"Mamãe, gentileza é de comer?", pergunta o pequeno no restaurante. "Não, por que?", questiona a mãe. "É que eu ouvi o papai pedindo uma gentileza, por favor, para o garçom". Se a resposta da mãe fosse "sim, meu filho, é de comer", quais características teria a gentileza que o garçom traria em sua bandeja?
Com certeza não seria industrializada, nem condensada, tampouco pasteurizada ou prensada, não teria conservantes e nem corantes artificiais. A verdadeira gentileza, para ter seus delicados e voláteis princípios ativos intactos, deveria ser servida de modo bem natural.
Quase dispensável é dizer que estaria entre os alimentos orgânicos, porque seria um paradoxo uma gentileza recheada de agrotóxicos, fazendo malcriações para o meio ambiente ou para os trabalhadores que a cultivassem.
As contradições da gentileza não estariam na sua forma de cultivo, mas sim no fato de que seria, como tudo que é bom e gostoso, extremamente calórica sem, contudo, entupir artérias ou provocar síndromes metabólicas. A cada mordida, a cada "Hummmm!" de prazer, os sucos nutritivos da gentileza elevariam os níveis dos hormônios e neurotransmissores relacionados com o prazer humano. Seriam, dessa forma, uma ameaça - com todo o cavalheirismo possível - ao império do chocolate, o grande curandeiro atual das carências de amabilidade. Alguns estudos investigariam inclusive sua relação com o aumento da presença de ocitocina, hormônio que dá uma força química aos vínculos entre mães e filhos, e entre casais.
Voltando ao restaurante, a gentileza não se demoraria em chegar à mesa, porque não seria delicado deixar os comensais esperando e com fome. Poderia ser servida à temperatura ambiente ou morna, nunca fria: gentileza fria é mera polidez, reflexo condicionado do ser "educado", e é cheia de falsidade.
O menino pequeno veria o garçom colocar à frente de seu pai um prato com um alimento de formas arredondadas e harmoniosas, como uma pêra em calda, talvez. Pediria para provar um pedaço e veria que ela seria suavemente doce. Não lhe caberia um sabor escandalosamente açucarado, muito menos amargo, ácido ou salgado, embora cada um deles tenha sua função, seu momento e sua graça.
Os médicos receitariam o consumo de gentileza para a manutenção de um estilo saudável de vida: "Você precisa incluir na sua dieta verduras, frutas e legumes. Diminua as frituras. Gentileza pode consumir à vontade". Poderia ser um alimento usado em desenhos infantis para incentivar bons hábitos e costumes. O marinheiro Popeye, se ao invés de espinafre enlatado, comesse umas gentilezas recém-colhidas do pé, não sairia por aí dando sopapos em ninguém. Encontraria umas maneiras menos macho-man de resolver seus problemas com o Brutus.
As empresas que incluíssem gentilezas no cardápio de seus refeitórios seriam de fato socialmente responsáveis com seus funcionários e deixariam de pedir nos processos de seleção candidatos "dispostos a trabalhar sob pressão".
Quem comesse gentileza nunca se esqueceria de dar bom-dia, até-logo ou pedir por favor. Faria isso de forma natural e não mecânica, como acontece com os atendentes moldados pela Blockbuster, McDonald´s ou Starbucks. Esses comem na firma a amabilidade padronizada e esterilizada, que provoca desagradáveis efeitos colaterais. Como o sorriso escancaradamente morto, igual ao que o Jack Nicholson, no papel de Coringa, inimigo do Batman, provocava em suas vítimas com um gás infame. Essa gentileza é sem graça como petit gâteau industrializado. Sem gosto como peixe preparado no microondas.
Gentileza seria ainda um alimento especialmente recomendado para quem sofre de algum dos seguintes problemas: dormir com a bunda descoberta, que provoca mal humor crônico e distúrbios da cortesia; compulsão por mágoas em conserva, ardidas como pequenas cebolas transparentes (cebolas são, sabidamente, vegetais que fazem muita gente chorar);
consumo exagerado de verdade de colherinha na infância.
Tenho uma amiga que diz isso: "Fulana comeu muita verdade de colherinha quando era pequena, por isso ficou assim". Diferentemente da gentileza, a verdade de colherinha pode ser imaginada como um alimento com calorias vazias, tais quais os refrigerantes: deixam o indivíduo inchado de si e dão a falsa sensação de alimentação. Poderiam ser vistos também como papinhas de nenê de potinho. Sem sal, sem tempero, sem experimentação dos sabores e texturas originais. Comida morta. Pseudo-sabedoria.
Prática de consumir, a verdade de colherinha isenta o indivíduo de filosofar, pensar, ponderar ou mesmo considerar que pode estar errado. Não exige que se procure outras fontes de conhecimento, que aceite outras opiniões. Não é necessário nem sujar muita panela, nem mesmo lavar louça depois, porque a verdade de colherinha já vem, é claro, com uma colherinha de plástico descartável totalmente grátis.
Está escrito no pote que é Verdade, então não há mais o que discutir. E o rótulo ainda diz que é enriquecida com dez vitaminas e ferro, o que alivia a consciência de quem a come, mesmo que não saiba para que serve tanta vitamina exatamente. Quem se entope de verdade de colherinha sempre critica de maneira pouco cortês o que você ou os seus filhos comem, como se vestem, como se portam. Sempre tem um conselho que é para o seu bem, sempre lança seu olhar recriminador para as criaturas inferiores com quem acredita ser obrigada a conviver.
Novamente de volta à mesa, o menino pequeno aprovaria a novidade que acabara de provar. A mãe ficaria feliz e surpresa de vê-lo experimentando algo novo. O pai não pediria café e deixaria até mesmo para escovar os dentes bem mais tarde, só para preservar um pouco mais na boca o gosto da gentileza.
Seria mesmo bom se gentileza fosse algo comestível, fácil de obter. Nosso mundo é carente desse ingrediente, que torna as relações mais saborosas, mais apreciáveis. Na sociedade, gentileza, cortesia, é coisa de mulher, sinônimo de alguém bobinho, frágil, que requer cuidados, atenções, ou seja, é frescura. Não é pra macho, que deve ser grosso, ou irônico, sarcástico, pra perceberem que é inteligente, e as mulheres também estão aprendendo isso, pois não querem mais se submeter às grosserias dos homens, agora é tratamento de igual pra igual, em vez de tentar torná-los mais gentis, mais agradáveis, estamos nos igualando a eles em grosserias. Mas, há outro modo de mostrarmos que também somos inteligentes, sem usarmos os recursos da ironia e do sarcasmo? Uma mulher é valorizada, ou sequer escutada, se for apenas gentil, delicada? E por que inteligência tornou-se sinônimo de ironia, sarcasmo? Ser doce, gentil, não é ser inteligente? Em vez de uma, peçamos muitas gentilezas! Ótimo texto!
Oi Adriana. Que bom ler um texto como este, logo pela manhã. Pensei num link para o Blog Linha. Gosto muito destes assuntos. E muito mais quando escrito da maneira como fez. E num post anterior, escrevi sobre dálogo. Um assunto bastante ignorado pelas pessoas. Então, a partir dele, vamos reconhecer a presença do outro. E vamos ter prazer em distribuir, partilhar, fazer gentilezas, certo?
Ri muito, talvez especialmente com a "verdade de colherinha". Delícia de texto. Por que vocês não deixam endereço das contas de Twitter das escritoras do blog, quando tiverem, para quem quiser seguir? O da Adriana Baggio consegui achar fuçando, mas tem muuuiitas contas no Twitter com o nome de Adriana Carvalho, e nenhuma informação sobre a escritora neste site... como é que faz? Abs.