A cidade que trouxe de volta as marchinhas carnavalescas e a cultura popular caipira às ruas abrigou, de 19 a 25 de novembro, a I Semana da Canção Brasileira. São Luiz do Paraitinga, a cerca de 140 km da capital paulista, recebeu artistas contemporâneos, como Chico César, Arnaldo Antunes e Fabiana Cozza, e músicos regionais, como a banda Paranga e Estrambelhados, entre outros, que promoveram shows, oficinas, aulas e debates sobre a canção no Brasil. Além de toda a programação durante a semana, ocorreu também um festival da canção, que premiou três compositores e um intérprete.
Idealizado pela cantora Suzana Salles, o evento foi patrocinado pela Natura e promovido pela Secretaria de Estado da Cultura, por meio do PAC (Programa de Ação Cultural), com apoio da prefeitura da cidade. Freqüentadora assídua e admiradora da cultura local de São Luiz, Suzana desenvolveu o projeto especificamente para a cidade. "Aqui existe criatividade, exuberância e uma alegria que nunca vi em nenhum lugar do Brasil. O povo brinca com o que tem de mais valor, tendo a consciência deste valor", exalta.
De fato, a Estância Turística de São Luiz do Paraitinga encanta os visitantes, tanto pela beleza ecológica e arquitetônica quanto pela simpatia dos habitantes - ou luizenses, como muitos gostam de enfatizar. A cidade oferece inúmeros atrativos ecológicos, históricos e culturais, além da efervescência cultural, principalmente por conta da reinvenção do carnaval. Aqui, a população local se mobiliza compondo suas próprias marchinhas, gênero que predomina durante a folia, e valoriza a cultura caipira, reforçando a importância de mitos e lendas nacionais, como o Saci.
São Luiz também é conhecida como a cidade natal de Oswaldo Cruz e Elpídio dos Santos, autor da maioria das canções das trilhas sonoras dos filmes de Mazzaropi. Além dos luizenses ilustres e do carnaval, São Luiz mantém uma forte tradição de festivais musicais, além de promover durante todo o ano festas religiosas, como a Festa do Divino Espírito Santo, quando congadas, moçambiques e violeiros louvam a Bandeira do Divino.
Dentro deste cenário, Suzana definiu três eixos básicos para nortear a Semana: a poesia na letra da canção, a história da MPB e a educação musical no Brasil. Esses três fatores geraram resultados logo no início da programação, por conta das atividades que aconteceram de segunda à sexta-feira. Desde o primeiro dia, três oficinas infantis foram realizadas em escolas públicas com crianças e jovens: canto-coral, com Elaine Marin, composição, com Tata Fernandes, e percussão corporal, com Lula Ehrlich, ex-integrante do grupo Barbatuques.
O público adulto também participou, acompanhando as aulas de Sergio Molina sobre a história da MPB, na Capela das Mercês. Formado em Composição e mestre em Musicologia pela USP, Molina analisou canções de grandes nomes da música, contextualizando as obras em seus momentos políticos e históricos. "A partir do momento em que você conhece o que já foi feito de música no Brasil, e a genialidade das obras de alguns artistas, você fica mais exigente, interessado e passa a não admitir mais ouvir o que não tem tanta qualidade", avaliou Molina, em uma das aulas.
Os participantes dessas primeiras atividades ficavam cada dia mais animados com a Semana da Canção e saíam das aulas cantarolando, discutindo algumas idéias e até praticando os batuques ou vocalizes aprendidos - no caso das oficinas infantis. Foi perceptível o envolvimento do comércio, das escolas e de toda a população com o evento logo no início da Semana, quando a programação ainda não estava tão intensa.
Foi na quarta-feira que a cidade "esquentou". O movimento, o número de pessoas e de atividades aumentou, sem deixar que São Luiz voltasse a seu habitual silêncio. De algum canto, era possível ouvir o som de um violão, seguido de aplausos. Eis alguns destaques da programação:
Marchinhas Carnavalescas
A palestra sobre Marchinhas Carnavalescas, ministrada na Casa Oswaldo Cruz por João Rafael Cursino, Thar Ferreira e Marco Rio Branco, músicos de São Luiz, foi essencial para quem veio de fora acompanhar a Semana da Canção. Eles apresentaram aos participantes toda a produção musical de marchinhas da cidade, contextualizando com o que acontecia no Brasil em cada época. Entre uma explicação e outra, executaram algumas canções para mostrar as diferenças, influências e inovações de cada geração de compositores. O tradicional Festival de Marchinhas de São Luiz começou no início dos anos 80 e já se tornou referência em todo o Brasil. Apesar de ser um gênero musical antigo, o que se mostrou na palestra é que novos elementos e estilos estão sendo cada vez mais incorporados às marchinhas. "Muita gente acha que isso descaracteriza a música, mas a cultura popular não é estática. O povo demanda coisas novas e isso só enriquece a música", justifica Thar.
Luiz Tatit
Na quinta-feira, Luiz Tatit ofereceu aos alunos de sua palestra um panorama sobre a canção no século XX, com base em seu trabalho O século da canção. Durante a aula, destacou de cada fase da música brasileira, as características e as inovações da canção ao longo dos anos. Ele também não escapou de perguntas sobre seu próprio processo de composição e sua história na Vanguarda Paulista. Tatit encerrou o dia com um belíssimo show no coreto Elpídio dos Santos, na praça central, que contou com a participação de Ná Ozzetti, Ceumar e Suzana Salles. Pôde-se perceber que o público de São Luiz conhece bem seu trabalho, pois um coro animado e dançante acompanhou a maioria das músicas executadas naquela noite.
Dante Ozzetti
No mesmo dia em que Tatit realizou seu show, Dante Ozzetti apresentou suas composições à platéia do Mercado Municipal. O diferencial de seu show foi a participação de duas cantoras da cidade, Nena e Parê, filhas do compositor Elpídio dos Santos. Nervosas por cantarem ao lado do ídolo, elas acabaram confundindo a letra da primeira canção e resolveram "pular" para as próximas músicas. Depois que relaxaram e se soltaram, muito por conta da platéia, que as incentivou com muitos aplausos, elas finalmente cantaram a complexa canção "Dentro e Fora", parceria de Dante com Luiz Tatit. No final do show, ele apresentou uma nova música, também feita com Tatit, inspirada em São Luiz. A marchinha conquistou o público, que já no terceiro bis, cantava em uníssono a homenagem à cidade. No mesmo palco, ao longo da Semana também se apresentaram Alzira Espíndola, José Miguel Wisnik, Fabiana Cozza, Palavra Cantada (com a participação das crianças que fizeram as oficinas infantis), Quinteto Branco e Preto, Estrambelhados e Galvão Frade.
Walter Garcia
A partir de uma seleção de sete canções, Walter Garcia exemplificou e mostrou o quanto uma canção pode revelar sobre nossa sociedade, na palestra "Retratos do Brasil", que ministrou na Casa Oswaldo Cruz na sexta-feira. De "Cordiais saudações", de Noel Rosa, até "Diário de um detento", dos Racionais MC's, passando por composições de Geraldo Pereira e Tom Jobim, Walter analisou toda a letra, sua relação com a melodia e os temas, com base no conceito da cordialidade (desenvolvido no livro Raízes do Brasil, por Sérgio Buarque de Hollanda). "A princípio, a canção gira em torno de um sujeito que relata, por meio de temas como o amor, a forma em que ele vive no Brasil", resume.
Caipira
A apresentação do grupo Caipira, composto pelo violeiro Ivan Vilela e os cantores Suzana Salles e Lenine Santos, foi uma das que mais emocionou o público da Semana da Canção. O repertório, repleto de clássicos da música regional, foi apresentado sexta-feira no coretinho, onde também se apresentaram durante a semana Elaine Marin, Tata Fernandes, Paulo Padilha e a banda Paranga. No dia anterior, Vilela já havia mostrado um pouco de seu trabalho na Capela das Mercês, em uma aula-show sobre a viola e seus diversos estilos (sertaneja, cabocla, nordestina e caipira). Além dele, Chico Saraiva e Arthur Nestrovski também realizaram aulas-shows nos outros dias na capela, desenvolvendo temas como "A melodia da canção brasileira" e "Amar o mar - canções de amor e morte", respectivamente.
Shows no Coreto
Durante todas as noites, a praça central da cidade ficava lotada, sempre a espera de um grande show. O primeiro a subir no palco do coreto foi Arnaldo Antunes (quarta-feira), que apresentou músicas de seu novo álbum, Qualquer. No dia seguinte, foi a vez de Luiz Tatit e seus convidados e, na sexta-feira, Chico César fez o público pular com sua música contagiante, acompanhado apenas da percussionista Priscila Brigante. No sábado, São Luiz recebeu Renato Braz, que contou com a participação de diversos convidados, entre eles o compositor mineiro Kristoff Silva e a cantora e compositora Lucina (que também participou do Festival). Por fim, fechando a Semana, a Banda Glória apresentou no domingo, logo após a final do Festival, sambas de Chico Buarque, Jorge Ben Jor, entre outras canções dançantes de seu repertório.
Debate Ricardo Breim, Teca Alencar de Brito e Regina Machado realizaram no sábado um debate sobre a educação musical no Brasil, na Casa Oswaldo Cruz. Os três têm escolas de música em São Paulo, todas com métodos de ensino próprios, que foram descobrindo ao longo da trajetória pessoal na música. As experiências foram expostas ao público, que trouxe para o debate várias questões primordiais, como a importância de se incluir música na grade curricular do ensino básico e fundamental e o papel do poder público. Professoras da região e a própria secretária de Educação de São Luiz também dividiram com os participantes as experiências bem-sucedidas realizadas em São Luiz, que, apesar de pequena, é uma cidade com uma tradição cultural muito forte.
Negão dos Santos e Renata, integrantes do Paranga
Música regional
A banda Paranga, formada, inicialmente, pelos filhos do compositor Elpídio dos Santos (hoje, já com uma formação diferente), se apresentou no sábado no coretinho. A praça, envolta de bares, ficou pequena para comportar todo o público que estava presente - em sua maioria, composto pela população local. O grupo está em plena atividade desde 1980, com um repertório de canções próprias e de Elpídio (ele deixou um regado de quase mil composições). No domingo, foi a vez do grupo Estrambelhados tocar, representando a mais nova geração de compositores de São Luiz. Junto a eles, se apresentou Galvão Frade, o secretário de Cultura, ex-integrante do Paranga e compositor de boa parte das marchinhas que embalam o carnaval luizense. Foram nesses dois shows que o público que veio de fora pôde conhecer melhor o estilo musical e a alegria do povo de São Luiz.
Benito quando ainda montava os troféus
Festival
Não bastasse toda a programação da Semana da Canção, o evento ainda promoveu um Festival para revelar novos talentos da música brasileira. Foram mais de 300 canções inscritas por compositores de todo o Brasil. Apenas 20 foram selecionadas pelo pré-júri, composto por Galvão Frade, José Carlos Costa Neto e Juçara Marçal, para a semi-final, que aconteceu no coreto Elpídio Santos nas noites de sexta-feira e sábado. Para a grande final no domingo, ficaram dez músicas, escolhidas pelo júri, composto por Alice Ruiz, Dante Ozzetti e Lincoln Antonio.
Os estilos apresentados eram bem diversificados: tinha de marchinha a rap, passando por samba e pop ."A gente precisa saber e entender o universo de cada canção, porque é difícil julgar o compositor a partir de uma música apenas", explicou Dante. Na grande final, os jurados ousaram: pediram para ficar mais próximos do palco, em um espaço improvisado, para avaliarem melhor a interpretação das canções. Curioso é que no lugar onde estava o júri, colocaram dois grandes bonecos, tradicionais do carnaval de São Luiz (João Paulino e Maria Angu), dando uma cara ainda mais alegre para a noite.
Os troféus eram um show à parte. Benito Campos, artista plástico e um dos fundadores do bloco mais conhecido da cidade (Juca Telles), fez lindos troféus com bonecos, bem coloridos, ao lado de dois violões. A expectativa era grande para ver quem iria ganhar essas obras e o resultado acabou contemplando um pouco de cada "universo" musical. Em terceiro lugar, ficou o rap "Chuta Lata", de Julli Pop e Jotacê (Cotia). Túlio Borges, de Brasília, garantiu o segundo lugar com a canção "Noite das meninas". A música "Sobre madeira e o couro" deu ao seu compositor, Cahê Rolfsen, o prêmio de melhor intérprete. Por fim, Iara Rennó se consagrou a grande vencedora, com a canção "Planador". Ao receber o prêmio, agradeceu a hospitalidade do povo de São Luiz e revelou seu desejo de voltar ano que vem à Semana da Canção, mas fazendo parte da programação.
Fico até emocionado quando leio uma notícia dessas. A Suzana está de parabéns. Nós precisamos resgatar essas pérolas da nossa real cultura. Parabéns pra todos desta cidade.
Um abraço.
Paulo