista pelo narrador, um jovem cujo nome não sabemos e que foi recém-incorporado ao Exército, onde serve como motorista do doutor Mesiano, de quem se torna grande amigo. Esse médico vive a lhe passar lições de moral sobre as coisas da vida e da caserna, e o motorista, que já ouvira pregações semelhantes do pai e ex-soldado, está genuinamente empenhado em ser um bom moço.
Logo saberemos que a mensagem que aparece no início do romance foi passada de um centro militar por um certo doutor Padilla, dirigia-se ao sargento Torres e requeria uma rápida apreciação e resposta. Esta, só quem poderia dar, por questões de hierarquia, seria o doutor Mesiano. Antes de procurá-lo, no entanto, Torres discute em seu escritório com o temeroso narrador a questão levantada por aquelas palavras no caderno de notas. Ele pondera que, se por um lado as crianças têm um imenso poder de fabulação, o que poderia atrapalhar a "busca" dos investigadores pela verdade, por outro têm muito menos resistência física que os adultos, o que poderia poupar o tempo dos mesmos investigadores.
Aí está outra interessante característica do romance, que se desenvolve de forma bem direta. Não há espaço para divagações, e é notável que nas passagens relacionadas à violência (seja a que ocorre naquele exato momento, ou a que está apenas sendo prevista ou imaginada) a linguagem seja telegráfica ou pouco mais que isso.
Pelo vai-e-vem da narrativa, já sabemos a que criança o doutor Padilla se refere na mensagem. É ao recém-nascido de uma mulher feita prisioneira, obrigada a dar à luz no cárcere, onde é constantemente espancada e violentada. As torturas são rigorosamente controladas por Padilla, que se esforça, numa fantástica inversão de significados proposta por Kohan, em "preservar a vida da detenta".
Essa detenta, cujo nome tampouco sabemos, age mais como uma sombra do que como uma personagem. Como um fantasma, é isso — ela serve mais para assombrar o leitor do que para resolver qualquer nó no romance. Ela está à beira da morte e já resistiu a toda sorte de violência sem delatar os nomes que seus algozes querem. Como estes continuam a insistir que ela fale, tramam torturar-lhe o filho para fazer chantagem.
O fato é que Padilla necessita ter sua dúvida esclarecida o mais rápido possível, pois a mãe da "criança", mesmo sem passar por novas torturas, parece que não viverá por muitas horas mais, e logicamente, depois que ela morrer, de nada adiantará infligir mal a seu filho. No entanto, Mesiano, sem prever que uma importante mensagem requerendo seu rápido parecer chegaria justamente naquela noite, já havia escapado sorrateiramente do quartel para assistir com o filho a um jogo de futebol no estádio. Estamos no ano de 1978 e a seleção argentina tem um importante compromisso. Seu motorista, o narrador, é encarregado de trazê-lo para o quartel o mais rápido possível.
Às vezes a narrativa é trespassada por detalhes técnicos do time argentino, ou por descrições de modelos de carro ou tipos de balança, o que parece ser um desafio ao leitor: terá ele capacidade para não deixar que essas passagens com explicações frias neutralizem o efeito das imagens de violência física e psicológica?
O momento central do livro é quando Mesiano, já encontrado pelo motorista (e depois de uma noite de borrachera), enfim vai ao centro militar em que Padilla está ansiosamente esperando. Os dois começam a discutir, em falas cheias de meandro, se o raquítico recém-nascido suportaria algum tipo de violência. O motorista de Mesiano, até então na presença dos dois, logo é dispensado, para que tão importante questão pudesse ser discutida mais livremente entre os superiores. A sós num corredor, exausto, ele senta-se no chão e encosta-se a uma porta, de onde saem dedos, por baixo, que lhe tocam. É a prisioneira, que passa a lhe pedir socorro em sussurros, o que não comoverá nosso amigo soldado.
Digo que esse é o momento central porque a obra carece de um final mais condizente com as expectativas que cria. Claro que o leitor perspicaz somará A com B ao final, compreendendo o tipo de relação que existia entre o nacionalista Mesiano, seu filho Sérgio e sua arredia esposa. Mas não devem ser poucos os que fecham o livro de alguma forma frustrados.
Onde Martín Kohan foi infinitamente feliz foi na criação desse narrador-personagem que não tem nome, mas tem número — o 640 que está em sua carteira de alistamento e será sorteado em programa transmitido pelo rádio, o que lhe obriga a ir se apresentar. Uma peça (ou um número) a mais na engrenagem da repressão, ele está a meio caminho entre a ingenuidade e a hipocrisia, e por precaução é bom acompanharmos sua saga com esses dois adjetivos em mente.
Nesse ponto, não há como deixar de lembrar aquele oficial nazista evocado por Primo Levi na espetacular crônica "Auschwitz, cidade tranqüila" (que traduzi em meu blog). Nela, Levi, judeu-italiano que sobreviveu a longos meses no famoso matadouro, relembra o comportamento pós-guerra de Mertens, como o chama, deprimido e sempre se isolando dos amigos. Em uma entrevista a um especialista no Holocausto, Mertens revelou que assumira o posto em Auschwitz para que um nazista não o fizesse, e que sempre procurara aliviar o sofrimento dos prisioneiros, tidos como "perigosos, bandidos e subversivos". Em uma carta a ele, no entanto, Levi não pega leve, e afirma que se Hitler subiu ao poder e devastou países foi por culpa de pessoas como ele, Mertens, que procuravam não ver o que ocorria de errado e, quando viam, calavam-se.
Refiro-me a essa crônica também para afirmar que o personagem de Kohan tem infinitamente menos capacidade de vasculhar a consciência do que o alemão da crônica de Levi, pois o soldado argentino, quatro anos depois dos acontecimentos da primeira parte de Duas vezes junho, ao invés de repensar seus atos e os de seus amigos e superiores, vai confraternizar em uma refeição na casa do ex-chefe saudoso dos "bons tempos". Um retrato fiel dos militares latino-americanos das aberturas e redemocratizações.
Excelente a resenha. Mas deixa claro pra mim que jamais lerei esse livro. Qual a intenção de Kohan, o autor? Violência (ou crueldade) não se combate com palavras. Todo escritor deveria saber disso: os violentos são surdos. E uma denúncia, ou um protesto, exige comprometimento afetivo, pessoal, da parte protestante. Se um autor se isenta de uma tomada de posição ao fazer um protesto, não é mais um protesto. É uma propaganda, no sentido em que as coisas que ele escreve se propagam. Tenho minhas suspeitas de que apenas apontar o mal, nomeá-lo, dar-lhe uma forma e não tomar uma posição, é uma maneira de invocá-lo. Ótima a resenha, mas essas coisas ainda me chocam.
Concordo com o Guga. Esse é um livro que não leria, mesmo que perpasse pelo enredo um ar de protesto velado. Deve ser interessante, mas a minha aversão à tortura e à crueldade é mais forte que a curiosidade. Basta o que vivemos e ainda estamos por viver. Constatar o que o ser humano é capaz em relação à crueldade ainda me assusta e muito. Mas não deixa de ser uma resenha muito bem escrita.
Alguns livros são registros factuais ou mesmo dos comportamentos em determinado momento. A violência é abjeta e a tortura covarde, logo não nos esqueçamos disto; se na Argentina não houve um acerto de contas entre a sociedade e o seu passado, no Brasil tampouco houve, não nos esqueçamos disto; dentre os horrores possíveis ou dentre os terrores admitidos há uma anistia de crimes cometidos em nome de alguma coisa que se perdeu em meio a mortandade e na covardia dos militares, os daqui e os de lá. O horror que nos causa tal relato é ainda a arma dos oficiais de uma ideologia tacanha que erigidos numa hierarquia absurda aniquilava parte do povo que juraram defender. A tortura existe, faz parte do processo de depuração da democracia sul-americana com o patrocínico do Tio Sam. Excelente a sua resenha atualíssima diante da Doutrina Carter. Hoje a América Latina vive uma democracia forjada na ausência de alguns e na indiferença de outros, não nos esqueçamos...